Entrevista: juventude e sexualidade

João Victor da Fonseca Oliveira

Mestrando em História pela UFMG, na linha de História e Culturas Políticas; Professor de História; Especialista em Juventudes no Mundo Contemporâneo pela FAJE; Membro do Grupo de Pesquisa Diversidade Afetivo-Sexual e Teologia, também na FAJE.

  1.  A adolescência é complexa porque porta também uma ideia de limbo, quase como uma ideia de não-ser, mas tem que assumir sua liberdade. Ser e não-ser estão caminhando juntos, paradoxalmente. Há uma determinação e uma indeterminação do sujeito. O jovem não tem ainda uma identidade, busca incessantemente uma (comumente em grupos, ideias, pessoas). Como o adolescente de hoje vivencia sua liberdade no âmbito da sexualidade?  

Do ponto de vista da experiência, essa pergunta não possui uma única resposta, sob pena de invisibilizar tantos modos de dar sentido e significado ao vivido que cada pessoa constrói durante seu momento de formação. Contudo, isso não anula o fato de que essas pessoas costumam desenvolver tais caminhos singulares, dentro de condições em comum e que, portanto, podem ser compartilhadas. Por essa razão, penso ser mais oportuno, então, pensar em quais condições e horizontes o(a) adolescente constrói seus pertencimentos e em que medida o contexto cultural tem permitido o alargamento ou o estreitamento de seus respectivos horizontes. Isso é se perguntar de que forma e quais têm sido os signos compartilhados no interior da cultura para que determinados grupos signifiquem suas experiências.

Desde essa perspectiva, penso que o(a) adolescente (a depender, sempre, de sua condição sócio-histórica e dos marcadores sociais da diferença que lhe constituem), hoje, tem a sua disposição um conjunto muito mais amplo e variado de instrumentos para problematizar sua própria sexualidade. Quero com isso dizer, que há mais possibilidades de questionar aquilo que é tido como “natural”, “óbvio” ou “dado”. Não quer dizer que todo(a) adolescente possa fazer isso com liberdade e autenticidade, ao contrário, os constrangimentos continuam sendo muitos, eficazes e violentos. Ainda assim, esses constrangimentos são a consequência visível que tentam impedir uma transformação que segue em pleno curso. Sem dúvidas, o acesso a círculos de sociabilidade bem menos controláveis pelos pais e, de resto, pelas instituições tradicionais de controle (família, escola, igreja etc), facilitados pela comunicação virtual, por exemplo, cria condições de troca e diálogos muito mais complexos.

Por caminhos nem sempre assertivos, vários(as) desses(as) adolescentes têm acesso a um mundo de coisas que constituem a formação e desenvolvimento de sua sexualidade – aqui entendida como um produto de relações. Refiro-me às experiências de reconhecimento geradas por aplicativos de interação (WhatsApp, Instagram, TikTok, etc.) de relacionamento (Tinder, Happn, Grindr etc).  De alguma forma, esses aplicativos suspendem silenciamentos e tabus a que vários(as) desses(as) adolescentes são submetidos dentro de seus lares e fora deles. Tudo isso depende, como eu disse, da condição e dos círculos que cada adolescente constrói, dentro de um universo de possibilidades muito maior.

Se quisermos pensar, especificamente, sobre a orientação sexual de adoslecentes, hoje, há muitos outros espaços de afirmação de posições dissidentes de sexo e de gênero, do que antes. Parte disso, evidentemente, tem a ver com certa assimilação que a própria sociedade capitalista foi capaz de produzir em relação às pautas e políticas LGBTIA+. Não é mais possível, por exemplo, esconder os símbolos que fazem esses sujeitos em desenvolvimento, a se perguntar sobre si e sobre suas relações. Eu diria que o arco-íris já está suspenso no ar e jogar um balde de água fria nessa transformação (como muitos tentam fazer), fará sua refração ainda muito maior. Desse ponto de vista, é válido dizer que precisamos ampliar nossa compreensão sobre o impacto dessa interferência capitalista e, sobretudo, quais são as novas formas de inibição e constrangimento da sexualidade que estão sendo inventadas neste momento, mesmo diante dessa realidade de relativo avanço. 

Valeria a pena pensar também sobre essa mesma noção de “limbo”. De certa forma, é vista com suspeita ou inacabamento. Na esteira da pergunta proposta, o “sujeito determinado” não seria exatamente aquele que incorporou mais amplamente as prescrições normativas? As regras sociais?  Vemos, então, essa mesma característica – a de indeterminação – significar uma relativa suspensão da prescrição e da normatividade e isso torna possível formas inéditas de constituição de si, uma vez que o que é visto como “inacabamento” provê para cada pessoa certo espaço de criação e de desenvolvimento. Eu tendo a interpretar esse momento difícil de transição (produto histórico de uma sociedade adultocêntrica) como a novidade do mundo, seguindo a trilha Hannah Arendt, capaz de nos ensinar podem ser diversas as formas de ser e estar no mundo. Há muito o que aprender com essas novas formas de vivência, no âmbito da sexualidade, pelos(as) adolescentes.

  • A igreja tem conseguido apresentar aos jovens uma experiência cristã libertadora? Por que tantos jovens têm sido atraídos pelas propostas de grupos neoconservadores?  

Caberia me responder, perguntando. Qual igreja? Em quais espaços? Por meio de quais experiências? Digo isso, porque tenho levado adiante a tese de que é exatamente por enquadrarmos a experiência religiosa dentro de um modelo hegemônico, ou de uma ideia pressuposta de que haja uma Igreja ou uma só forma de viver a experiência religiosa, que as violências contra as pessoas dissidentes de sexo e gênero ganham força. No fundo, quando acreditamos que o modelo de igreja hegemônica, governada por essa perspectiva teológica cis-heteronormativa e patriarcal, é a “Igreja”, reproduzimos os esquemas de poder que tornam possível sua permanência nesse lugar de atestar quem faz parte ou quem não faz, quem pode ou quem não pode. Por isso, eu digo que essa experiência de igreja cis-heteronormativa e patriarcal que tem sido hegemônia (não desde sempre e não para sempre) não tem conseguido apresentar aos jovens uma experiência cristã libertadora. Exatamente porque não há interesse em fazer isso. Seria como abrir mão das estruturas que sustentam esse lugar de domínio. Por outro lado, são muitas as formas de experiência religiosa que estão atravessadas por práticas libertadoras, mesmo dentro de comunidades conservadoras. Isso porque aquilo que é da ordem da experiência, em alguma medida, é ingovernável. As pessoas e, sobretudo, as juventudes LGBTIA+ têm inventado novas formas de experiência religiosa. Nós podemos ver uma grande onda de jovens que levam adiante os valores do que se convencionou a chamar de Teologia da Libertação, por exemplo. Em toda comunidade religiosa, eu arriscaria dizer, que encontraremos um símbolo estético dessa vivência: o anel de tucum. Isso não é pouca coisa. Diz para nós que, onde haja uma tentativa disciplinadora dos corpos, há resistência criativa provendo outros espaços de invenção da experiência religiosa. O trabalho da Pastoral da Juventude – de tradição libertária – é um excelente exemplo disso. Como não dizer que isso é também igreja? Recusar essa perspectiva, é concordar com o horizonte normativo que apresenta o modelo cisheteronormativo conservador e patriarcal como a única igreja possível.

Entendendo, como propõe Maria Rita Kehl, que a juventude é o sintoma da cultura, penso que esse fenômeno não é exclusivo das instituições religiosas, mas está atravessando as diversas instituições. Tenho dito, a partir de outras referências – da área da História, por exemplo – que tendemos a pensar utopias só como ideais que apontam para um futuro emancipado e promissor. Pegando carona com o argumento que tem sido desenvolvido por cientistas políticos, especialmente pela historiadora Heloísa Starling, de quem ouvi essa proposição, precisamos pensar também sobre as utopias que apontam para o passado e não só para o futuro. Nem todo mundo está disposto a um futuro emancipado, nem todo mundo se sente atraído por um mundo de liberdade e, por isso, desconhecido.  Há muita gente apostando em determinada nostalgia fantasiosa – como é próprio a ideia utopia – de um passado que sugere algum conforto aos vivos: porque já conhecido. Isso não é dizer que a ideia de passado na qual acreditam os neoconservadores seja real, mas a mera idealização de um passado – que na prática nunca existiu –  já é suficiente para sustentar determinados comportamentos. Isso nos ajuda a atender a posição que determinados(as) jovens escolhem ao lerem um texto medieval e a se colocarem dispostos a usar algemas nos pés ou nos punhos, como sinais de devoção. Bom, também não podemos ser ingênuos ao achar que toda prática que envolvam esses signos do passado sejam ortodoxas. As pessoas de um lado e do outro estão o tempo todo apropriando e reinventando esses signos. Há quem vista véu e não concorde com tudo o que a doutrina diz. Há quem se consagre à Santíssima Virgem Maria, pelo tratado medial de São Luis Maria Grignion de Montfort, convencido de uma devoção legítima e de entrega radical e que se vê traduzida na experiência da “escravidão mariana”, sem ter em vista toda a carga pesada dessas prescrições. Isso não quer dizer que seja possível afirmar de modo radical uma “verdade” sobre esse(a) jovem e sobre sua experiência religiosa, que algum tempo depois, poderá abrir mão das correntes, trocar a saia pela calça jeans e de fazer negociações (maiores ou menores) com o que foi abraçado como dogma. De modo geral, a atração de alguns jovens por propostas neoconservadoras carece de uma explicação à parte que eu não teria condições (nem competência) para explicar neste espaço. Ainda assim, de forma geral, Regina Novaes – talvez a maior especialista neste tema – tem apontado para o fato de que embora as redes institucionais não tenham conseguido segurar as juventudes dentro das práticas tradicionais de pertencimento, pouquíssimos jovens (dentro de um quadro estatístico e proporcional) abandonam a experiência religiosa completamente. Isso é: as juventudes brasileiras continuam crentes, mas nem tão institucionalizadas como antes.  Também não seria demais imaginar que em um mundo de imensas transformações e de crise das instituições, certa adesão a propostas e prescrições dogmáticas traga algum conforto para muitas culturas juvenis religiosas. Afinal, ter que se haver com a própria liberdade e caminhar em um futuro sem muitas referências consolidadas ou códigos de conduta inéditos exige um alto preço que nem todos(as) estão dispostos(as) a pagar.

Finalmente, retomando o argumento inicial, me importaria dizer que esse fenômeno é antes de tudo um sintoma: onde há adesão ao neoconservadorismo, há a evidência de que na contramão disso, persiste uma pressão enorme de pautas progressistas, contra as quais esses movimentos tentam se insurgir. Ler esses fenômenos na direção inversa (ou na contramão) do que eles exibem nos permite ver contra o que (ou quem) eles lutam e, portanto, a diversidade de experiências e movimentos libertários que erguem corpos, vozes, gritos e agenciamentos no mundo contemporâneo. 

  • Hoje muito se fala sobre a inserção de mulheres em espaços de decisão da Igreja, o que tem sido um desafio enfrentado, não sem grandes resistências, por parte da hierarquia, com vários acenos positivos do Papa Francisco. No entanto, não se fala dessa mesma inserção do ponto de vista da juventude. Na verdade, os jovens que aparentemente estão mais próximos da hierarquia são aqueles em formação para o sacerdócio e, justamente estes, encontram-se na muitas vezes em condições ainda mais rígidas de vigilância, dependência e submissão. A ausência efetiva de jovens dentro de espaços privilegiados de decisão da Igreja não seria um impedimento para que suas questões fossem de fato contempladas nas reflexões eclesiais?

Penso que sim. A primeira interdição já está posta na pergunta. A ausência de jovens já é para nós um silêncio ensurdecedor. No caso da experiência de igreja institucionalizada, a noção de autoridade que tem sido difundida se assenta na ideia de tempo decorrido. “Quanto mais velho, mais sábio”, uma ideia bastante controversa. Isso não quer dizer que o tempo decorrido não possa representar experiência. Quero com isso problematizar a noção contrária que esse tipo de fala permite formular: “Quanto mais jovem – ou menos velho -, menos sábio”, “menos preparado”, “menos desenvolvido” e por aí vai. A justa medida é difícil encontrar, exatamente porque na avaliação do que é tido como desejável, há uma perspectiva adultocêntrica informando os lugares de decisão. As juventudes são comumente apresentadas como “projetos de futuro” ou aquilo que está por vir. Sem estatuto e políticas de reconhecimento, essa experiência sócio-histórica de ser jovem (que não é extensiva a todo mundo, já que nem todos(as) reúnem as condições sócio-econômicas que permitam vivê-la) vai sendo construída tão e somente por estereótipos. Em um texto que escrevi em outra oportunidade, “Juventude: Decolonizando uma experiência”, eu refletia exatamente sobre isso. Concluía dizendo que é por meio da demarcação dos limites de um conceito e da desnaturalização de seus pressupostos que podemos compreender a experiência diversa e multifacetada dos sujeitos sociais e políticos, mas também produzir a decolonização da experiência como forma de apontar os enquadramentos que limitam e incriminam a experiência sobre o mundo.

Entendo, por isso, que entre a positivação, suspeição ou condenação prévia, parece vigorar a percepção que “os jovens tendem a dar errado, se ninguém fizer nada”.[1] Se não é pela suspeita a via de captura dessas vidas, é via cobrança excessiva e compulsiva por uma responsabilidade que os outros julgam que as juventudes não têm. Ao mesmo tempo, a prática de produzir modelos de desenvolvimento que tentam categorizar as fases da vida tende a reduzir os seres humanos aos meios de produção, uma marca da colonialidade do poder. Nesse sentido, o exercício de enquadrar determinado sujeito como “jovem” baseia-se também, na depuração de expectativas sociais e na construção de modos de regulação dessa experiência.

Na perspectiva de Winnicott (1975), cada sujeito precisa existir em algum lugar para alguém. Isso quer dizer, que precisamos ainda refundar a ideia de hierarquia e de autoridade que são derivadas também de noções patriarcais e adultocêntricas – como também racistas e misóginas. Quando fechamos os olhos e imaginamos uma pessoa grandiosamente sábia, ponderada, capaz de decidir, chegaremos cada vez mais perto de um determinado imaginário: quanto mais branco, velho, homem, de preferência barbudo, sentado em uma grande cadeira, olhando para uma paisagem qualquer, mais apto estará em representar tal imaginário.

Finalmente, eu não penso que seja também uma mera questão da presença de jovens nestes espaços de decisão. Evidentemente, precisamos ter jovens em todos os espaços que tentem deliberar sobre suas vidas e experiências, em qualquer horizonte democrático e participativo, ou na melhor das formulações: nada de nós, sem nós. Isso, contudo, não é suficiente, mesmo porque há uma imensidão de grupos juvenis que são orientados pelas perspectivas adultocêntricas, como há uma imensidão de pessoas LGBTIA+ orientadas por perspectivas heteronormativas. Por isso, o caminho, penso eu, não será ampliar somente a participação, mas refundar o vocabulário e as estruturas que legitimam essas perspectivas até então instituídas de autoridade, hierarquia, participação e juventude, dentro das instituições, dentre elas a igreja institucional.

  • Frequentemente as instituições de ensino católicas se veem desafiadas por uma aparente contradição entre o pluralismo cultural e religioso da sociedade contemporânea e a consolidação de sua identidade confessional. Além disso, vemos também a tensão existente entre se manter viva e relevante no mercado educacional sem perder-se em estruturas elitistas que favorecem a desigualdade ao invés de minimizá-la. Nesse aspecto, as escolas e universidades católicas têm ainda um papel a cumprir junto à juventude no que diz respeito à transmissão de valores realmente evangélicos? E como favorecer aos jovens estudantes desses espaços uma experiência cristã madura que garanta não somente a excelência acadêmica, mas também uma formação humanista característica do cristianismo? 

Essa é uma pergunta realmente desafiadora. Embora ainda não tenhamos encontrado respostas para como fazer exatamente, sabemos que manter as coisas como sempre foram é o caminho mais eficaz para o fracasso. Isso porque uma instituição que fala para as juventudes, sem elas, produz até um discurso bem-intencionado, mas inócuo.

O que penso produzir sentido na vida de diversas culturas juvenis não é exatamente o abandono de determinados valores – aliás, há uma imensidão de jovens em busca de consolidar os seus próprios valores, como vemos a todo momento – mas a forma de ressignificá-los dentro da real experiência de vida das pessoas, que fala por si só. Precisamos olhar para a autoridade da experiência e não apenas para o texto da lei. Precisamos considerar as grafias de vidas e não apenas a prescrição dogmática. A experiência radical do evangelho é aquela que grafou a experiência de um povo. Não foi um “ouvi dizer” que seduziu aquelas multidões, mas um “eu experimentei e dou testemunho”. No caminho das multidões, da travessia de Emaús, na passagem dos hebreus, na travessia dos mares e montanhas, há algo da experiência sendo transmitido e não apenas da Lei. É como se disséssemos que também nós estamos escrevendo a nossa história com Deus, por meio da nossa própria experiência.

O que eu queria perguntar para essas instituições é se elas estão dispostas a nos ouvir, para além de nos dizer como devemos ser. A depender de como compreendemos esse papel a ser cumprido na transmissão de valores evangélicos, estaremos mais próximos ou mais distantes. Seremos mais eficazes ou mais hostis. Seremos mais evangélicos ou mais farisaicos. É uma escolha.

A experiência cristã é profundamente humana. Nisso, não há incoerência entre esses valores e a defesa da diversidade como dádiva. A grande questão é que não estamos mais falando ou nos comunicando para a comunidade de Israel do tempo de Jesus. A mensagem só é profética se ela for capaz de capturar e de ser proclamada para o seu próprio tempo. Não há mensagem revolucionária em letra morta. Precisamos ler interpretar a palavra de Deus, olhando para a história da Maria, do Mateus, do Enzo, da Larissa, do Gil, do Vitor, da Ana, da Sara, de Alec, para a vida da Linn, do Vinicíus, da Marsha, da Silvia, de Cris, do André, da Nayane, da Valentina… Porque não há formação humana possível que não aprenda a reconhecer a vida e a história dos outros como dons para o mundo e não como instrumento de condenação, silenciamento e interdição.

Essa calmaria toda que algumas instituições católicas buscam sempre, ao preferirem não se envolver com “polêmicas”, ou debater o que é próprio do mundo contemporâneo, ou ainda se escondendo atrás do que chamam de “tradição”, é o que vai se tornando incoerente com o cristianismo. Onde tinha Jesus, tinha uma palavra de rebeldia questionando o que foi dado como certo e refazendo o que foi dado como inevitável. Onde havia alguém que se sentisse vulnerável, excluído ou marginalizado, ali estava Jesus chamado cada pessoa à vida, à autenticidade, à liberdade e ao amor. Do que temos medo?

Há algo mais maduro da experiência cristã do que levar cada pessoa ao melhor que ela pode oferecer ao mundo? De criar condições para que o MAGIS de cada um(a) se realize no meio de nós? Há algum valor mais evangélico do que reconhecer que no banquete para o qual fomos convidados, podemos não gostar da mesma comida, pedir diferentes refeições, trajar roupas as mais variadas, falar com os mais variados sotaques, dançar da forma como nosso corpo permitir e, mesmo assim, sentarmo-nos na mesma mesa?

Precisamos tirar as escolas do armário, no sentido de fazer com que assumam o risco de evangelizar no mundo e não para ele, com as juventudes e não para elas. Essa Igreja em Saída proposta pelo Papa Francisco também precisa renovar os valores das instituições de ensino católicas, mantendo o princípio da Veritatis Gaudium que é enfática ao afirmar o diálogo sem reservas. Quem tem medo da mudança não entendeu a força transformadora do Evangelho de Jesus.

  • A diversidade afetivo-sexual é um dos temas mais combatidos por diversos grupos dentro e fora das igrejas. Qual a razão do preconceito e falta de entendimento acerca dos caminhos da sexualidade? Como o jovem vivencia esse tipo de exclusão?

Se eu soubesse que essa pergunta viria por último, teria começado a entrevista mais cedo (risos). Somente essa questão daria uma enorme conversa à parte, afinal esse tem sido meu maior interesse de pesquisa na Faculdade Jesuíta, em Belo Horizonte: entender como as juventudes católicas LGBTIA+ criam caminhos de experiência religiosa mais autênticos, como e por que permanecem em suas comunidades religiosas e de que modo nos ensinam a criar modos inéditos de viver e praticar a fé. Para entender isso, precisamos revisitar a história dessas pessoas. Entender na intenção da palavra e no desvio do olhar, onde a intimidade sofreu, por onde o desejo passou, o que sobra e o que falta na palavra dirigida ao entrevistado. Somente compreendendo o apelo ético que há no rosto do outro e, nesse caso, das juventudes católicas LGBTIA+, poderemos tatear as formas pelas quais a experiência de cada pessoa, ilumina a fé que compartilhamos. De modo especial, eu me implico nessa resposta. E tenho feito desse caminho a ferida e a cura da minha trajetória.

Devo dizer que a diversidade afetivo-sexual não é um dos temas mais combatidos por diversos grupos dentro e fora das igrejas. Ao contrário. É um dos mais reiterados. Se fala em diversidade afetivo-sexual o tempo todo, contudo, esse discurso é usado para estabelecer uma só possibilidade: o da cultura cisheteronormativa e patriarcal que vê no aparente “macho, hétero, branco” a fórmula do poder. Vejam: é exatamente pela fragilidade dessa construção de gênero autorreferenciada, que esse tipo de proposta precisa ser afirmada o tempo todo e em todo lugar, tal como uma verdadeira catequese de gênero. Penso que essa é uma das cruzadas mais intensas na história da igreja recente, pela força que a própria liberdade tem. Não estamos diante de nenhum ineditismo: onde houve luta por qualquer tipo de libertação, houve também resistências e formas de controle baseadas no poder hegemônico.

A razão do preconceito pode ser pensada a partir de vários caminhos. Desde a perspectiva teológica, a escolha pela dicotomização do corpo e do espírito calcificou boa parte das interpretações sobre tudo o que passa pelo corpo, compreendido como moralmente inferior e indesejável. Por outro lado, desde a Patrística, passando pela Escolástica e suas sucessivas apropriações do Estoicismo, no uso da Lei Natural como artifícios políticos, esse tipo de versão alcançou destaque e, hoje, predominância. Contudo, essas não foram as únicas propostas e nem podemos recuperá-las como as únicas formas de tradição e de experiência possíveis.

Como costumo recordar, toda religião é política e as bases que lhe dão sustentação estão atravessadas pelos limites e pelas possibilidades do próprio contexto social em que está inserida. Desde o século XIX, temos visto a invenção da figura do “homossexual” que passa a corresponder o sujeito ao seu desejo, dentro de um estatuto identitário. Michel Foucault explica bem a transformação que se processa com os discursos cientificistas que vão, logo em seguida, patologizar toda e qualquer orientação sexual ou identidade de gênero divergentes. Uma operação próxima ao que já se fazia com as mulheres, desde a antiguidade, que se recusasse às normatividades e formas de regulação social a que eram submetidas.

Embora sobrassem muitas formas de dominação e estratégias de controle dos corpos e das experiências, não faltaram exemplos de enfrentamento aos poderes instituídos. Jesus é um desses exemplos mais emblemáticos. O próprio Cristianismo, nascido na periferia do mundo, marginalizado e como um movimento clandestino, conheceu de perto o peso da intolerância do preconceito e da ausência de entendimento por parte daqueles que controlavam o poder decisório da sociedade. De forma superficial (dado os limites desta entrevista) eu diria que se mudaram as posições, mas alguns grupos dentro da igreja institucionalizada continuam querendo jogar o mesmo jogo da opressão. Desejando, por meio de novas regras, garantir o xeque-mate daqueles que são construídos, discursivamente, como inimigos. Isto é: como falhas, como desvios.

No âmbito das juventudes católicas envolvidas em pastorais, recorrentemente, as pessoas LGBTI+ são percebidas e construídas como “sujeitos desviantes”. Essa exclusão, operada pelo jogo das instituições e dos seus porta-vozes, é resultado não somente do ataque direto a essas pessoas, como também das políticas/tecnologias/dispositivos de silenciamento que atuam dentro dos espaços sociais, pastorais e religiosos.

Eu parto da hipótese de que os dispositivos de silenciamento[2] atuam como forças específicas de produção de subalternidades, interdições, culpas, enquadramentos e formas de reconhecimento precárias, compartilhadas e, de diferentes formas, reafirmadas dentro das instituições religiosas, incidindo sobre suas práticas. Tais dispositivos formam, conformam e atuam nas subjetividades das juventudes, mediante o desejo que nutrem em suas experiências religiosas, numa tensão permanente, pela qual desformam e recriam tais estratégias.

Reparem que nesse mesmo discurso que constrói as pessoas LGBTIA+ como desvios, há uma dependência direta dessas mesmas pessoas para que o discurso fique de pé. É uma forma de alteridade limitada que não vê no outro uma diferença a ser reconhecida, mas uma versão piorada de si mesmo, conforme seus próprios critérios morais, éticos, teológicos etc. Algo muito próximo disso aconteceu durante o processo colonial europeu nas Américas que teve como protagonista as instituições religiosas católicas. Infelizmente, por mais que se diga, repita, demonstre ou prove, pouco tem sido incorporado e apreendido pela instituição, a despeito daqueles(as) que se atrevem a apostar em outro mundo possível. O Papa Francisco é formidável nesse sentido. Muito além dele, tantos(as) jovens têm buscado redefinir o próprio espaço de experiência religiosa dentro e fora das instituições. Com a coragem que a liberdade tem, são muitas as estratégias de pertencimento, de apropriação ou mesmo de recusa de alguns códigos de modo que a vivência dessas pessoas possa se configurar de maneira mais confortável e possível.

Quando entrevistamos vários(as) desses(as) jovens não há dúvida que está se processando um novo jeito de ser igreja, com a qual devemos aprender. Um movimento que tem forçado a própria instituição a se perguntar sobre isso, ainda que para afirmar as velhas respostas, e o vazio que elas nos oferecem, como um CD que, de tanto tocar a mesma faixa, acaba estragando. Felizmente.

Precisamos mencionar também vários(as) jovens que ainda estão no marco pelo reconhecimento institucional na igreja. São aqueles(as) que buscam um carimbo da Santa Sé, tal como um passaporte que lhes permitam adentrar o espaço da Igreja institucional. Não raramente, embora sejam pessoas LGBTIA+, incorporaram de tal modo os valores da cultura heteronormativa e patriarcal que estão dispostos a acomodarem-se dentro das formas de acolhimento disponíveis em alguns espaços religiosos. Infelizmente, partem quase sempre de uma forma de reconhecimento precária.

A conclusão a que cheguei em uma das minhas produções mais recentes foi a de que as vivências religiosas de juventudes católicas LGBTIA+ nos oferecem, justamente, outras formas de reinvenção da própria experiência e, com isso, a abertura de possibilidades mais autênticas de vida, de pertencimento e reconhecimento, mediante a desestabilização de seus próprios pressupostos.  Um conjunto de fissuras e rachaduras importantíssimas que revelam a grandiosidade do empreendimento de poder das opressões, mas também as possibilidades mais evidentes de sua ruína. Olhemos para elas!


[1] Segundo Sposito e Carrano (2003) “As representações correntes ora investem nos atributos positivos dos segmentos juvenis, responsáveis pela mudança social, ora acentuam a dimensão negativa dos “problemas sociais” e do desvio.” (p. 19).

[2] Podemos compreender um dispositivo como “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2000, p. 244).