Evangelização e Liturgia

Segundo o papa Francisco, em sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudiumdo ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho” (EG 262). Por isso, dom Geovane inicia seu artigo recordando o Concílio Vaticano II que diz “a liturgia é o coração pulsante da Igreja, porém não esgota toda a sua ação evangelizadora (SC 9)” Ela situa-se no centro da sua atividade missionária qual fonte que rejuvenesce sem cessar a comunidade de fé… Mas “‘Missão, evangelização, pastoreio, liturgia, serviço’ são realidades inseparáveis que expressam o mistério da presença de Cristo agindo no mundo através do seu corpo eclesial. Não podemos descurar nenhum destes aspectos que expressam a sacramentalidade da Igreja… Priorizar um destes elementos constitutivos da Igreja esquecendo-se dos demais, comprometeria seriamente a sua ação pastoral na sociedade.

A relação entre a ação evangelizadora e a ação litúrgica da Igreja deve sempre ser refletida, aprofundada e avaliada por nós cristãos. Neste sentido, vale a pena ler o artigo a seguir do bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, dom Geovane Luís da Silva. Confira:

Evangelização e liturgia

Por dom Geovane Luís da Silva

A liturgia é o coração pulsante da Igreja, porém não esgota toda a sua ação evangelizadora (SC 9). Ela não é um elemento acidental ou decorativo no âmbito da missão eclesial; muito pelo contrário, situa-se no centro da sua atividade missionária qual fonte que rejuvenesce sem cessar a comunidade de fé. Parece que ainda hoje não levamos a sério este princípio teológico e pastoral estabelecido pelo Concílio Vaticano II na Constituição Sobre a Sagrada Liturgia (SC 9.10).

‘Missão, evangelização, pastoreio, liturgia, serviço’ são realidades inseparáveis que expressam o mistério da presença de Cristo agindo no mundo através do seu corpo eclesial. Não podemos descurar nenhum destes aspectos que expressam a sacramentalidade da Igreja, pois ela deve anunciar integralmente o evangelho (missão/evangelização), acompanhar e cuidar (pastoreio) daqueles que abraçaram a fé em Cristo e com eles celebrar (liturgia) e viver (serviço) a fé traduzida no amor e na solidariedade para com os mais pobres e sofredores.

Priorizar um destes elementos constitutivos da Igreja esquecendo-se dos demais, seria muito prejudicial aos fiéis e comprometeria seriamente a sua ação pastoral na sociedade, pois estaríamos apresentando um retrato mutilado ou um mosaico incompleto do rosto de Cristo que resplandece na Igreja através da missão, da evangelização, do pastoreio, da liturgia e do serviço.

Esta questão foi retomada recentemente no magistério do papa Francisco, bem ao início do seu pontificado, quando se dirigiu aos fiéis cristãos através da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora da Igreja”[1].

1. Celebrar cada passo em frente na evangelização

Evangelii Gaudium em seu artigo 24 condensa o pensamento teológico e pastoral do Papa Francisco sobre a liturgia da Igreja e suas implicações na ação missionária e evangelizadora. No referido artigo aparece o retrato ou mosaico do rosto de Cristo que deve resplandecer através da ação da Igreja no mundo.

A Comunidade Eclesial enquanto sacramento de Cristo deve “primeirear”, envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar. No extenso artigo 24 da Exortação Apostólica aparece a intrínseca relação existente entre os elementos que constituem a essência da Igreja: missão, evangelização, pastoreio, liturgia e serviço. Ao final do presente artigo o Papa se refere à dimensão festiva da fé e o faz em estreita conexão com os demais elementos citados anteriormente. Aqui se revela a visão integral do Papa Francisco que não admite descurar nenhum dos aspectos constitutivos da Igreja. Sua visão integral e unitária nos ajuda a valorizar cada ação no âmbito eclesial e a fugir de uma práxis pastoral reducionista.

Analisemos, ainda que brevemente, as últimas frases do artigo 24, onde o papa Francisco fala da relação vital entre evangelização, liturgia e serviço:

“a comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre festejar: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na Evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso a se dar”.

Aparecem aqui termos teológicos e profundamente significativos para uma justa hermenêutica da ação litúrgica da Igreja.

O Papa nos diz que ‘a comunidade evangelizadora sabe sempre festejar: celebra e festeja.’. A expressão ‘comunidade evangelizadora’ evoca a realidade da missão, pois seria impossível a comunidade evangelizar sem se deixar cativar primeiro pelo anúncio do evangelho. Uma vez evangelizados, evangelizamos.

A obra evangelizadora da Igreja assume também uma forma ritual e celebrativa. A Igreja celebra com júbilo a salvação e faz festa na presença do Senhor. Celebrar e festejar são categorias que evidenciam a dimensão antropológica/humana, teológica/memorial, comunitária e ritual da fé cristã. Ninguém celebra sozinho ou faz festa para si mesmo, pois “a vida se enfraquece no isolamento e se fortalece na doação e na comunhão. Isto é, definitivamente, a missão”. [2] A comunidade que celebra a fé descobre o sentido da sua existência no mundo e se renova no empenho missionário. Isto se dá graças à presença de Cristo na liturgia da Igreja (SC 7), pois é dele que provém toda força e dinamismo missionário.

Qual o motivo da festa? Aqui o papa Francisco deixa claro: “celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na Evangelização”[3]. Deste modo evidencia-se que as pequenas vitórias são fruto e expressão da vitória suprema de Cristo “que venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, estabelecendo a paz por seu sangue derramado na cruz”.[4] A liturgia da Igreja é profissão de fé no sentido pascal e de união à Páscoa de Cristo que se dá nas pequenas vitórias. Deste modo “Jesus nos deixa a Eucaristia como memória cotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (Lc 22,19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida”[5].

A dimensão estética da liturgia também é evidenciada pelo Papa: “No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia”.

O quotidiano é o lugar primeiro do encontro com Deus e nele se insere a liturgia da Igreja, como espaço privilegiado para a contemplação da beleza divina. Evidentemente trata-se daquela beleza suprema, o rosto transfigurado e glorioso de Cristo, que dá fundamento aos gestos e palavras da Igreja e não se confunde jamais com o excesso de paramentos, o rubricismo ou o cerimonialismo vazio tão presente nos dias atuais. O excesso de paramentos é sempre expressão de mau gosto; não remetem à beleza suprema, e o rubricismo é muitas vezes sinal de que a liturgia não é expressão autêntica do sentimento interior que brota do coração de quem celebra, quer presidindo ou exercendo outro ministério na assembleia litúrgica.

Para não deixar margens a dúvidas sobre a verdadeira beleza que deve resplandecer na liturgia e a partir da sua celebração, o Papa afirma na sua Exortação Apostólica: “todo cuidado exibicionista da liturgia é expressão evidente de um obscuro mundanismo espiritual que se manifesta hoje em muitas atitudes, mas com a mesma pretensão de dominar o espaço eclesial e transformá-lo numa peça de museu ou numa possessão de poucos” [6].

Há uma relação intrínseca entre evangelização, liturgia e vida. A beleza do rosto de Cristo deve permear toda a nossa existência e se irradiar nestes momentos, aparentemente distintos, mas intimamente relacionados. O anúncio do Evangelho converge naturalmente para a sua celebração na liturgia e tem implicações diretas na vida de quem o acolhe com abertura de coração. “Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada”.[7]

O evangelho proclamado é celebrado ritualmente, mediante símbolos, gestos, palavras e cânticos; ou seja, o evangelho anunciado se torna sacramento, sinal visível da ternura de Deus agindo no mundo. Na liturgia da Igreja nada acontece à margem da Palavra de Deus (SC 24). Nas palavras do Papa ressoa assim: “A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico da vida diária. A Palavra proclamada, viva e eficaz prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança a sua máxima eficácia”.[8]

A liturgia bem celebrada é fonte de vida para a comunidade evangelizadora, pois a “Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia”. Eis aí um constante desafio para todos nós: evangelizar e deixar-se evangelizar![9] Celebrar e deixar-se tocar pelo Ressuscitado na liturgia e na vida! Certamente o cuidado com a liturgia exigirá de todos nós um empenho constante para que o evangelho adquira uma real inserção em nossa vida e nas necessidades concretas da nossa história.[10]

Para explicitar a força transformadora da liturgia, ou melhor, a sua eficácia o Papa recorre à metáfora da ‘fonte’[11]. Segundo ele a “liturgia é também celebração da atividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso a se dar”.

Emerge aqui a dimensão espiritual[12], existencial e social da ação litúrgica da Igreja já expressa na Constituição Conciliar do Vaticano II Sobre a Sagrada Liturgia[13]. Em consonância com o pensamento conciliar o papa Francisco afirma que a liturgia é fonte de um renovado impulso para a nossa autodoação ao próximo, pois nela, pela ação do Espírito Santo, se atualiza a autodoação de Cristo ao Pai para a salvação da humanidade. A ação litúrgica é a realidade plena de tudo aquilo que ela mesma significa e faz memória: a morte e ressurreição de Jesus. Por isso ela produz, na vida de quem a celebra com fé, um renovado impulso e desejo de doação levando-a “a tocar a carne sofredora de Cristo no povo”[14]. A entrega de nós mesmos aos irmãos e irmãs mais sofredores é o critério decisivo para comprovar a verdade da liturgia que celebramos em nossas comunidades, pois uma vida autenticamente litúrgica expressa nossa abertura ao anúncio da Palavra e transforma-se em dom para os outros.

Delineia-se no pensamento do papa Francisco uma concepção litúrgica radicada na Escritura, particularmente na tradição profética que atinge sua maturidade nos gestos e palavras proféticos de Jesus. Os profetas do Antigo Testamento, bem como Jesus Cristo, não se opunham ao culto, muito pelo contrário, defendiam-no e não admitiam a banalização ou profanação dos ritos sagrados que expressavam a comunhão do ser humano com Deus.

Na concepção dos profetas liturgia sem misericórdia é culto vazio rejeitado por Deus; e para o papa Francisco, liturgia sem amor ao próximo é a mais refinada expressão do mundanismo espiritual que invade sutilmente o espaço sagrado e distancia cada vez mais a comunidade celebrante do mistério pascal de Cristo, desobrigando-a da vivência ou práxis da misericórdia na relação com o próximo. Disto decorre a seguinte afirmação: a liturgia é sinal inequívoco da acolhida ao Evangelho e vida que escoa no rio da misericórdia para com o próximo.

2. Concepção unitária da ação eclesial

Ao longo da sua Exortação Apostólica o papa Francisco nos oferece algumas indicações pastorais que visam superar os desvios criados por uma concepção reducionista da ação eclesial no mundo.

A Igreja é um reflexo do Ressuscitado agindo no mundo. Ele é o missionário, o evangelizador, o pastor, o liturgo e o servidor por excelência. O seu jeito de ser, o seu modo de agir, os seus gestos e palavras são normativos para a Igreja, sacramento de Cristo.

Quando desvinculamos a Igreja do mistério de Cristo missionário, evangelizador, pastor, liturgo e servidor, corremos o risco de apresentá-la de um modo disforme ou desfigurada e cometemos vários equívocos em nossa práxis pastoral.

2.1 Entusiasmo missionário e evangelizador sem cuidado pastoral

Uma comunidade que prioriza a missão e a evangelização em detrimento do cuidado pastoral quotidiano corre o risco de anunciar o Evangelho aos afastados e não dar o devido acompanhamento a eles quando acolhidos na Igreja. Em contrapartida, uma comunidade que se preocupa somente com aqueles que participam e celebram a fé, mas não se coloca em atitude de saída, está condenada a uma espécie de atrofiamento espiritual e paralisia pastoral. Voltada para si mesma, abre mão da atividade missionária e se contenta apenas com os poucos que conseguiu, às custas de muito sacrifício, manter no seu interior.

A missão/evangelização destina-se sobretudo aos afastados e “está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram”[15]. A pastoral ordinária, por sua vez, destina-se aos que já pertencem à comunidade de fé, àqueles que conservam uma fé católica embora não participem frequentemente no culto. Tal ação visa “incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida eterna[16]”.

O olhar da Igreja deve se estender a todos. Ela é chamada a acolher e abraçar os afastados, mas a se comprometer também com aqueles que já frequentam a vida comunitária.

2.2 Celebração da fé sem compromisso social

O esmero litúrgico e sacramental sem compromisso sócio-transformador parece ser a tônica do momento. Também isto é mundanismo espiritual. Pior ainda quando, além de disso, a comunidade opta deliberadamente pela sacramentalização[17] desordenada sem a devida catequese mistagógica.

Este é um sintoma da amnésia teológica de muitos. Esqueceram-se ou desconhecem o princípio norteador estabelecido pelo Vaticano II nesta matéria (SC 9), onde se afirma que a ação da Igreja não se reduz à liturgia. O Concílio já nos alertou contra a ameaça constante do panliturgismo (tudo é liturgia).

Noutros casos confundimos o cuidado pastoral, com relação aos sacramentos, com uma alfândega[18] e caímos no absurdo da seletividade e da burocracia fechando a porta dos sacramentos para a maioria das pessoas e abrindo-a para um suposto grupo de eleitos que preenchem os requisitos da instituição ou correspondem aos caprichos pessoais daqueles que organizam e conduzem a Comunidade Eclesial. Deste modo a Igreja se perde num emaranhado de obsessões e procedimentos pastorais e começamos a “agir como controladores da graça e não como facilitadores[19]”.

O reverso desta atitude, ou seja, a promoção social sem o anúncio do Evangelho e o devido acompanhamento espiritual aos pobres é a pior forma de discriminação para com eles[20]. Agindo assim transformaríamos a Igreja numa ONG qualquer destituída da força da Palavra de Deus.

Na compreensão do papa Francisco

Hoje e sempre os pobres são destinatários privilegiados do Evangelho, e a evangelização dirigida a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre nossa fé e os pobres[21].

A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta de um caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária[22]

Deste modo podemos afirmar que se faz necessário e urgente rever nossas opções no amplo horizonte da missão evangelizadora da Igreja. No dizer do Papa, “do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho” [23].

Notas:

  • [1] Cf. EG 1
  • [2] Cf. EG 8.10.
  • [3] EG 24
  • [4] EG 229
  • [5] EG 13
  • [6] Cf. EG 95 nos remete ao ensinamento de Bento XVI na Sacramentum Caritatis 23 quando se trata do ministro que age na pessoa de Cristo.
  • [7] EG 174
  • [8] EG 174
  • [9] EG 174
  • [10] EG 95
  • [11] Esta compreensão aparece na SC 10, onde os padres conciliares afirmam: “Todavia, a liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força”.
  • [12]A liturgia “é a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis haurem o espírito verdadeiramente cristão” (SC 14).
  • [13] Esta referência aos aspectos sociais da liturgia e de suas implicações na vida prática aparece nos seguintes artigos da Constituição Conciliar: “Aos que crêem, porém, sempre deve pregar-lhes a fé e […], estimulá-los para toda obra de caridade” (SC 9); “A renovação da Aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, solicita e estimula os fiéis para a caridade imperiosa de Cristo” (SC 10). No segundo capítulo, quando se fala da eucaristia usa-se a expressão ‘vínculo de caridade’ (cf. SC 47). A celebração dos sacramentos “prepara os fiéis do melhor modo possível para receberem frutuosamente a graça, cultuarem devidamente a Deus e praticarem a caridade” (SC 59). “A penitência do tempo quaresmal não seja somente interna e individual, mas também externa e social” (SC 110).
  • [14] EG 24. 270
  • [15] EG 14
  • [16] EG 14
  • [17] EG 63
  • [18] EG 47
  • [19] EG 47
  • [20] EG 200
  • [21] EG 48
  • [22] EG 200
  • [23] EG 262

Dom Geovane Luís da Silva
Bispo auxiliar da Arquidiocese de BH

Fonte:

www.arquidiocesebh.org.br