Nosso tempo parece apresentar diversos desafios existenciais. Nunca foram presenciados tantos casos de depressão e ansiedade. Em um mundo acelerado, percebemos que a espiritualidade pode servir de alento ao humano, mas, ao mesmo tempo, pode apenas seguir uma lógica de bem-estar, tão presente em nossos tempos. Se dessa forma se apresenta, não estaria tão distante de livros de autoajuda e processos de “coaching” de vida (ou até coaching espiritual?). Ela pode cair na armadilha do narcisismo, quando tudo está tramitando o âmbito do eu. Dessa maneira, apenas ressalta e aprofunda egoísmos e características líquidas e superficiais de nossa época.
Como nos mostra a socióloga Danièle Hérbieu-Léger, o cristianismo hoje se configura como um “lugar de trânsito”, tendo a experiência religiosa ganhado um contorno de subjetividade e liberdade. Dessa maneira, a modernidade religiosa é caracterizada pela individualidade das crenças. “Apresenta as figuras, no âmbito religioso, do peregrino e do convertido, que manifestam a mobilidade e a fluidez dos religiosos atuais, formando comunidades novas, redes, grupos, e a ação de desinstitucionalização dentro destas novas comunidades, fruto de duas tendências: o individualismo e o particularismo comunitário”. Tudo parece estar conectado, mas, ao mesmo tempo, desconectado do real e de suas vulnerabilidades expostas. Atestar as vulnerabilidades só é possível se efetivamos uma desconstrução dos narcisismos enraizados e abrimos, assim, um caminho de alteridade profunda.
Segundo Joseph Moingt, a história não saiu da religião pela virtude própria da religião, que representa resistência ao movimento e ao novo, mas pela virtude de outras energias espirituais: razão, liberdade e a chamada ao transcendente. Dessa forma, a sociedade moderna não deve seu nascimento ao que o cristianismo tem em comum com a religião, mas pela força explosiva da Boa Nova que o impulsiona à história, justamente para fazer história. Em última instância, o dilema colocado pode ser explicitado dessa maneira: como o monoteísmo se configura em humanismo, e como o humanismo enfrenta a finitude que entrou assim na história, como nos mostra paralelamente Jean-Luc Nancy.
Consiste antes no encontro entre a razão filosófica e a “experiência-choque” do anúncio cristão. Nessa experiência-choque, a sabedoria humana é qualificada como sendo a da loucura perante Deus. Dessa maneira, inaugura-se uma reflexão filosófica que põe o homem a descoberto. Essa reflexão leva à conversão filosófica da razão absoluta, ligada a Deus, na razão humana perante Deus. A razão desabsolutizada e destotalizada, saindo do seu autismo, é “autônoma” em relação a Deus, uma vez que a meditação da experiência cristã mais não é que humana. Ela tem a ver com a experiência cristã que torna possível a autonomia da filosofia. A filosofia sem absoluto é, portanto, a filosofia fora do autismo de uma razão humana perante Deus. Como insiste Jean-Luc Marion, “inverter a questão não equivale apenas a evitar respondê-la, mas manifesta que a questão de Deus se dirige ao homem a partir de Deus (e, portanto, do homem como aquele a quem Deus se dirige)”.
Os “sofrimentos” designam a dificuldade de reconciliação: o esforço por manter incessantemente a autonomia do discurso filosófico, sem o confundir com a fé bíblica, por vezes causa uma contradição. As “pequenas felicidades” significam talvez um estado de equilíbrio, de consentimento ao que existe. A fé bíblica independente é preservada do ato livre de filosofar, no entanto, essas duas esferas são mantidas em tensão. A expressão ricœuriana “filósofo sem absoluto” não indica apenas a afirmação da atitude agnóstica, ela situa-se também no outro pólo da identidade conflitual do “cristão de expressão filosófica”. Essa tensão conflitual íntima é o processo de abrir incessantemente uma via para a autossuficiência da pesquisa filosófica, confirmado indiretamente pela motivação de dar razão da fé bíblica. A expressão “sem absoluto” é um estado do ato inacabado do filosofar diante da fronteira.
A “filosofia sem absoluto” é a conversão da razão humana perante o Infinito. Paul Ricœur propõe uma diferença singular entre a atitude que se posiciona perante Deus daquela que se posiciona perante a morte, ele sugere que elas partilham um solo comum: a do pensamento humano perante o limite. O perante é o espaço mas também o momento da reflexão desenvolvida através da experiência do limite, reflexão que até pode incidir sobre o próprio conceito de limite. Aquilo que está envolvido nessas duas atitudes remete para questões que não pedem uma resposta plena, como é o caso das que se interrogam sobre Deus ou sobre a sobrevivência após a morte. Essas questões sub-liminares reenviam elas próprias, nos textos de Ricœur, para interrogações cujo domínio é confinado pela finitude humana. Assim, a experiência da fronteira orienta-nos para o pensamento do viver “bem” ou da realização da vida perante a morte. É sem dúvida porque a morte é então vista a partir do seu aspeto de concretude, a qual, por seu lado, também questiona o nosso concreto.
“Espiritualidade do real”, das vulnerabilidades expostas, do “infinito na finitude”, eis os caminhos do nosso concreto diante do Infinito.
Prof. René Dentz
É católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.