Fratelli Tutti, “uma Igreja sem receios de se encontrar com o diferente, mesmo com o contrário”. Entrevista com Dom Leonardo Steiner

Conhecer a realidade possibilita a conversão, sustentada no olhar, na escuta, no diálogo. Nesse caminho de mudança também tem um papel importante a religião, entendida “como expressão da experiência do Mistério, antes que se torna ideologia religiosa”. Fratelli Tutti nos ajuda a aprofundar nessa reflexão, um exercício que Dom Leonardo Ulrich Steiner, arcebispo de Manaus, realiza nesta entrevista.

Não podemos esquecer que ele é franciscano e conhece a espiritualidade do Poverello de Assis, que tem determinado decisivamente a vida do primeiro Papa jesuíta da história. A pobreza, que gera gratuidade e liberdade, tão presente no Homem de Assis, tem sido elemento fundamental no ministério do papa Francisco. Promotor da fraternidade, ele insiste em que todos estamos no mesmo barco, o que deve nos levar a entender, em palavras de Dom Leonardo Steiner, que “nos pertencemos como humanidade, nos pertencemos porque recebemos todos o mesmo hálito, o mesmo sopro do Espírito”.

Na entrevista, o arcebispo de Manaus destaca a importância da samaritanidade, que “ultrapassa a igualdade e, mesmo, a liberdade”. Na figura do samaritano estamos diante de alguém que “ilumina o conviver a partir das profundezas de nossa humanidade”, tendo como base a misericórdia. Junto com isso, Fratelli Tutti nos leva a refletir sobre a importância do diálogo e da escuta, sem esquecer, em palavra do arcebispo, que “para escutar é necessário ser povo, estar no meio das realidades, escutar os sonhos”.

Diante da situação política mundial, a cada dia mais cheia de incertezas, especialmente no Brasil, onde “quase perdemos o horizonte da política. Denegrimos tanto a política que quase temos a sensação de valer a pena um salvador da pátria, um ditador”, Dom Leonardo Steiner enfatiza que “deixamos que as ideologias tomassem conta da política por descuidarmos de desnudar politicamente as ideologias duras, funestas, sem cuidado pelo bem comum”.

Somos chamados a construir caminhos de futuro, segundo o arcebispo, a “proporcionar espaços aos diversos agentes da sociedade para que possam ser construtores da justiça, da verdade e da paz”. Para isso se faz necessário “cultivar quase artesanalmente as relações que foram, através dos tempos, rompidas”, a sermos “uma Igreja em diálogo, uma Igreja sem receios de se encontrar com o diferente, mesmo com o contrário”. Também na Amazônia, onde Fratelli Tutti e Querida Amazônia “estão em profunda sintonia”, nos desafia para “um cuidado matricial que mantém todos os seres graciosamente na casa comum”.

Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, concedendo entrevista.

Confira a entrevista:

1. Mesmo sabendo que uma encíclica encerra muitos elementos que passam despercebidos numa primeira leitura. Depois desse primeiro olhar, o que o senhor destacaria da nova encíclica do papa Francisco, Fratelli Tutti?

R.: Um olhar e escuta de como nos encontramos como humanidade: guerra, violência, isolamento, dominação, esquecimento dos pobres, a escravidão ideológica e escravização de pessoas, a incapacidade de buscar soluções comuns diante da pandemia. Um olhar e escuta para despertar, abrir olhos, para as questões fundamentais que possibilitam emergir a fraternidade, a justiça social, a política, a inclusão de todos, a partilha, o perdão, a justiça a dignidade. Uma proposta dialógica que busca e oferece a todos os homens e mulheres um espaço de encontro, por isso de escuta. Eleva a ação política como articulação da escuta e da organização para o bem de todos. Chama a todos para a responsabilidade de ser humano e do cuidado da Casa Comum.

Uma responsabilidade de todas as mulheres e os homens, de todos os Estados e nações, de todas as religiões. Religião como expressão da experiência do Mistério, antes que se torna ideologia religiosa. A Igreja descobrindo-se imersa no hoje da história, chamada a ser presença transformativa e esperançada do Reino de Deus: um reino eterno e universal: reino da verdade e da vida, reino da santidade e da graça, reino de justiça, do amor e da paz. A Igreja como lugar da escuta e do acolhimento das necessidades humanas mais profundas. Um texto, para os nossos dias, com a força da Mater et Magistra de São João XXIII, no seu tempo.

2. As duas encíclicas do papa Francisco, Laudato Si’ e Fratelli Tutti, ele também escreveu Lumen Fidei junto com o Papa Bento XVI, tem como inspirador a figura de Francisco de Assis. Como franciscano, quais elementos do Poverello de Assis descobre na pessoa do primeiro Papa que escolheu seu nome?

R.: A liberdade de quem percebeu um grande amor, que foi atraído pelo “Amor que não é amado”. Esse modo da minoridade que se manifesta como simplicidade, proximidade, acolhimento, misericórdia. Minoridade que é liberdade, pobreza; Pobreza-liberdade. Uma provocação para superar os espaços dos “meus” para chegar aos “teus”. Laudato Si’ e Fratelli Tutti são inspirações nascidas da essência do Evangelho. Nicolau de Cusa dizia que Deus est non Aliud; Deus Não-Outro. Na sua benevolência tão um de nós que é difícil conseguir dizer que seja outro de nós. Deus pequeno e humilde, Não-outro, revelado a Francisco.

Essa liberdade e gratuidade é a liberdade-pobreza tornada perceptível no Homem de Assis. Se lermos com vagar os textos vamos percebendo como somos provocados a uma nova humanidade, ao homem novo, a nova mulher, porque para lá do “eu”; genuinamente livre, porque simples, pobre. Pobre que oferece a liberdade da fraternidade com tudo e com todos. Pobre como o Não-Outro: livre, oferecendo a todos a paternidade matricial de Deus.

3. Mais uma vez, como já aconteceu com Laudato Si’, o papa Francisco quer ir além do universo eclesial. Qual a importância que a encíclica pode ter para uma sociedade cada vez mais globalizada?

R.: Estamos sempre mais globalizados. Estamos no estágio avançado da globalização da indiferença. Papa Francisco não permanece na indicação dos males da globalização, indica caminhos para globalização da esperança, do amor, da reconciliação, do perdão, da fraternidade. Partindo sempre da força do Evangelho apresenta as sementes do Verbo presente nas culturas ou, como algumas pessoas tem denominado, valores universais. Perceber as grandezas universais anotadas em textos inspirados.

O texto nos provoca a irmos além de nós mesmos, da nossa realidade, da nossa cultura, e, assim, nos abrirmos ao mistério que tudo mantém, sustém, cria e recria. Abre o horizonte de sentido e, por isso, leitura. Tive a percepção de proximidade e responsabilidade. Há uma busca de proximidade entre as pessoas que vivem na distância geográfica, ideológica, política, social. Uma responsabilidade, pois vivemos numa casa, navegamos num barco, na Amazônia o barco abriga a todos. O que aconteceria com a casa, o barco, de começássemos a destruir as paredes, de consumíssemos tudo o que o barco é? Globalizar, como despertar para o que é comum, mas, essencialmente para o que é todos. Nos pertencemos como humanidade, nos pertencemos porque recebemos todos o mesmo hálito, o mesmo sopro do Espírito. 

Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, registro de momento litúrgico.

4. Nesse mundo globalizado, onde as relações, desde o ponto de vista tecnológico, cada vez são mais fáceis, o Papa Francisco enfatiza a realidade de um mundo fechado. Como a encíclica pode ajudar a fazer realidade uma sociedade onde todas as pessoas possam ser inclusas, onde os muros sejam derrubados?

R.: Tem-se a impressão que o tecnológico torna a vida, o conviver mais fácil e rápido. É verdade, e serve de suporte. Mas, para o modo da convivência da técnica, o modo de pensar da técnica, há um caminho de sofrimento e despojamento, quase desvestimento. O pensar técnico da modernidade é o do cálculo, de impor à natureza o modo calculante de extrair da natureza os bens. Esse modo passa devagar a ser o modo da relação entre nós humanos. Valemos o quanto produzimos. Nos tornamos produtores, quando não produto, quase perdemos a gratuidade da artesania. O modo dos muros é a tentativa do asseguramento, da garantia. Vamos nos esquecendo que a segurança vem da graça da fraternidade.

A palavra fraternidade que formada de duas palavras: frater+idade; idade de it, a força, a energia, o vigor; frater = irmão. A força, o vigor que nos deixa ser irmãos, irmãs; a força, a energia que cria e recria o ser fraterno. Nesse sentido a narrativa do Samaritano é de uma força extraordinária. É que a samaritanidade ultrapassa a igualdade e, mesmo, a liberdade. A igualdade é extraordinariamente provocativa, pois se desvia do superior e inferior. A liberdade ainda mais, pois ultrapassa a possibilidade de poder decidir por isso ou por aquilo, pois liberdade é entrar na dinâmica de uma vida.

Talvez, como nos lembra Papa Francisco, a fraternidade tenha permanecido a quem da necessidade de discussão, da reflexão, do exercício. Como nos lembra a parábola, existe no modo do samaritano um cheiro de gratuidade que é mais que liberdade. É nessa grandeza inexplicável que se torna possível um encontro na igualdade e liberdade. Difícil de ser intuído, porque imaginamos a samaritanidade como socorro, como cuidado, como caridade. O caminho indicado por Papa Francisco é o da abertura, sem abertura; é o itinerário das pontes suspensas. Isto é, um movimento sem tréguas, como o de Deus que sempre está a nos oferecer gratuitamente a seu materno-paterno cuidado, gratuitamente.

5. O papa Francisco tem falado repetidas vezes da necessidade de uma Igreja samaritana. A encíclica faz uma profunda reflexão sobre a parábola do Bom Samaritano. Poderíamos dizer que o cuidado com os descartados pelo sistema, um número que tem aumentado exponencialmente com a pandemia da COVID-19, é hoje o grande apelo para a Igreja católica?

R.: Quem é o meu próximo? Fazer o bem sem saber a quem! Aquela palavra preciosa de São Paulo VI na Evangelii Nuntiandi: “O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas”. É a visibilização do modo de ser de Jesus Crucificado-Ressuscitado. Alguns, inclusive pensam que a samaritanidade não é suficiente para a globalização da esperança e o amor. Talvez, por falta de escuta. Qual o motivo para interromper a caminhada e cuidar de um semi-morto que não conhece? O que move “aquele outro do meu povo” para derramar vinho e óleo nas feridas e recolher em sua montaria e dar guarida de uma estalagem?

O samaritano ilumina o conviver a partir das profundezas de nossa humanidade. Não existe nenhum porquê, nem para que, nenhuma razão. Dizia um místico: é a aragem da gratuidade. Tem-se a percepção do mover-se da misericórdia. No ano da misericórdia fomos despertados para a essência do ser cristã: misericórdia! Quando a Igreja, nós Igreja, aceita a sua samaritanidade, ela cresce na sua identidade, na sua missão, no anúncio. No samaritano vem a lume, o crístico do cristão.

Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus.

6. A palavra diálogo é uma das que mais aparecem em Fratelli Tutti, sendo colocado como uma necessidade urgente. Como a encíclica pode ajudar a superar as dificuldades que existem na sociedade, também na Igreja, para assumir o diálogo como uma atitude cotidiana?

R.: Diálogo é escuta. Sem escuta, o outro não pode vir ao meu encontro e não tenho chance de encontrar o outro. Não nos tornamos “nós”. Da escuta nasce o logos, a palavra, o discurso, os gestos, os abraços, a confiança, a esperança, o consolo. Através da fala do outro entramos na comunhão de seu pensar e ser. Estamos carentes de diálogo, carentes de escuta. Escuta é disposição e disponibilidade. Escutar as angústias e as esperanças, as tristeza e alegrias, as mortes e suicídios, permanecendo com vida. Escutar almas! Almas como diz o poeta: quando a alma não é pequena. Papa Francisco tem expresso tantas vezes o modo da Igreja como maternidade, como mãe. Maternidade é essencialmente escuta. Do não saber, ser, é sempre mais maternidade.

Os discípulos e as discípulas de Jesus são a Igreja. Somos chamados a escutar: deixar ressoar as fomes do espírito e as fomes do corpo. Ao olharmos para Jesus, percebemos que ele está em contínuo dialogo com tudo e com todos: o Pai, os pobres, os escribas, os fariseus, os discípulos, as mulheres, as crianças, os cegos os surdos, os leprosos, as viúvas. O que sempre me impressiona é que Jesus cura na completude: teus pecados estão perdoados, vai em paz… Na finitude, na dor, no sofrimento, encontra o coração sofrido que necessita de cura. É o silêncio, a escuta, que possibilita o para além do percebido e ouvido. Escuta concede palavras, inspira gestos, acolhida. Para escutar é necessário ser povo, estar no meio das realidades, escutar os sonhos. Como é decisivo hoje o diálogo. Nele se manifestam caminhos de fraternidade.

7. Mais uma vez, o papa Francisco aborda na nova encíclica o tema da política, fazendo uma análise crítica dos diferentes sistemas políticos e sociais. Diante da realidade que estamos vivendo na política mundial e brasileira, qual seria a política necessária para o Brasil e para o mundo?

R.: A política é fundamental para uma sociedade, para um país. No Brasil quase perdemos o horizonte da política. Denegrimos tanta a política que quase temos a sensação de valer a pena um salvador da pátria, um ditador. Deixamos que as ideologias tomassem conta da política por descuidarmos de desnudar politicamente as ideologias duras, funestas, sem cuidado pelo bem comum. Descuidamos de educar para a política. Política como nos tem recordado Papa Francisco, a forma mais perfeita da caridade. Esse cuidado para com o todo de uma sociedade de um país. A discussão, o debate é sempre a favor do país, dos pobres, dos sem voz. Uma discussão e debate onde ninguém fica excluído. O ultrapassamento de interesses grupais, de ideologia, hoje, infelizmente, de religião, de mercado.

Nesse sentido papa Francisco insiste que “a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Embora se deva rejeitar o mau uso do poder, a corrupção, a falta de respeito das leis e a ineficiência, não se pode justificar uma economia sem política, porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspetos da crise atual”. A importância, a força da política. Política que é política carrega consigo uma generosidade, uma disponibilidade. É exercício da liberdade!

Ao abordar a questão política, Papa Francisco, nos desperta para a responsabilidade da Igreja para com a política. Educar para a política, insistir para que os leigos bem formados participem da política. Será o modo de avançarmos em muitas questões que hoje nos afligem: a ética, a economia, as políticas públicas, a saúde, a educação, a cultura, o lazer, a religiosidade. Dimensões tão fundamentais da fraternidade. A política abre espaço a fraternidade, mas ao mesmo tempo a fraternidade dá sentido à política.

8. Quais são os caminhos de futuro que Fratelli Tutti abre para a Igreja e para a sociedade?

R.: Uma afirmação apresentada no texto nos faz perceber a responsabilidade e a necessária participação de todos:

É necessário pensar a participação social, política e econômica segundo modalidades tais que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na construção do destino comum e, por sua vez, se incentive a que estes movimentos, estas experiências de solidariedade que crescem de baixo, do subsolo do planeta, confluam, sejam mais coordenados, se encontrem”.

Fratelli Tutti, 169

Proporcionar espaços aos diversos agentes da sociedade para que possam ser construtores da justiça, da verdade e da paz. Uma convocação às nossas sociedades e culturas a se escutarem, descobrirem as suas riquezas e o único em cada, mas no fundo manifestações do mesmo mistério que as une. Somos despertados para cultivar quase artesanalmente as relações que foram, através dos tempos, rompidas. Como cristãos, somos acordados para a responsabilidade da participação na sociedade oferecendo o que temos de melhor do nosso ser cristão: o “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Uma busca sem tréguas e sem limites. Uma Igreja em diálogo, uma Igreja sem receios de se encontrar com o diferente, mesmo com o contrário.

Para nós que estamos na Amazônia, a Igreja, existe um caminho a ser percorrido, pois Fratelli Tutti e Querida Amazônia estão em profunda sintonia. Se conseguirmos sonhar com os sonhos da Querida Amazônia, estaremos abrindo caminhos de fraternidade na Amazônia. Os sonhos, quando lidos como totalidade, abrem o espírito para a convivência harmoniosa-tensa, um cuidado matricial que mantém todos os seres graciosamente na casa comum. A riqueza dos nossos povos e culturas ensinam que fraternidade não obriga, mas acolhe, respeita, ensina, celebra, familiariza. Temos muitos desafios para preservar, cuidar e cultivar a fraternidade na Amazônia, nossa Casa Comum. A fraternidade nos anima e aquece.

Sobre o autor:

Luis Miguel Modino

Luis Miguel Modino – Padre diocesano de Madri, missionário fidei donum na Amazônia, residindo atualmente em Manaus – AM. Faz parte da Equipe de Comunicação da REPAM. Correspondente no Brasil de Religión Digital e colaborador do Observatório da Evangelização e em diferentes sites e revistas.

(Os grifos são nossos)

A seguir, a versão do texto em espanhol, confira:

Mons. Leonardo Steiner: Fratelli Tutti, “una Iglesia sin miedo a encontrarse con el diferente, incluso con el contrario”

Conocer la realidad permite la conversión, sostenida por la mirada, la escucha y el diálogo. En este camino de cambio, la religión también juega un papel importante, entendida “como una expresión de la experiencia del Misterio, antes de que se convierta en una ideología religiosa”. Fratelli Tutti nos ayuda a profundizar en esta reflexión, un ejercicio en el que el arzobispo de Manaos, Leonardo Ulrich Steiner, nos ayuda en esta entrevista.

No podemos olvidar que, como franciscano, conoce la espiritualidad del Poverello de Asís, que ha determinado decisivamente la vida del primer Papa jesuita de la historia. La pobreza, que genera gratuidad y libertad, tan presente en el Hombre de Asís, ha sido un elemento fundamental en el ministerio del Papa Francisco. Promotor de la fraternidad, insiste en que todos estamos en el mismo barco, lo que debería llevarnos a entender, en palabras de Monseñor Leonardo Steiner, que “nos pertenecemos a nosotros mismos como humanidad, nos pertenecemos a nosotros mismos porque todos recibimos el mismo soplo, el mismo aliento del Espíritu”.

En la entrevista, el arzobispo de Manaos destaca la importancia de la samaritanidad, que “va más allá de la igualdad e incluso de la libertad”. En la figura del Samaritano estamos ante alguien que “ilumina la coexistencia desde las profundidades de nuestra humanidad”, basada en la misericordia. Junto a esto, Fratelli Tutti nos lleva a reflexionar sobre la importancia del diálogo y la escucha, sin olvidar, en palabras del arzobispo, que “para escuchar es necesario ser pueblo, estar en medio de las realidades, escuchar los sueños”.

Ante la situación política mundial, cada día más llena de incertidumbre, especialmente en Brasil, donde “casi hemos perdido el horizonte de la política. Denunciamos tanto la política que casi tenemos la sensación de que vale la pena ser un salvador de la patria, un dictador”, Monseñor Leonardo Steiner subraya que “dejamos que las ideologías se adueñen de la política al descuidarnos de desnudar políticamente a las ideologías duras y desastrosas, que no se preocupan por el bien común”.

Estamos llamados a construir caminos para el futuro, a “proporcionar espacios a los diversos agentes de la sociedad para que puedan ser constructores de la justicia, la verdad y la paz”, según el arzobispo. Para ello es necesario “cultivar casi artesanalmente las relaciones que han sido, a lo largo del tiempo, rotas”, ser “una Iglesia en diálogo, una Iglesia sin miedo al encuentro con el diferente, incluso con el contrario”. También en la Amazonía, donde Fratelli Tutti y Querida Amazonía, que “están en profunda armonía”, nos desafían a “un cuidado de la matriz que mantiene a todos los seres con gracia en la casa común”.

1. Incluso sabiendo que una encíclica contiene muchos elementos que pasan desapercibidos en una primera lectura. Después de esa primera mirada, ¿qué destacaría de la nueva encíclica del Papa Francisco, Fratelli Tutti?

Una mirada y escucha de cómo nos encontramos como humanidad: guerra, violencia, aislamiento, dominación, olvido de los pobres, esclavitud ideológica y esclavitud de la gente, la incapacidad de buscar soluciones comunes frente a la pandemia. Una mirada y una escucha para despertar, para abrir los ojos, a las cuestiones fundamentales que hacen posible que surja la fraternidad, la justicia social, la política, la inclusión de todos, el compartir, el perdón, la justicia y la dignidad. Una propuesta dialógica que busca y ofrece a todos los hombres y mujeres un espacio de encuentro, por lo tanto, de escucha. Eleva la acción política como una articulación de la escucha y la organización para el bien de todos. Llama a todos a la responsabilidad de ser humanos y de cuidar la Casa Común.

Una responsabilidad de todas las mujeres y hombres, de todos los estados y naciones, de todas las religiones. La religión como una expresión de la experiencia del Misterio, antes de que se convierta en ideología religiosa. La Iglesia se descubre inmersa en la historia de hoy, llamada a ser una presencia transformadora y esperanzadora del Reino de Dios: un reino eterno y universal: el reino de la verdad y la vida, el reino de la santidad y la gracia, el reino de la justicia, el amor y la paz. La Iglesia como lugar de escucha y de acogida de las necesidades humanas más profundas. Un texto, para nuestros días, con la fuerza de la Madre y Magistrado de San Juan XXIII en su tiempo.

2. Las dos encíclicas del Papa Francisco, Laudato Sì y Fratelli Tutti, también escribió Lumen Fidei junto con el Papa Benedicto XVI, tienen como inspiración la figura de Francisco de Asís. Como franciscano, ¿qué elementos del Poverello de Asís descubre en la persona del primer Papa que eligió su nombre?

La libertad de quien percibió un gran amor, que se sintió atraído por el “Amor que no es amado”. Esta forma de minoría que se manifiesta en la sencillez, la cercanía, la acogida, la misericordia. La minoría que es la libertad, la pobreza; Pobreza-libertad. Una provocación para superar los espacios de “lo mío” para llegar a “lo tuyo”. Laudato Sì y Fratelli Tutti son inspiraciones nacidas de la esencia del Evangelio. Nicolás de Cusa dijo que Deus est non Aliud; Dios No-Otro. En su benevolencia tan uno de nosotros que es difícil decir que es otro de nosotros. Dios pequeño y humilde, No-Otro, revelado a Francisco.

Esta libertad y gratuidad es la libertad-pobreza que se hizo perceptible en el Hombre de Asís. Si leemos despacio los textos, veremos cómo se nos provoca a una nueva humanidad, al hombre nuevo, a la nueva mujer, más allá del “yo”; genuinamente libre, simple, pobre. Pobre, que ofrece la libertad de la fraternidad con todo y con todos. Pobre como el No-Otro: libre, ofreciendo a todos la paternidad materna de Dios.

3. Una vez más, como sucedió con Laudato Sí, el Papa Francisco quiere ir más allá del universo eclesial. ¿Qué importancia puede tener la encíclica para una sociedad cada vez más globalizada?

Cada vez estamos más globalizados. Estamos en la fase avanzada de la globalización de la indiferencia. El Papa Francisco no se queda en la indicación de los males de la globalización; indica caminos para la globalización de la esperanza, del amor, de la reconciliación, del perdón, de la fraternidad.  Siempre partiendo del poder del Evangelio, presenta las semillas del Verbo presentes en las culturas o, como algunos los han llamado, los valores universales. Percibir las magnitudes universales señaladas en los textos inpiracionales.

El texto nos provoca a ir más allá de nosotros mismos, de nuestra realidad, de nuestra cultura, y así abrirnos al misterio que mantiene, sostiene, crea y recrea todo. Abre el horizonte del significado y, por lo tanto, de la lectura. Tuve la percepción de cercanía y responsabilidad. Se busca la cercanía entre personas que viven en la distancia geográfica, ideológica, política, social. Una responsabilidad, porque vivimos en una casa, navegamos en un barco, en la Amazonía el barco alberga a todo el mundo. ¿Qué le pasaría a la casa, al barco, si empezamos a destruir las paredes, si consumimos todo lo que es el barco? Globalizar, como despertar a lo que es común, pero esencialmente a lo que es todo el mundo. Nos pertenecemos como humanidad, nos pertenecemos porque todos recibimos el mismo soplo, el mismo aliento del Espíritu.

4. En este mundo globalizado, donde las relaciones, desde el punto de vista tecnológico, son cada vez más fáciles, el Papa Francisco enfatiza la realidad de un mundo cerrado. ¿Cómo puede ayudar la encíclica a hacer realidad una sociedad en la que todas las personas puedan ser incluidas, en la que los muros sean derribados?

Uno tiene la impresión de que la tecnología hace que la vida, la convivencia, sea más fácil y rápida. Es cierto, y sirve de apoyo. Pero para la forma de coexistencia de la técnica, la forma de pensar de la técnica, hay un camino de sufrimiento y despojo, casi de desvestirse. El pensamiento técnico de la modernidad es el del cálculo, el de imponer a la naturaleza un modo de cálculo para extraer los bienes de la naturaleza. Ese modo se convierte lentamente en el modo de la relación entre nosotros los humanos. Valemos lo que producimos. Nos convertimos en productores, si no en productos, casi perdemos la gratuidad de la artesanía. La realidad de los muros es el intento de seguridad, de garantía. Olvidamos que la seguridad viene de la gracia de la fraternidad.

La palabra fraternidad está formada por dos palabras: frater+idade; edad de it, la fuerza, la energía, el vigor; frater = hermano. La fuerza, el vigor que nos permite ser hermanos, hermanas; la fuerza, la energía que crea y recrea el ser fraterno. En este sentido, la narración del Samaritano es de una fuerza extraordinaria. La samaritanidad supera la igualdad e incluso la libertad. La igualdad es extraordinariamente provocativa porque se desvía de lo superior y lo inferior. La libertad lo es aún más, porque va más allá de la posibilidad de poder decidir por esto o aquello, porque la libertad es entrar en la dinámica de una vida.

Tal vez, como el Papa Francisco nos recuerda, la fraternidad se ha mantenido más allá de la necesidad de discusión, reflexión y ejercicio. Como la parábola nos recuerda, hay en el camino del samaritano un olor a gratuidad que es más que la libertad. Es en esta inexplicable grandeza que un encuentro en la igualdad y la libertad se hace posible. Es difícil de intuirlo, porque imaginamos la samaritanidad como socorro, como cuidado, como caridad. El camino indicado por el Papa Francisco es el de la apertura, sin apertura; es el itinerario de los puentes suspendidos. Es decir, un movimiento sin tregua, como el de Dios que siempre nos ofrece su cuidado materno-paterno, gratuitamente.

5. El Papa Francisco ha hablado repetidamente de la necesidad de una Iglesia Samaritana. La encíclica hace una profunda reflexión sobre la parábola del Buen Samaritano. ¿Podríamos decir que el cuidado de los descartados por el sistema, un número que ha aumentado exponencialmente con la pandemia de COVID-19, es hoy el gran llamado de la Iglesia Católica?

¿Quién es mi próximo? ¡Haz el bien sin saber a quién! Esa preciosa palabra de San Pablo VI en la Evangelii Nuntiandi: “El hombre contemporáneo escucha con más gusto a los testigos que a los maestros, decíamos hace poco a un grupo de laicos, o si escucha a los maestros es porque son testigos”. Es la visualización de la forma de ser de Jesús Crucificado-Resucitado. Algunos incluso piensan que la samaritanidad no es suficiente para la globalización de la esperanza y el amor. Tal vez, por falta de escucha. ¿Cuál es la razón para interrumpir el viaje y ocuparse de un medio muerto que no conoce? ¿Qué mueve a “ese otro de mi pueblo” a verter vino y aceite sobre sus heridas y a recoger en su cabalgadura y dar cobijo en una posada?

El Samaritano ilumina la convivencia desde las profundidades de nuestra humanidad. No hay un porqué, ni para qué, no hay razón. Un místico dijo: es el arado de la gratuidad. Uno tiene la percepción del movimiento de la misericordia. En el año de la misericordia se nos despertó la esencia del ser cristiano: ¡la misericordia! Cuando la Iglesia, nosotros la Iglesia, acepta su samaritanidad, crece en su identidad, en su misión, en su anuncio. En el Samaritano sale a la luz lo crístico del cristiano.

6. La palabra diálogo es una de las que más aparecen en Fratelli Tutti, siendo colocado como una necesidad urgente. ¿Cómo puede la encíclica ayudar a superar las dificultades que existen en la sociedad, incluso en la Iglesia, para asumir el diálogo como una actitud cotidiana?

El diálogo es escuchar. Sin escuchar, la otra persona no puede venir a mi encuentro y no tengo ninguna posibilidad de conocer a la otra persona. No nos convertimos en “nosotros”. De la escucha nacen el logos, la palabra, el discurso, los gestos, los abrazos, la confianza, la esperanza, el consuelo. A través del discurso de la otra persona entramos en la comunión de su pensamiento y su ser. Necesitamos dialogar, necesitamos escuchar. Escuchar es disposición y disponibilidad. Escuchar las angustias y las esperanzas, las tristezas y las alegrías, las muertes y suicidios, permaneciendo vivos. ¡Escuchar a las almas! Almas como dice el poeta: cuando el alma no es pequeña. El Papa Francisco ha expresado muy a menudo el camino de la Iglesia como madre. La maternidad es esencialmente escuchar. De no saber, ser, es siempre más maternidad.

Los discípulos y las discípulas de Jesús son la Iglesia. Estamos llamados a escuchar: dejar que el hambre del espíritu y el hambre del cuerpo resuenen. Cuando miramos a Jesús, vemos que está en continuo diálogo con todo y con todos: el Padre, los pobres, los escribas, los fariseos, los discípulos, las mujeres, los niños, los ciegos, los sordos, los leprosos, las viudas. Lo que siempre me impresiona es que Jesús sana en su totalidad: tus pecados son perdonados, ve en paz…. En la finitud, en el dolor, en el sufrimiento, encuentra el corazón sufriente que necesita curación. Es el silencio, la escucha, lo que permite ir más allá de lo que se percibe y se escucha. Escuchar concede palabras, inspira gestos, acogida. Para escuchar es necesario ser pueblo, estar en medio de las realidades, escuchar los sueños. Qué decisivo es el diálogo hoy en día. En él hay formas de fraternidad.

7. Una vez más, el Papa Francisco aborda en la nueva encíclica el tema de la política, haciendo un análisis crítico de los diferentes sistemas políticos y sociales. Frente a la realidad que vivimos en la política mundial y brasileña, ¿qué política sería necesaria para Brasil y para el mundo?

La política es fundamental para una sociedad, para un país. En Brasil casi hemos perdido el horizonte de la política. Denunciamos tanto la política que casi tenemos la sensación de ser dignos de un salvador de la patria, un dictador. Dejamos que las ideologías se adueñasen de la política porque nos descuidamos de desnudar a la política de las ideologías duras y funestas, sin preocuparnos por el bien común. Nos descuidamos de educar para la política. La política, como nos ha recordado el Papa Francisco, es la forma más perfecta de caridad. Ese cuidado para toda la sociedad de un país. La discusión, el debate siempre es a favor del país, de los pobres, de los sin voz. Una discusión y un debate donde nadie queda excluido. La superación de los intereses de grupo, de la ideología, hoy, por desgracia, de la religión, del mercado.

En este sentido, el Papa Francisco insiste en que “la política no debe someterse a la economía, y la economía no debe someterse a los dictados y al paradigma eficiente de la tecnocracia”. Aunque hay que rechazar el abuso de poder, la corrupción, la falta de respeto a las leyes y la ineficiencia, una economía sin política no puede justificarse, porque sería incapaz de promover otra lógica para gobernar los diversos aspectos de la crisis actual. La importancia, la fuerza de la política. La política que es la política lleva consigo una generosidad, una voluntad. ¡Es un ejercicio de libertad!

Al abordar la cuestión política, el Papa Francisco nos despierta a la responsabilidad de la Iglesia en la política. Educar para la política, insistir en que los laicos bien formados participen en la política. Esta será la forma de avanzar en muchos de los temas que nos afligen hoy en día: ética, economía, política pública, sanidad, educación, cultura, ocio, religión. Dimensiones tan fundamentales de la fraternidad. La política da lugar a la fraternidad, pero al mismo tiempo la fraternidad da sentido a la política.

8. ¿Qué caminos para el futuro abre el Fratelli Tutti para la Iglesia y la sociedad?

Una afirmación presentada en el texto nos hace ver la responsabilidad y la necesaria participación de todos: “Es necesario pensar en la participación social, política y económica de tal manera que incluya a los movimientos populares y anime las estructuras de gobierno local, nacional e internacional con ese torrente de energía moral que proviene de la integración de los excluidos en la construcción del destino común y, a su vez, anime a estos movimientos, a estas experiencias de solidaridad que crecen desde abajo, desde el subsuelo del planeta, a converger, a estar más coordinados, a encontrarse”.

Proporcionar espacios para que los diversos agentes de la sociedad sean constructores de justicia, verdad y paz. Una llamada a nuestras sociedades y culturas para escucharse mutuamente, para descubrir sus riquezas y lo que hay de único en cada una, pero en el fondo manifestaciones del mismo misterio que las une. Somos despertados a cultivar casi artesanalmente las relaciones que han sido, a través del tiempo, rotas. Como cristianos, somos despertados a la responsabilidad de participar en la sociedad ofreciendo lo mejor de nuestro ser cristiano: “amaos unos a otros como yo os he amado”. Una búsqueda sin tregua y sin límites. Una Iglesia en diálogo, una Iglesia sin miedo a encontrarse con el diferente, incluso con el contrario.

Para nosotros que estamos en la Amazonía, la Iglesia, hay un camino que debe ser recorrido, porque Fratelli Tutti y Querida Amazonía están en profunda armonía. Si logramos soñar los sueños de la Querida Amazonía, estaremos abriendo caminos de fraternidad en la Amazonía. Los sueños, cuando se leen en su totalidad, abren el espíritu para la coexistencia armoniosa, un cuidado matricial que mantiene a todos los seres con gracia en la casa común. La riqueza de nuestros pueblos y culturas enseña que la fraternidad no obliga, sino que acoge, respeta, enseña, celebra, familiariza. Tenemos muchos desafíos para preservar, cuidar y cultivar la fraternidad en la Amazonía, nuestra Casa Común. La fraternidad nos anima y estimula.