Se você não sabe quem são as duas celebridades citadas no título deste texto, certamente está classificado entre os membros que antecedem a chamada geração Z. Isso porque, entre os mais jovens, os dois artistas mencionados circulam nas esferas dos grandes destaques.
Isabela Cristina Correia de Lima Lima (sim, com dois Limas!), a Iza, é uma jovem negra, publicitária carioca, ex-bolsista da PUC Rio pelo ENEM, que iniciou sua carreia de cantora aos 14 anos cantando em paróquias e pequenos eventos ao longo da adolescência. Filha de uma professora de música e artes e de um militar naval, em 2015, aos 25 anos, lançou um canal no YouTube interpretando canções famosas e logo chamou a atenção de uma grande gravadora. A partir daí, bastaram três anos para o lançamento do primeiro álbum, “Dona de Mim”, que despontou nas paradas já com uma indicação de Melhor álbum Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa pelo Grammy Latino. No mesmo ano de 2018, Iza foi a cantora mais tocada nas rádios brasileiras dentro do segmento pop, com o hit “Pesadão”. A sonoridade da artista circula entre os elementos do pop, funk, hip hop, dance e soul, no que se convencionou chamar mais especificamente de R&B contemporâneo.
João Gomes é de sucesso ainda mais recente. A voz grave do rapaz de apenas 19 anos tornou-se conhecida do público somente no ano passado (2021), mas já alçou o filho da pequena cidade pernambucana de Serrita ao pódio de cantor mais ouvido daquele ano, especialmente através do hit “Meu Pedaço de Pecado”. Embora os segmentos de Iza e João Gomes sejam diametralmente opostos – o rapaz é representante do chamado piseiro e do forró de vaquejada – suas histórias são semelhantes: João começou seu caminho pela música cantando no coral da igreja, foi estudante do Instituto Federal de Pernambuco e deve parte de sua fama ao impacto da internet. Seu sucesso de lançamento ocorreu especialmente através da plataforma TikTok, fenômeno que tem alterado os cenários da produção fonográfica no Brasil e no mundo.
Representantes de dois grupos distintos, o da periferia urbana do Sudeste e o dos interiores rurais do Nordeste, Iza e João Gomes simbolizam os polos que costumamos identificar (sem fugir de generalizações) entre perfis da população brasileira: por um lado uma juventude marcada pelas questões raciais e identitárias, por outro uma estrutura ainda bastante tradicional de significação da família, dos costumes e valores. Mas eis que o soul e o piseiro se entrecruzam e nossas categorias de análise parecem convidadas a aprofundar discussões: neste ano, ambos os artistas lançaram músicas que abordam a temática religiosa e as distinções aqui deixam de ter contornos tão definidos.
Fé x terra prometida: duas faces de um mesmo disco
No último dia 9 de maio, a BBC Brasil lançou uma matéria em que analisa os dados das primeiras pesquisas do ciclo eleitoral de 2022 do Instituto Datafolha. As pesquisas não revelam necessariamente um dado novo, mas o aprofundamento de uma realidade: cresce cada vez mais entre os jovens aqueles que se identificam como “sem religião”. Na verdade, os dados dão conta que dentro do eixo Rio-São Paulo os jovens que declaram não ter nenhuma pertença religiosa já são maioria ante evangélicos e católicos (estes, entre os jovens, já em menor número que os primeiros).
A não religiosidade destes jovens, porém, não necessariamente resulta em uma ausência de cultivo da espiritualidade. Antes, apesar de não se identificarem com nenhum espaço religioso institucional, cultivam ainda aspetos da fé cristã como a crença em Deus, Jesus, Maria ou os santos, mantêm práticas rituais específicas ou selecionam e sincretizam doutrinas, constituindo um modo muito pessoal de experiência do transcendente. Nas redes sociais, por exemplo, popularizou-se a expressão “jovem místico”, como designação de uma parcela da juventude que, embora não religiosa, pode ser considerada espiritualizada.
Os recentes lançamentos dos jovens cantores citados anteriormente, por exemplo, ilustram o espaço que a fé ainda ocupa na vida da juventude brasileira. O último álbum de João Gomes, lançado há pouco mais de um mês, tem como terceira faixa a canção “Terra Prometida”, que traz versículos de salmos, declarações explícitas da fé cristã do cantor e se aproxima do tradicional gospel, embora em ritmo de forró. Já Iza, em cerca de uma semana, ultrapassava 3 milhões de visualizações em seu último clipe lançado no YouTube intitulado “Fé”. Distintos no gênero e na linguagem, ambas as canções apresentam, no entanto, concepções de fundo que podem orientar algumas percepções pastorais sobre as realidades que os jovens têm vivido à luz da fé e também sobre as lacunas de sua formação religiosa.
A figura da mãe e a força da esperança
O primeiro elemento claro de similaridade entre as letras é a presença da figura materna. A mãe, em ambas as realidades, é a verdadeira provedora, não somente do sustento físico, como destaca Iza (“a minha coroa me criou sozinha/levantando sempre no raiar do dia”, diz a letra), mas especialmente no apoio emocional/espiritual. A mãe é a educadora da fé, o símbolo da religiosidade comprometida que opera como um farol moral para os filhos.
Tem-se aí um ponto fulcral do trabalho com as juventudes contemporâneas: o reconhecimento das diferentes configurações familiares nas quais estes sujeitos se desenvolvem, acolhendo toda sua complexidade, potências e fragilidades reais. Ora, não é um dado novo em nenhuma pesquisa demográfica que grande parte dos jovens brasileiros, especialmente os da periferia, não crescem em famílias que certos grupos cristãos reconheceriam como modelo. Alguns programas sociais do governo, inclusive, têm como primeira beneficiária a matriarca, pois geralmente é esta que assume a criação dos filhos, netos e demais crianças do círculo familiar ou comunitário. No entanto, nossas referências iconográficas, e de modo especial nossas pregações, continuam tratando de um modelo de família excessivamente idealizado, que muitas vezes demoniza os modelos familiares reais atribuindo-lhes, de antemão, a noção de fracasso.
As idealizações, aliás, frequentemente são uma tranca às portas de acesso dos jovens à uma experiência de fé madura e sadia. Elas impedem um dos processos básicos de assimilação da Boa Nova que é o de identificação e rompem com um movimento típico da adolescência que é a individuação e o reconhecimento de si diante do todo. As pautas identitárias parecem ser o grande tema das juventudes urbanas e, um espaço religioso que não permita ou reconheça plurais identidades e pertenças, será incapaz de corresponder às angústias existenciais mais primárias das juventudes. Diferentemente de outras épocas, em que os projetos de vida correspondiam a um horizonte razoavelmente comum à maioria da sociedade (ter um trabalho sólido, casar, constituir família, etc.), os jovens contemporâneos encontram diante de si uma série de novos questionamentos e possibilidades que não se encaixam mais nos caminhos tradicionais que povoam os discursos vocacionais cristãos. As canções de Iza e João dialogam com uma juventude prenhe de sonhos e esperanças em um mundo de inúmeras fragmentações e desafios, onde pairam muito mais dúvidas do que certezas e que, por isso mesmo, não reconhece mais a legitimidade de instituições que apresentem respostas prontas e ideais que não encontram na realidade sua correspondência.
Na introdução da música de João Gomes ouve-se a voz da mãe que abençoa e motiva. A mãe é imagem de uma autoridade amorosa, próxima, horizontal. É a mulher que concilia perfeitamente a bravura da luta com a doçura do cuidado. Na verdade, é essa a alegoria que o Papa Francisco usa em um dos pontos mais emblemáticos da sua Evangelii Gaudium, onde defende uma Igreja “acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas” (EG 49). A conclusão do primeiro capítulo de sua exortação apostólica sobre o anúncio do evangelho tem por título justamente a expressão “uma mãe de coração aberto” (EG 46). Não seria essa, precisamente, a imagem da Igreja que os jovens (e todos nós) gostaríamos de contemplar?
Individualismo e meritocracia: a teologia da retribuição como base do discurso religioso contemporâneo
A imagem de comunhão e acolhida expressa pela figura materna, no entanto, em ambas as canções encontra seu oposto radical. O individualismo meritocrático que encharca as relações sociais contemporâneas e baliza os ideais de autorrealização parece coexistir pacificamente com a dimensão da fé. Na verdade, é justamente no discurso religioso que essa contradição tem se acomodado de modo mais furtivo, sob uma lógica que comumente passa despercebida e soa, inclusive, como testemunho de fidelidade.
“Foram tantas ciladas que eu sobrevivi/Tantas batalhas que eu prevaleci/Mano, eu venci, hoje estou aqui”. Os versos cantados por João Gomes exaltam a vitória do crente, fruto de sua fidelidade à promessa de Deus. A semelhança com a letra de Iza é notável. Já na primeira estrofe ela afirma: “Hoje eu só vim agradecer por tudo que Deus me fez/Quem me conhece sabe o que vivi e o que passei/O tanto que ralei pra chegar até aqui/E cheguei.”
A noção de retribuição não é estranha à Bíblia, especialmente no Antigo Testamento. Trata-se de uma linguagem comum, típica do livro do Deuteronômio, que pretende garantir que Israel seja fiel à aliança firmada entre Adonai e seu povo. Mas o texto bíblico não se limita a esse tipo de interpretação. Aliás, mesmo dentro do Antigo Testamento, a ideia de retribuição não ocorre num contexto de individualismo, pois a fidelidade recompensada é sempre da comunidade, do povo, que elege o caminho do Senhor, nunca do “eu” isolado de sua condição social e fraterna.
De fato, toda a teologia cristã parece superar a lógica de retribuição ao partir de uma concepção muito mais ampla da gratuidade de Deus para com todos e da consequente liberalidade com que seus filhos e filhas devem agora tratar uns aos outros. Jesus, a propósito, inverte a lógica do mérito em diversas de suas pregações, razão pela qual muitas vezes conquistou a antipatia do público que o ouvia. Basta aqui, como exemplos, citar as parábolas dos trabalhadores da última hora e a emblemática passagem do filho pródigo, duas narrativas em que o descontentamento do senso comum diante de uma aparente injustiça do pai/patrão é explicitado através de personagens descritos pelo próprio Cristo.
Mas o discurso neoliberal da meritocracia, ainda assim, parece colar muito facilmente com a visão de um Deus que trabalha na lógica da retribuição. Nesse sentido, nossos processos de evangelização não somente têm sido incapazes de favorecer uma saudável contracultura comunitária e de hermenêutica fraterna da fé, como frequentemente reforçam a noção de uma fé personalista e absolutamente individual, do relacionamento intimista com Deus, desvinculado dos demais. O crescimento dos discursos armamentistas e do moralismo cristão na política, por exemplo, demonstram como grupos pretensamente religiosos facilmente dissociam a narrativa evangélica de princípios de vivência comum, fechando-se em núcleos isolados, de “perfeitos”, onde o outro oferece antes um risco de “contaminação moral”, do que uma possibilidade de encontro com Deus. O individualismo religioso, no entanto, não atinge apenas aqueles grupos que claramente partem de uma perspectiva liberal. A experiência nos mostra o fechamento autorreferencial, por ser expressão basilar de nosso tempo e cultura, atinge também aqueles movimentos que historicamente se construíram a partir de lutas e pautas coletivas, mas que hoje encerram-se em discursos, visões e projetos de uma Igreja e de um mundo que não existem mais. Por isso, envelhecem distantes da juventude que não compreendem e para a qual não se fazem compreender, ciosos de estruturas e teologias que pouco ou nada dizem aos novíssimos filhos e filhas de Deus.
Compreende-se, por isso, que a fé seja lida como instrumento, mesmo que indireto, da possibilidade de ascensão social em um país com desigualdades tão profundas e estruturais como o Brasil. De fato, sair da periferia e atingir sucesso profissional e financeiro soa a muitos como um verdadeiro milagre. Assim, não seria justamente papel das igrejas fomentar uma leitura do Evangelho que questionasse a injustiça e favorecesse aos jovens uma visão crítica da realidade socioeconômica em que estão inseridos? Nossas comunidades de fé deveriam ser espaços de discernimento e empoderamento dos projetos de vida de nossos jovens, oferecendo-lhes horizontes concretos de dignidade, auxiliando-os a pensar, a partir da fé em Cristo, novos modos de ser e agir no mundo, distantes do egoísmo acumulativo e predatório em que vivemos. Também estes sonhos, é verdade, muitas vezes são de cunho bastante individualista e necessitariam de comunidades eclesiais sólidas e formativas para que desabrochassem não apenas como realização do eu, mas do nós, em vista de uma sociedade mais justa. No entanto, grande parte das lideranças cristãs não faz senão reproduzir, em suas práticas e falas, as idealizações vazias de um capitalismo que gesta em cada um de nós, desde muito cedo, ilusões de sucesso individual e solitário.
A pretensa relação de causalidade entre a fé em Deus e as vitórias pessoais de Iza e João Gomes não alimenta a autêntica esperança cristã. Ao contrário, explicita como alguns discursos religiosos hegemônicos são verdadeiros castelos de areia, facilmente derrubados pelas ondas da realidade atroz que nos alcança. Afinal, não é preciso muito para perceber que para cada Isabela e João que despontam, outros milhares se manterão na pobreza, no subemprego, na baixa escolarização e no insucesso. Não porque lhes falte fé ou a benevolência de Deus, mas porque a força transformadora do Evangelho de fato não encontra espaço para sua ação salvífica em um mundo de lógica narcísica e autorreferencial.
Ouvir a canção dos jovens
O fato de que identifiquemos limites teológicos nas letras dos já citados artistas não invalida suas manifestações de fé e piedade. Aliás, é justamente a autorreferencialidade que tantas vezes nos impede, enquanto Igreja, de ouvir na voz dos jovens seus próprios anseios, suas questões existenciais. O Papa Francisco, em sua Amoris Laetitia, adverte-nos sobre a necessária tríade pastoral: acompanhar, discernir e integrar a fragilidade (AL 291). Este caminho, porém, não se dá sem uma escuta atenta, que acolha os sinais da manifestação de Deus na realidade do outro, para fazer com ele um caminho de descobertas, maturação e aprofundamento da experiência cristã. Afinal, quem de nós possui uma imagem de Deus isenta de limitações, projeções e enganos? O exercício do discipulado não é outro senão este: renovar nossa mentalidade, para distinguirmos a vontade de Deus (Rm 12, 2) ou seja, acolhermos o Senhor tal qual ele se revela e não como o formulamos.
É preciso, sobretudo, fazer-se próximo ao jovem que, longe do que se imagina, não é fechado às críticas e à instrução, mas tem uma especial sensibilidade à incoerência e hipocrisia, o que lhe garante um filtro muito acurado quanto ao reconhecimento da legitimidade daqueles que se apresentam como autoridade. Por isso, se se diz que para educar uma criança não basta uma pessoa, mas é preciso uma aldeia, com razão poderia se dizer que para a evangelização da juventude não basta uma ou duas vozes, mas é preciso um verdadeiro coral. Uma Igreja que seja capaz de constituir um grande coro harmonizado onde haja espaço também aí para a voz de cada jovem convidado a cantar um cântico novo em louvor ao Senhor. Neles e em suas vozes, ecoará o rosto de uma nova Igreja, que não despreza os tons graves da sabedoria do passado, mas se manifesta viva no frescor daqueles que melhor expressam o dinamismo de Deus. Afinal, como já disse o Papa Francisco: Deus é jovem!
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Matheus Cedric Godinho
É integrante da equipe executiva do Observatório da Evangelização da PUC Minas. Além disso, é professor de Filosofia e Ensino Religioso e autor de material didático para Educação Básica nas mesmas áreas. Leigo católico, é cofundador da Oficina de Nazaré e membro do Conselho Editorial da Revista de Pastoral da ANEC.
Texto espetacular! Parabens!