Há alguns anos atrás, eu estava em Brasília, na Assembleia Geral da Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB, quando aconteceu o envio de três religiosas para a abertura da comunidade intercongregacional na Diocese de Pemba, em Cabo Delgado, Moçambique. Entre elas, estava Ir. Ana da Glória Rolim, religiosa da Congregação das Irmãs Franciscanas Penitentes Recoletinas. Ela integrou a comunidade intercongregacional da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), em Silva Macua. Nos misteriosos caminhos de Deus, eu não podia imaginar que, passados alguns anos, iríamos nos encontrar em Moçambique e compartilhar as alegrias e os grandes desafios da missão de colocar-se a serviço do Reino de Deus.
Na dinâmica da CRB, formar comunidade intercongregacional não é uma “novidade”. Este jeito de viver e fazer missão já vinha acontecendo, por exemplo, no Timor Leste, no Haiti e na Amazônia. Mas confesso, enquanto religioso, que sinto certa tristeza ao reconhecer que nós, homens consagrados, ainda não tivemos esta mesma coragem das mulheres de dar este desafiante passo. As mulheres, tal qual acontece no Evangelho, mais uma vez, vão a nossa frente abrindo caminhos novos. Que esta coragem e criatividade feminina, dons da Ruah divina, continuem a fecundar os horizontes dos discípulos e discípulas de Jesus.
A beleza, a coragem e a ousadia desta vivência intercongregacional reside em mostrar-nos onde realmente está o foco de nossa consagração: está “Naquele” que nos envia e nos sustenta na missão! Tudo mais pode ser, na verdade, relativizado, considerado “acessório”. E apenas deveria ser valorizado, de fato, quando fosse necessário. Por hora, basta-nos, como enfatiza o papa Francisco, “A alegria do Evangelho” (Evangelii Gaudium)… Aliás, creio que possamos dizer que, lá do céu, nossos fundadores e fundadoras, devem “orgulharem-se” de quem, com coragem profética e a presteza de Nossa Senhora da Salete, ousou formar comunidade entre congregações diferentes.
Um parêntesis para nós religiosos e religiosas: se é desafiador viver em comunidade em nossa própria família, imagine viver com membros de famílias diferentes. No entanto, acolhemos um Evangelho que nos desafia e nos desborda ao revelar a gratuidade de um amor universal de Deus que, como Abbá querido, nos irmana uns aos outros e nos interpela a acolher, em Jesus Cristo, o convite de participar da comunhão divina. Acima de nossas constituições religiosas e de nossas diferenças, é a Palavra de Deus que nos dá firmeza: “Para Deus nada é impossível”!
Outro parêntesis: quando encontramos uma comunidade intercongregacional, brincamos dizendo que nela devem acontecem mais festas durante o ano. Risos. Isso porque, a presença de cada congregação, é certeza de festa contagiante no dia da fundação. Isso significa que haverá mais alegria e mais bolos para serem compartilhados!
Para além deste retorno de irmã Ana e das motivações que levam estas mulheres guerreiras missionárias do Reino, a formarem comunidades intercongregacionais, voltemos ao tema que nos motivou esta reflexão: o retorno da irmã Ana ao Brasil.
Ir. Ana, por que retornar?
Retornar porque a missão não é nossa. A missão é de Deus! E a vida Religiosa é, no fundo, um serviço, uma consagração à Deus para a missão, portanto, trata-se de um livre dispor de si para ficar disponível aos apelos do Reino de Deus, em todo e qualquer lugar. Aonde estiver o religioso ou a religiosa, ele aprende a discernir os sinais do Reino que é de justiça, de partilha fraterna da vida, de misericórdia e cuidado com a dignidade da vida desde os mais pequeninos, pobres e vulneráveis.
Retornar para que, com o entusiasmo e a alegria de seu testemunho junto à CRB, quem sabe consiga animar outras congregações religiosas a também dar este importante, corajoso e desafiante passo e, desse modo, apontar os rumos do futuro para a Vida Religiosa. E, ao compartilhar as memórias das missão realizada, possa despertar novas vocações!
Retornar e, estando longe deste país, das pessoas que aqui amou, se entregou e cuidou, a aproximadamente doze mil quilômetros e um oceano a nos separar, que possa sentir saudades de cá unida a nossa saudade que sentimos daí. Feliz de quem parte e deixa nos corações que ficam o desejo do reencontro, da vontade do abraço que aprendemos a chamar de “matar a saudade”.
Não se assuste ao ouvir de nossa boca: “Deves retornar, deves ir mesmo, vá com Deus!”. Saiba que hoje é você e amanhã será a vez de cada um de nós que aqui permanecemos. Dom Luiz Fernando Lisboa, nosso bispo, tem a graça de reunir na Diocese de Pemba, missionários e missionárias de 22 países. Com isso, mostra a beleza do rosto missionário plural de nossa Igreja! Assim também é a Vida Religiosa: chamada, neste mundo, a armar tendas, a levar “vida cigana” disponível ao sopro da Ruah divina. Chamada a firmar bem as estacas e armar barracas, mas sem cultivar receios de partir novamente quando é chegada a hora.
A chegada da “hora” de partir é sempre um processo doloroso. Doloroso também foi para o próprio Jesus. A comunidade Joanina tornou a chegada da “hora de Jesus” um verdadeiro momento teológico. Esta “hora” é a do grande encontro do “Chronos” (tempo medido no relógio, no calendário, “tempo da rotina”), com o “kairós”, (tempo propício, favorável, oportuno, “tempo da graça”).
A sua hora chegou, irmã Ana! Retornar ao Brasil, para que daqui de Pemba possamos enviar a vocês as notícias esperançosas desta sofrida terra. Aguarde ir. Ana (e nós também), a chegada da boa nova de que em Cabo Delgado a paz retornou. De que, agora, as riquezas desta terra estão sendo, de fato, compartilhadas entre os moçambicanos e moçambicanas.
Para além do fim da guerra, que chegue também outras notícias alvissareiras. Que as mulheres a quem aqui acompanhava, conquistaram direitos e agora vivem de forma dignamente humana. Que as crianças conquistaram o direito de ser crianças em condições dignas de frequentar à escola e brincar de ser feliz.
Esta partilha irmã Ana será uma estrada de mão dupla… Ficaremos à espera de notícias esperançosas do Brasil também. Essa terra vermelha, cor de brasa, na qual brotou o pau-Brasil – daí o nome “Brasil”, cada vez mais difícil de ser encontrado diante da degradação ambiental. Não demore, irmã Ana, a enviar-nos notícias de que os pobres do nosso país estão sendo respeitados. Que os movimentos populares retornaram às praças e avenidas fazendo ecoar o grito dos pobres e oprimidos: “Nenhum direito a menos!”, “Ninguém solta a mão de ninguém!”, “Nenhum trabalhador sem terra, sem teto, sem trabalho!”.
Ir. Ana, daqui também ficaremos à espera de um Brasil que tenha um olhar de reconhecimento da dignidade do povo negro. Todos que, um dia, foram arrancados daqui de África, levados em navios negreiros para serem explorados. Todos que, passados cinco séculos, ainda continuam acorrentados pelos novos grilhões da escravidão, novos navios negreiros… Que o mundo inteiro possa gritar: Vidas negras importam! Isso porque toda vida é sagrada!
Por enquanto, leve as lembranças aqui vividas na pequena Aldeia de Silva Macua… Boa viagem! Bom retorno! Nos espaços por onde você passar fale com sua vida, que embora o Brasil tenha grandes necessidades da nossa presença, a VIDA RELIGIOSA É MISSÃO!
Pe. Edegard Silva Júnior é Missionário Saletino brasileiro. Atualmente trabalha na Missão de Muidumbe na Diocese de Pemba, Cabo Delgado, Moçambique.
Belíssima expressão de amor de comunidade religiosas que se unem na Missão de evangelizar!