Humanização divina

A Carta aos Hebreus – escrito difícil para a maioria dos leitores – contém intuições surpreendentes, e é por isso que foi guardada entre as Escrituras Sagradas. Escreve que Jesus Cristo se tornou igual a nós em tudo, menos o pecado (Hebreus 4,15). Mas essa frase dá a impressão de que ele não foi bem igual, pois não o foi no pecado… A Bíblia Sagrada da CNBB (tradução oficial de 2018) traduz: “ele mesmo foi tentado em tudo, sem todavia pecar”. Nesta tradução fica mais claro que ele foi, mesmo, igual a nós em tudo o que é humano, inclusive a tentação (ver a história das tentações de Jesus nos evangelho e o filme de Scorsese, “A última tentação”) – mas ele não pecou. O fato de não pecar o tornou menos humano? ou mais humano?

O termo “humano” parece suspeito a muitas pessoas. Sobretudo, os termos “humanismo” e “humanização”. Pessoas religiosas não aceitam o dito do sofista Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas”. Dizem que isso é relativismo e que Deus estabelece as normas. Mas pode ser que a norma que Deus estabelece para os homens seja o ser humano. José Maria Castillo escreveu um livro, traduzido pela Ed. Vozes, com o título “Jesus: a humanização de Deus”. O título até escandalizou algumas pessoas: reduzir Deus ao humano, onde se viu!? Ora, a carta aos Hebreus diz com toda a clareza que Jesus tem a dignidade divina, acima dos anjos, mas que Deus o fez “um pouco inferior aos anjos” (Hebreus 2,9), para ele cumprir sua missão de aproximar os humanos de Deus, participando da vida deles. Jesus não podia ficar na posição dos anjos – como diz também a Carta aos Filipenses: “esvaziou-se, assumindo a forma de servo e tornando-se semelhante ao ser humano” (Filipenses 2,7). Em outros termos: não é possível libertar o ser humano “a distância”, guardando distância dele. Por isso, Jesus foi feito “um pouco inferior aos anjos”. A honra angelical não serviria para o serviço que o “servo” assumiu. Só atrapalharia.

Mas será que esse serviço humano de Jesus é humanização de Deus? Na linguagem bíblica, que não é a dos filósofos: sim. A Bíblia diz, na primeira página, que Deus criou o ser humano segundo sua imagem e semelhança (Gênesis 1,26-27), mas isso não significa que o ser humano possa arrogar-se igualdade com Deus, pois essa é uma tentação diabólica (Gn 3,5). O ser humano é humanamente semelhante a Deus, é imagem de Deus, mas não é divinamente equiparado a Deus no sentido de estar acima de tudo, “conhecedor do bem e do mal” (Gn 3,5). E em que então o ser humano é tão humanamente divino? E Jesus tão divinamente humano… Talvez aquilo que o evangelista João viu em Deus: “Deus é amor”. No amor de doação o ser humano realiza sua semelhança com Deus e revela o lado humano de Deus. Assim, o rosto de Deus se percebe em tudo o que realiza a verdadeira humanidade. E o pecado é o que desdiz o verdadeiramente humano e esconde o rosto de Deus. Por isso, pecar não é humano, mas inumano, infra-humano. Excluir os fracos e os pobres. Mentir para salvar a cara e o patrimônio. Usar de violência em nome da paz. Chamar de serviço o que é mero aproveitamento pessoal, e de propriedade inalienável o que é apenas cedido em usufruto… Tudo isso fica aquém da vocação humana de sermos imagem e semelhança de Deus. Então, Jesus foi verdadeiramente humano e igual a nós, sobretudo, porque não pecou. Por outro lado, quem toma profundamente consciência de seu pecado sente-se indigno do ser humano, fica com vergonha. Por isso não gosta de se confessar…

Então, Jesus é o exemplo perfeito da humanização de Deus, e por essa solidariedade conosco pode nos mostrar o caminho da verdadeira realização humana. Assim, Deus tem razão por ter contemplado sua criatura do sexto dia com plena satisfação: “… era muito bom” (Gn 1,31). Estava pensando em Jesus.

(Os grifos são nossos.)

Sobre o autor:

Pe. Johan Konings é jesuíta, professor de Sagrada Escritura da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). É assessor bíblico-teológico da CNBB e membro da equipe que concretizou a tradução da Bíblia da CNBB. Dentre seus muitos livros mencionamos: A Bíblia, sua origem, sua leitura (Vozes, 2011); O Evangelho do discípulo amado (Loyola, 2017); João (Loyola, 2017); Evangelho Segundo João: Amor e Fidelidade (Vozes/ Sinodal, 2000); Lucas, o Evangelho da Graça e da Misericórdia (Loyola, 2017); Atos dos Apóstolos. O caminho da Palavra (Escrito com Isidoro Mazzarolo, Loyola, 2017); Marcos. O Evangelho do Reinado de Deus. (Escrito com Rita Maria Gomes, Loyola, 2018); Ser cristão. Fé e prática (Vozes, 2003); Hebreus (Loyola, 2017); A Palavra se fez livro (Loyola, 2002); Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da Fonte Q (Vozes, 2005); Jesus Comunica o Pai. O Evangelho de João Explicado ao Povo (Paulinas, 1989); Pastoral Universitária – Opção Libertadora (Paulinas, 1985)