Evangelização e os desafios da mudança de mentalidade e de postura em defesa da Vida (I)

Não há evangelização sem compromisso com uma mudança de mentalidade; sem conversão, diríamos em linguagem religiosa. Quem acolhe de todo coração a boa nova do Reino de Deus, anunciada e testemunhada por Jesus de Nazaré, compromete-se com a busca diária de concretização pessoal e coletiva da vida nova. Compreender as implicações para concretizar a vida nova está no centro dos desafios e urgências da vida cristã de ontem, de hoje e de amanhã: ser fiel ao Evangelho e ser fiel ao contexto em que vivemos. Como cultivar essas duas fidelidades? Por um lado, procurar conhecer, com cada vez maior profundidade, a vida e a pessoa de Jesus Cristo, encontrar-se com o Ressuscitado e, pela força do Espírito Santo, cultivar intimidade com o projeto do Reino de Deus. Por outro, procurar aprofundar criticamente o conhecimento do contexto em que vivemos e procurar dar respostas pessoais e coletivas pertinentes  aos seus desafios e urgências.

Os desafios e urgências postos pela reflexão ecológica pertencem a todos nós e implica radical mudança de mentalidade e mobilização para o cultivo de posturas e práticas de defesa da vida. Pela pertinência das ideias da indiana Vandana Shiva compartilhadas numa entrevista concedida a Barsamian, divulgada no site: www.radicallivros.com.br e pelo prof. Roberto Naime, do Ecodebate, o Observatório da Evangelização as disponibilizará aqui:

AS MONOCULTURAS DA MENTE

(Parte I)

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Dra. Vandana Shiva

Vandana Shiva, física, escritora e ativista ambiental, é figura de destaque no movimento anti-globalização e consultora para questões ambientais da “Third World Network”. Entre suas atividades mais recentes, incluem-se iniciativas de ampla divulgação para a preservação das florestas da Índia, luta em favor das sementes como patrimônio da humanidade e programas sobre biodiversidade dirigidos a diferentes coletividades, além de pesquisas para o desenvolvimento de uma nova estrutura legal para os direitos de propriedade coletivos, como alternativa para os sistemas de direitos de propriedade intelectual atualmente em vigor. É diretora da Research Foundation for Science, Technology and Ecology em Nova Déli, na Índia, e foi pioneira nas pesquisas sobre biodiversidade e etnociência nativa. Shiva recebeu o Right Livelihood Award, também conhecido como o Prêmio Nobel alternativo. É autora de “Biopirataria” (Vozes), “Stolen Harvest” (inédito em português) e “Guerras por água” (Radical Livros).

Sobre o livro “Guerras por água” afirma ela:

é um resumo dos meus 25 anos de engajamento ecológico, em que vi cada conflito ambiental iniciar a partir da devastação de nossos sistemas de água por causa de um desenvolvimento perdulário e abusivo. Por exemplo, grandes represas deixaram dezenas de milhares de pessoas inundadas. Essas represas realmente não contribuem em nada para um desenvolvimento a longo prazo nas áreas que recebem essa água. Existe a salinização. Há as inundações. Sistemas agrários que utilizam cinco vezes mais água para produzir a mesma quantidade de alimentos são ditos produtivos e eficientes. O suposto milagre da Revolução Verde é um dos grandes motivos do desaparecimento de nossos lençóis freáticos, bem como da água utilizada na superfície terrestre em áreas que nunca deveriam ter passado por irrigação intensa. A mudança de um sistema de irrigação prudente, de uma agricultura que depende da chuva, de safras resistentes à seca, de brotos nutritivos, tudo isso foi substituído pelas monoculturas de trigo árido e variedades de arroz que arruinaram não apenas os aquíferos da Índia, mas também aqueles existentes em todo o mundo. Além dessas, há novas ameaças vindas dos planos de privatização da água, financiados pelo Banco Mundial. O Banco Mundial foi responsável por desviar o uso da água na Índia para modelos não sustentáveis. E agora está usando a crise da não-sustentabilidade para dizer que nem o governo nem o povo deveriam tomar decisões sobre a questão da água. O domínio da água agora está se dirigindo, por meio de concessões e novas providências chamadas parcerias públicas-privadas, para as mãos de quatro ou cinco proprietários da água que gostariam de possuir a água de todo este planeta, assim como os quatro ou cinco proprietários da vida que tentam possuir as sementes deste planeta.

Indo da questão da água para a do alimento, a biotecnologia foi aclamada por gerar grandes benefícios para aqueles que têm fome no mundo. Ela assim se manifestou:

entendo a biotecnologia, pela minha experiência, olhando para a Revolução Verde. Ela empobreceu agricultores a um nível em que, atualmente, eles estão se suicidando. A biotecnologia está trabalhando precisamente na mesma trajetória linear. O objetivo da Revolução Verde era vender mais produtos químicos. O objetivo da biotecnologia também é vender mais produtos químicos. É possível entender essa questão observando as duas principais aplicações da tecnologia para a comercialização de safras. A primeira é aquelas safras resistentes a enormes quantidades de glifosato ou aquelas resistentes a herbicidas que podem receber altas doses de produtos químicos e mesmo assim sobreviver. Essa é uma estratégia para continuar a vender os herbicidas, e não para reduzir o uso deles.

Continua ela:

a segunda categoria mais importante de safras é chamada “Bt”, nome proveniente de “Bacillus thuringiensis”. Pega-se um gene produtor de toxina de uma bactéria chamada “Bt” para utilizar nas safras; as plantas dessas safras vão produzindo essa toxina em suas células continuamente. Supõe-se que esta seja uma alternativa para substituir o uso de pesticidas. Em minha opinião, ecologicamente, são plantas produtoras de pesticida. Então você não está somente jogando pesticidas na plantação de vez em quando, que é o que se faz com os pesticidas normais, mas literalmente produzindo toxinas o tempo todo. E elas estão indo dentro de nossa comida. Elas estão indo para a cadeia alimentar e para a rede ecológica da vida. O mais importante é que a natureza é inteligente. As espécies são inteligentes. As poucas espécies contra as quais aqueles pesticidas deveriam agir, da família de minhocas das pestes, desenvolveram resistência rápida. Agora estão tendo uma toxina liberada todo o tempo. Elas sofrem mutações. Dentro de pouco tempo, haverá uma evolução da resistência de todas as pestes que você antes queria controlar. Isso significa que você agora tem de usar super-pesticidas para controlar essas pestes resistentes. Novamente digo que esses não são sistemas de redução de uso de produtos químicos e pesticidas. Até o milagre de nos prover com safras nutritivas, safras que na verdade contêm doenças, é um mito. O arroz dourado (“golden Rice”) é um exemplo claro de uma maneira altamente ineficiente de fornecer vitamina A aos pobres. O Banco Mundial, a Organização Mundial da Saúde e a Organização para Alimentação e Agricultura estabeleceram que o único caminho pelo qual a deficiência de vitaminas seria erradicada das comunidades pobres seria ceder às mulheres uma diversidade de sementes que são fonte de vitamina A. Essas diferentes sementes são milhares de vezes mais ricas do que o arroz dourado jamais será. Aqueles organismos, como Banco Mundial, OMS, OAA, nem sequer começaram a avaliar o significado, em termos ecológicos, caso tenhamos plantas produtoras de vacinas e o que isso significaria em termos de riscos ao sistema alimentar. Se eles não puderam manter o milho “Starling”, que não deveria ser comido por humanos e era apenas destinado para a alimentação do gado, fora da cadeia alimentar humana, o que eles farão com as plantas produtoras de vacina que supostamente não podem ser ingeridas por humanos? Se sabe que doses excessivas de qualquer vacina podem se tornar uma fonte de problemas mais do que uma solução ou uma cura.

Provocada sobre um relatório chamado Sementes do suicídio: os custos ecológicos e humanos da globalização, ela declara:

lembro-me especificamente de que estávamos no inverno de 1997. Os primeiros relatórios, minúsculos, de poucas linhas, iniciaram esclarecendo casos de suicídio entre agricultores. Corremos imediatamente para as áreas afetadas. Este caso em particular ocorreu em Andhra Pradesh, um dos estados que, supostamente, é o mais integrado com a economia global. Por que os agricultores começaram a contrair dívidas? Fomos capazes de estabelecer, por meio de estudos muito detalhados, que foi por causa da mudança da agricultura ecológica e da produção de matéria-prima principal feita com insumos não adquiridos para colheitas pagas como a de algodão, que alcançou 99 por cento dessas regiões desde que a globalização começou a mudar nossa agricultura. Novas sementes e sementes híbridas não podem ser mantidas por agricultores e as empresas não lhes dizem que essas sementes não são renováveis. As sementes híbridas são muito predispostas a pestes e os agricultores precisam dos pesticidas. Os agricultores não têm dinheiro. As mesmas empresas, por meio de seus agentes no local, no nível da população, que são também os agiotas e senhorios da região, acabam fornecendo o crédito a juros muito altos a fim de movimentar suas sementes e seus produtos químicos. Em um ou dois anos, os agricultores acabam contraindo centenas de milhares de rúpias de dívidas.

Finalizando ela aduz:

normalmente, na agricultura tradicional praticada pelas sociedades do Terceiro Mundo, o ato de plantar faz parte de uma decisão coletiva. As pessoas chegam à conclusão de que o tempo será de tal maneira, a chuva será de tal modo, a safra será boa, essa é a quantidade de água que temos. Vamos plantar assim. O novo sistema desvia o agricultor de seu papel como membro de uma comunidade e produtor para ser um consumidor de insumos adquiridos, tais como sementes e produtos químicos. Sem dizer nada a ninguém, os homens farão um empréstimo. Nem mesmo suas famílias saberão disso. O homem não tem coragem de chegar em casa e dizer “fiz 200.000 rúpias de dívida”. No último ano, houve um caso em que um homem não podia pagar sua dívida, e o agiota, o agente local das multinacionais, disse “Não se preocupe. Dê para mim sua mulher”. O homem não conseguiu tolerar aquela violência cometida contra si e sua esposa e bebeu o mesmo pesticida que estava usando e o que o levara a contrair aquela dívida. Cada povoado que visitei no estado de Punjab apresentava casos de suicídio. O uso de pesticida cresceu 2.000 por cento na década passada. As sementes híbridas são muito dispendiosas. Elas são anunciadas e promovidas dos modos mais antiéticos. Parte do que a globalização fez foi remover quaisquer regulamentos do setor de sementes. A globalização é a desregulação do comércio. As empresas podem vender o que quiserem, em seus próprios termos, sem ninguém para controlar. Nós as chamamos de Sementes do suicídio porque tudo está começando com as sementes. Mas também temos um programa chamado Sementes da Esperança em que estamos colocando variedades polinizadas nas mãos dos agricultores, especialmente em Punjab. O entusiasmo é surpreendente.

Referência: http://ideiaweb.org/?p=1131

Fonte:

Ecodebate