Liberdades, direitos, culturas, credos e instituições democráticas sob ataque! É o fundamentalismo destilando ódio e semeando injustiça, discórdia e violência.
O termo fundamentalismo surgiu de um movimento religioso protestante-conservador, no século, 20 nos Estados Unidos, visava conter os avanços da modernidade liberal. Democracia, laicidade, as ciências, teorias como a da evolução, eram vistas como perigos a fé cristã. O fundamentalismo não é uma ameaça vinda do oriente a partir do atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001.
O fundamentalismo está fechado ao diálogo com pensamentos diferentes. Doutrinas fundadas em interpretações literais da Bíblia se convertem em verdades incontestáveis. Sua visão estreita de ser humano não admite que ele seja singular, com uma história própria, uma família. Com sua cultura, religião, educação, profissão, todo ser humano é potencialmente construtor da sociedade. A realidade humana é plural. Ninguém é dono da verdade. Seria um absurdo pretender controlar uma sociedade plural com normas morais fundadas em uma religião e impostas por autoridades religiosas.
O fundamentalismo se estendeu a política. Essa aproximação gerou um movimento sociorreligioso político que pode levar ao extremismo, colocando em risco a democracia. Política e religião são importantes, inclusive se inter-relacionam. Toda teologia tem implicações políticas. Ideologias políticas contém pressupostos teológicos.
Para Carl Schmitt (1888-1985), jurista e filósofo fundamentalista, conceitos fundadores do Estado moderno têm origem teológica. O fundamento do Estado e da lei está em um poder superior. A política é uma arena onde se digladiam teologias, divindades e seres humanos. Religiões fundamentalistas lutam para controlar o Estado para, através dele, impor sua doutrina sobre toda a sociedade. Deus se serve do Estado para proteger seus escolhidos dos perigos deste mundo. Para isso os fundamentalistas disputam o poder: que Deus seja obedecido pelo Estado. A salvação do mundo está na adoração religiosa e na subserviência à Deus.
Diante da insegurança, do medo e das adversidades, pessoas sentem-se vulneráveis. Supersticiosas, são levadas a buscar refúgio e proteção em poderes sobrenaturais. A realidade dos fatos é ignorada para dar lugar a uma crença que oferece explicação em uma vontade superior misteriosa que governa todas as coisas. Religiões que brotam do medo confundem a razão para controlar os comportamentos. A manipulação será mais forte ainda se for uma religião monoteísta revelada por uma divindade: Há um só Deus. A palavra dos seus porta-vozes é lei.
A ignorância é alimentada pela própria religião. Muitos fiéis fundamentalistas não têm ideias próprias. O medo de desobedecer a deus leva ao abandono da razão. É religião utilizada como “ópio do povo” por aqueles que se valem do poder para dar continuidade a desigualdade, à injustiça e à violência. Religião alienante explora fiéis alienados.
Essa dominação religiosa se estende à política. Diviniza-se políticos: “sob a aparência da religião, adora-se reis como se fossem deuses” (Baruch Espinoza). O fiel é ‘liberado’ de suas responsabilidades sociais para assumir os compromissos de seu líder religioso. Para controlar costumes, linguagens, pensamentos, corpos e espíritos, ‘leis divinas’ são impostas como leis civis. Pluralidade ideológica, diversidade cultural e religiosa, liberdades e direitos sociais e políticos tornam-se alvos preferenciais da intolerância.
Religião fundamentalista vira ideologia política, sem problemas em apoiar políticos autoritários e seus disparates. Os cidadãos são rebaixados a cumpridores de mandamentos divinos. Leis pretensamente divinas, quando impostas como leis políticas, impedem o exercício das liberdades políticas. A consciência política dá lugar à submissão religiosa. Elege-se quem tem mais fé. Projetos de nação dão lugar a projetos de religião. A sociedade paga um preço muito alto por cair nesse engodo. No caso brasileiro, setores do catolicismo e do protestantismo abraçaram o fundamentalismo e abandonaram o cristianismo para se tornarem bolsocrentes. A palavra de Bolsonaro e seus ‘apóstolos bolsonaristas’ é mais importante que a mensagem de Jesus Cristo.
Fundamentalismo é antidemocrático. Teocracia é o projeto do fundamentalismo! Portanto, “cuidado com a rigidez que eles lhe propõem: cuidado. Por trás de cada rigidez há algo de mau, não há espírito de Deus”, adverte papa Francisco.
Nós somos os responsáveis por nossa história. Não importa o quão entristecidos e angustiados estivermos, nunca deixemos de resistir e lutar. Nolite te bastardes carborundorum: Não deixe esses bastardos te derrubarem (Margareth Atwood – tradução livre).
(Os grifos são nossos)
Sobre o autor:
Élio Gasda é jesuíta, doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje. Sua reflexão teológica sobre os desafios e urgências da contemporaneidade, à luz da Fé, da Ética e dos princípios estruturantes da Doutrina Social da Igreja, vem contribuindo significativamente na caminhada do movimentos populares, as pastorais sociais, grupos diversos e lideranças comprometidas com a transformação das estruturas injustas da sociedade e a cultura da paz fundada na justiça e na fraternidade. Além de inúmeros artigos, dentre seus livros destacamos: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016). O Observatório da Evangelização tem publicado aqui alguns de seus artigos.