Ética do cuidado: a essência da vida cristã

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Por Pe. Nelito Dornelas

O cuidado com a vida nasce da consciência de sua fragilidade. Sem o cuidado a vida não cumpre plenamente sua missão, seu desabrochar e seu florescer. Daí a necessidade de se debater racionalmente sobre os caminhos e as formas mais eficazes para proteger e amparar a vida,  resultando em propostas que perpassem pela dimensão da ética.

A ética cristã tem um importante lugar na construção dos sistemas de vida do Ocidente. Ela se alicerça fundamentalmente na inspiração bíblica, na Tradição, e especialmente para a Igreja católica, no magistério dos bispos, dos papas, dos teólogos, e no ethos do povo de Deus, no sensus fedelis.

A ética cristã é assumida pelas famílias cristãs e pelas comunidades eclesiais e é sempre construída e reconstruída ao longo da história, mantendo sua referência à pessoa de Jesus Cristo e de seu evangelho, desdobrando-se em formas concretas de comportamentos morais e de vivência espiritual.

 

A ética cristã é uma ética do coração

Quando se procura entender a ética cristã à luz das ciências bíblicas há de pensá-la a partir  do significado para os escritores sagrados da palavra coração. A ética cristã é uma ética do coração. No sentido metafórico, a palavra coração é preciosa para a Sagrada Escritura e para a compreensão do dinamismo ético do cristianismo. A palavra coração indica a pessoa em sua totalidade, que implica inclusive seus relacionamentos mais significativos com a comunidade de vida da qual ela é parte.

A Bíblia indica ainda que o coração é o lugar da habitação do divino, e, por isso, é a residência do amor. É nele que Deus deposita seus segredos, que nos informa sobre o bem e é a partir dele que estabelecemos relações vinculantes com os outros.

 

A ética cristã é uma ética do cuidado e da responsabilidade

A ética do cuidado nasce de um coração atento e de ouvidos abertos a escutar os apelos que nascem da realidade ao seu redor, da consciência, da Boa Nova do Reino anunciada por Jesus, tornando-o capaz  de discernir o que é mais justo e o que convém ser feito em cada situação da vida.

A ética da responsabilidade nasce da capacidade de responder aos desafios e urgências. Resposta esta que respeita a liberdade pessoal e de consciência e que torna cada pessoa mais humana e mais cuidante da vida. Responsabilidade é o lugar de referência do caráter e da revelação dos princípios morais da pessoa.

Neste sentido, pode-se afirmar que a ética da responsabilidade tem a ver com a obediência da fé. A obediência da fé é uma obediência discernente, que sabe valorizar todas as formas de escuta honesta à comunicação que Deus faz à humanidade, através das pessoas, dos fatos, das instituições,  da história pessoal e coletiva. Assim, ser alguém eticamente responsável é tarefa extremamente trabalhosa e presume tanto a humildade de acolher, quanto a coragem sincera de refutar as muitas ofertas de normas de conduta que são apresentadas às pessoas a cada tempo.

A responsabilidade nasce desta capacidade de resposta que o leva a agir de tal maneira que as consequências de suas ações sejam benéficas e proveitosas para o outro e para as gerações futuras, sobretudo, sejam construtoras da esperança no outro.

Matar a esperança é matar a própria vida. A responsabilidade ética supõe um compromisso inarredável com a verdade, que deve ser buscada incansavelmente pelo diálogo sincero e honesto que reconhece o outro como alguém significativo e digno de ser escutado.

 

A ética cristã é ética da fraternidade e da solidariedade

A ninguém é dado o direito de perguntar como Caim perguntou ao Senhor após ter sacrificado seu irmão Abel em uma atitude fratricida: “Sou eu por acaso guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). A falta do sentimento de irmandade os torna homicidas e mentirosos.

É preciso construir a certeza de que há realmente uma interdependência necessária entre todos os seres, de que possuímos uma origem e um destino comuns, de que carregamos as mesmas feridas e de que alimentamos esperanças e utopias que nos projetam no mesmo paraíso, mesmo que expressas de formas diferentes.

A solidariedade emerge como uma categoria basilar da vida. A vida necessita fundamentalmente da solidariedade para se sustentar. A vida é frágil e vulnerável e está à mercê da alternativa entre o caos e o cosmos. Aqui merece uma consideração: a expressão cosmos é que gerou a palavra cosmético, o belo, a beleza. Portanto, cuidar do cosmo é cultivar o belo.  É neste sentido que Dostoievski vai afirmar que a beleza salvará o mundo.

Atitudes como cuidado, respeito, veneração, ternura, cooperação solidária, cumplicidade, parceria, inclusão do outro no jogo da vida, devem ser recuperadas em uma sociedade embrutecida e bestializada que prima pela competição, pelo egoísmo, pela inveja, pela disputa, pela dominação, pelo descarte dos outros.

Caso percebamos ser muito difícil mudar o mundo, mudemos o Brasil. Se esta tarefa for difícil, comecemos pelo nosso Estado. Se não nos sentirmos capazes a tal obra, comecemos pelo nosso município. Se não dermos conta, iniciemos pelo nosso bairro. Caso a tarefa seja grandiosa, comecemos por nossa rua, ou por nossa empresa, nossa escola, nossa casa até chegarmos á consciência de que é necessário começar por nós mesmos, como nos alertava Mahatma Gandhi: Sejamos nós mesmos a mudança que queremos ver no outro.  Ou então tomemos consciência do apelo insistente de Dom Hélder Câmara de que precisamos nos mudar muito para sermos nós mesmos.