Houve um homem enviado por Deus. Seu nome era Pedro Casaldáliga. Nascido na Espanha, respondeu seu chamado ao seguimento radical de Jesus na pobreza, na castidade e na obediência entre os religiosos claretianos. Acolheu o mandato missionário e se dirigiu ao Brasil central na conflitiva região do Araguaia. Disse sim à missão episcopal e viveu um longo ministério à frente da Prelazia de São Félix do Araguaia, servindo aos mais pobres. Talvez tenha amado a Amazônia e os indígenas como nenhum brasileiro.
Somente a mística, fruto de uma adesão de todo seu ser ao evangelho, poderia sustentar um estilo de vida de simplicidade, sobriedade, pobreza. Somente a mística poderia nos fazer compreender a firmeza de quem nunca titubeou diante de seus opositores, mesmo no interior da Igreja. Somente a mística, alimentada no silêncio das constantes vigílias noturnas, para dar-lhe a palavra profética e talhá-lo como poeta.
Na Igreja do Brasil, Pedro Casaldáliga foi um patriarca na recepção das conclusões da Conferência de Medellín (1968). É preciso retomar o que disseram os bispos em Medellín para a compreensão do modo de ser e de agir desse bispo-prelado que se tornou conhecido no mundo inteiro por sua defesa dos pobres:
Cristo Nosso Salvador não apenas amou os pobres, mas, ‘sendo rico se fez pobre’, viveu na pobreza, concentrou sua missão no anúncio da libertação dos pobres e fundou sua Igreja como sinal dessa pobreza entre os homens… Os bispos queremos aproximar-nos cada vez mais com simplicidade e sincera fraternidade dos pobres, possibilitando-lhes um acesso acolhedor junto a nós. Devemos tornar mais aguda a consciência do dever de solidariedade para com os pobres. Esta solidariedade significará fazer nossos seus problemas e lutas e saber falar por eles. Isto se concretizará na denúncia da injustiça e opressão, na luta contra a intolerável situação em que se encontra, frequentes vezes, o pobre e na disposição de dialogar com os grupos responsáveis por esta situação, a fim de fazê-los compreender suas obrigações… A promoção humana será a linha de nossa ação em favor do pobre, respeitando sua dignidade pessoal e ensinando-lhe a ajudar-se a si mesmo… Desejamos que nossa morada e modo de vida sejam modestos, nosso modo de vestir simples e nossas obras e instituições funcionais, sem aparato nem ostentação (Medellín, Pobreza da Igreja).
A opção de seguir Jesus pobre ficou estampada em seus funerais. Seu corpo estava envolto por uma simples túnica branca e com a estola sacerdotal de artesanato nicaraguense. Uma cruz singela de madeira feita pelos indígenas. Trazia o anel de tucum em uma de suas mãos. Também nas mãos o rosário de Nossa Senhora. Os pés estavam descalços, tendo acima deles a bíblia aberta. Nada na cabeça. Essas imagens correram o mundo. A forma de depositar o corpo na urna causou estranheza em algumas pessoas. Creio que a estranheza é a reação à interpelação que Dom Pedro continuou a nos fazer.
Ao saber de sua morte, ocorrida no último dia 8 de agosto de 2020, orei com estas palavras:
Ó Deus, como Eliseu pediu o dobro do espírito do profeta Elias, dá-nos como bispos da tua Igreja uma porção do espírito, da mística e da profecia de dom Pedro Casaldáliga. Que ele descanse em paz.
Amém.
+ João Justino de Medeiros Silva
Arcebispo Metropolitano de Montes Claros