“Entre os frutos ou desdobramentos que a experiência de fé provoca na vida de uma pessoa, observa-se com destaque que ela geralmente suscita posturas de crescente confiança interior. Esta confiança se torna fonte de lucidez, coragem e criatividade para que a pessoa, nos altos e baixos da vida, enfrente as travessias impostas nos grandes desafios e urgências do viver… A pessoa transformada pela experiência da fé passa a viver consciente da proximidade amorosa do Deus estradeiro conosco, a buscar a direção a seguir pelo discernimento interior, pessoal e coletivo, a partir da centralidade do amar e servir e, pelo dom da coragem dos profetas, a enfrentar, com responsabilidade e determinação, os desafios e urgências do caminho… Acontece que a história da humanidade nos mostra que a experiência da fé pode assumir formas deturpadas, desequilibradas e até mesmo doentias no viver concreto das pessoas.”
Confira a reflexão do teólogo Edward Guimarães:
Em tempos de pandemia, o desafio da vivência da fé como fonte de lucidez, coragem e criatividade para a arte do cuidado e da busca do bem viver
O bem viver pode ser definido com uma sabedoria prática, a de viver com equilíbrio e moderação, prudência e justiça, no cultivo diário da sensibilidade e do cuidado amoroso nas relações que a pessoa estabelece consigo mesmo, com os outros, com a Casa comum e com Deus. O fato da vida ser frágil traz, por um lado, a urgente exigência de aprender a dela cuidar e a protegê-la, mas, por outro, oferece o acesso às suas fontes de delicadeza e beleza. Reconhecer a fragilidade e os limites que a vida nos impõe é caminho fecundo de humanização.
A experiência de fé é uma vivência espiritual que toca o mais profundo de nosso ser e por isso traz consequências importantes para a totalidade da vida de uma pessoa. Por isso, a vivência da fé não deve ser acolhida de qualquer jeito ou compreendida de modo superficial.
O objetivo maior deste texto teológico-pastoral é refletir criticamente sobre a experiência da fé e aprofundar sobre o seu verdadeiro sentido e, igualmente, sobre seus riscos para o nosso viver e conviver.
Entre os frutos ou desdobramentos que a experiência de fé provoca na vida de uma pessoa, observa-se com destaque que ela geralmente suscita posturas de crescente confiança interior. Esta confiança se torna fonte de lucidez, coragem e criatividade para que a pessoa, nos altos e baixos da vida, enfrente as travessias impostas nos grandes desafios e urgências do viver.
I – A singularidade da experiência da fé cristã
No caso da fé cristã, essa experiência espiritual provoca uma entrega confiante da própria vida nas mãos de Deus. Ela fundamenta-se na experiência trinitária da proximidade amorosa de Deus Pai Criador, que se revela, pela chama transformadora do Espírito Santo presente no interior de cada um, na vida de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus que veio e se abaixou até pertinho nós, tornando-se em tudo igual a nós, menos no pecado.
Desse modo, em nome do Pai e pela força Espírito Santo, Jesus torna-se caminho humano de salvação oferecido a todos: um caminho trilhado pelo cultivo da centralidade do amar, servir, proteger e cuidar da vida na busca do conviver pautado pelo afeto fraternal-sororal, pela justiça, pela partilha solidária com os pobres e marginalizados, pela misericórdia com os caídos pelo caminho e pelo cuidado com a Casa comum.
O Pai e o Filho enviam o Espírito Santo aos nossos corações para que a vivência da fé em Deus provoque a liberdade humana para que esta acolha o projeto de Deus. Projeto que se concretiza pela busca do bem viver: viver confiante, livremente comprometido com o amar, o servir, o proteger e o cuidar da vida e do conviver afetuoso, justo e solidário. Desse modo, a pessoa transformada pela experiência da fé, alimentada pela Palavra de Deus e pelo testemunho coerente dos irmãos e irmãs da comunidade de fé, passa a viver consciente da proximidade amorosa do Deus estradeiro conosco, a buscar a direção a seguir pelo discernimento interior, pessoal e coletivo, a partir da centralidade do amar e servir e, pelo dom da coragem dos profetas, a enfrentar com responsabilidade e determinação os desafios e urgências do caminho.
Em outras tradições religiosas, a experiência da fé provoca e promove algo muito semelhante no sentido de iluminar o caminho a seguir, suscitar serenidade, discernimento e sabedoria para a busca diária do bem viver pautado pelo amar, servir, proteger e cuidar da vida e das relações constitutivas da vida humana.
II – Sobre a experiência ingênua e deturpada da fé
Acontece que a história da humanidade nos mostra que a experiência da fé pode assumir formas deturpadas, desequilibradas e até mesmo doentias no viver concreto das pessoas. Por isso a vivência da fé exige estudo, aprofundamento, contínua reflexão crítica-autocrítica, discernimento, avaliação do caminho percorrido, troca de ideias em boas rodas de conversa e orientação. Afinal, em nome de sua religião ou de uma divindade, um fiel pode fazer coisas abomináveis, tais como dominar, explorar, violentar, discriminar e matar seus irmãos e irmãs mesmo que estes sejam, como ele, filhos e filhas de Deus, membros da mesma humanidade e companheiros de partilha da mesma Terra, nossa Casa comum.
A grande maioria dos brasileiros e brasileiras se reconhece cristã, membro de uma entre as diversas denominações cristãs (igrejas) ou mesmo sem vínculos institucionais (os cristãos desigrejados, conforme denominou o teólogo Leonildo Silveira Campos). Debruçando sobre a experiência cristã, percebe-se claramente que determinadas leituras de trechos específicos dos textos sagrados, de narrativas dos testemunhos de fé e de passagens da vida dos santos e santas, geralmente feitas de forma literalista ou fundamentalista, mesmo quando movidas por boa vontade e sinceridade da parte dos fieis, geram compreensão deturpada do sentido da fé e de seu dinamismo histórico. Consequentemente, a experiência da fé passa a ser vista como uma espécie de acesso a um poder mágico, absoluto e manipulável por meio de certos objetos, ritos e gestos. Isso traz graves consequências para a vida concreta das pessoas e para seus grupos de convivência, pois, ela determina, de certa forma, a maneira como elas passam a encarar suas relações religiosas, familiares, sociais, políticas, econômicas, ecológicas.
Com tal compreensão deturpada, ou simplesmente ingênua, homens e mulheres de fé acabam assumindo posturas muito imprudentes e até mesmo insanas, como as que estamos observando nesses tempos difíceis de pandemia de novo coronavírus.
Aqui importa, com urgência, dizer de modo claro e contundente, com as palavras proféticas da teóloga Romi Bencke: a fé não imuniza as pessoas! E, consequentemente, o que faz com que muitas peguem o Coronavírus (Covid-19) não é a falta de fé ou confiança em Deus, mas a ignorância dos modos de transmissão ou, mesmo quando imbuídos de religiosidade e sincera piedade, por um comportamento ingênuo e simultaneamente imprudente e insano!
III – Em busca das origens da compreensão ingênua ou deturpada da experiência da fé
Quem está mais familiarizado com a tradição judaico-cristã, por exemplo, ao ler literalmente e sem as devidas considerações necessárias à interpretação de um texto sagrado, passagens como as dez pragas do Egito (Cf. Ex 7-12), a epopeia da travessia pelo mar Vermelho com a libertação dos escravos hebreus no Egito (Cf. Ex 14) e, sobretudo, os milagres de Jesus narrados nos evangelhos (Cf. Mt 8, 1-34; 9, 1-8.18-34; 12, 9-14.22-32; 14, 13-36; 15, 21-39; 17, 14-21; 20, 29-34; Mc 1, 21-45; 2, 1-12; 3, 1-12; 4, 35-41; 5, 1-43; 6, 30-56; 7, 24-37; 8, 1-9.22-26; 9, 14-29; 10, 46-52; Lc 4, 31-41; 5, 1-26; 6, 6-11; 7, 1-17; 8, 22-56; 9, 10-17.37-43; 11, 14-26; 14, 1-6; 17, 11-19; 18, 35-43; Jo 2, 1-12; 4, 43-54; 5, 1-18; 6, 1-21; 9, 1-41; 11, 38-44), dentre muitos outros trechos, pode conceber o agir de Deus na história como uma espécie de força invisível onipotente que a tudo submete à vontade divina. Algumas passagens bíblicas dos evangelhos são decisivas para que se acolha a força da oração de uma forma ilimitada, tais como: “Pedi e vos será dado! Procurai e encontrareis! Batei e a porta vos será aberta! Pois todo aquele que pede recebe, quem procura encontra, e a quem bate, a porta será aberta…” (Cf. Mt 6, 7-8).
O problema é que, sem critérios de interpretação, sem educação da fé, o agir divino passa a ser acolhido, geralmente com a anuência de pregações de líderes religiosos despreparados ou mal-intencionados, como um poder onipotente que está disponível e que pode ser manipulado por um fiel em oração, desde que este tenha fé incondicional em Deus.
Além disso, ao ler na Bíblia, por exemplo, que, após a morte-ressurreição de Jesus e a vinda do Espírito Santo, seus discípulos deram continuidade ao agir taumaturgo do Mestre (Cf. At 3, 1-10; 5, 12-33; 9, 32-43), diante de tantos relatos de milagres de Deus operados pelas mãos de Maria, a mãe de Jesus, e dos santos e santas de Deus, sem mais, muitos cristãos, com toda sinceridade piedosa, são induzidos a pensar que a força da fé pode ser manipulada através de um objeto, rito ou gesto sagrado de devoção.
Por isso vemos, por exemplo, pessoas de boa fé, às vezes estimuladas por certas pregações, conceberem que – se fizerem o sinal da cruz com devoção e fé, se andarem com o crucifixo ou algum outro amuleto sagrado no pescoço, se receberem a aspersão de água benta, se comungarem a Hóstia sagrada, se rezarem o rosário com devoção, se estiverem de joelhos, se fizerem uma novena ou uma peregrinação a um santuário ou a Terra Santa, dentre muitos outros gestos e ritos –, tudo o que pedirem a Deus com fé elas alcançarão, ainda que o que peçam signifique violar as leis da natureza (causa e efeito, gravidade, temporalidade…), os limites da frágil condição humana ou a seriedade do complexo dinamismo sociopolítico e econômico da história. Alimenta-se tais desejos com o recorrente postulado acolhido geralmente de forma tácita e irrefletida: “para Deus nada é impossível”.
Acontece que tal compreensão do agir divino não se funda na revelação presente na tradição judaico-cristã, mas em determinada interpretação geralmente a-histórica, literalista e fundamentalista. Isso porque não foi por falta de fé que o povo de Israel foi escravizado no Egito e perseguido ao longo de sua história. Não foi igualmente por falta de fé de Jesus e de seus discípulos e discípulas, que o Profeta da Galileia foi traído por Judas, foi preso, julgado na calada da noite e condenado por Anás, Caifás e Pilatos à pena de morte na cruz. Não foi também por falta de fé que muitos homens e mulheres foram contaminados ao dedicar-se integralmente aos cuidados de doentes portadores de moléstias contagiosas. A fé não deve ser concebida como uma redoma ou um escudo capaz de anular a nossa vulnerabilidade ou fragilidade diante do perigo.
Importa perceber que o dinamismo da natureza, a realidade da vida, a própria condição humana e a seriedade dos acontecimentos da história devem ser compreendidos com sabedoria, de modo que estejam a serviço do aprendizado central de nossa vida: aprender a arte de amar, de colocar-se a serviço, de proteger e de cuidar uns dos outros, da vida e de nossa Casa comum. Não é isso que está sendo chamado de ecologia integral?
IV – O desafio de cuidar da mentalidade religiosa
Não é fácil conhecer o processo histórico de formação da mentalidade religiosa de uma pessoa e avaliar os fatores ou acontecimentos que foram cruciais para sedimentar determinada concepção de fé crítica, ingênua ou deturpada. Apesar disso, o caminho que se apresenta favorável para se trilhar é o da vigilância, do estudo, da reflexão crítica-autocrítica, do aprofundamento, do discernimento, da avaliação, da busca de lucidez e da verdade do sentido da fé e do bem viver.
Quando se toma consciência das possibilidades e limites de determinada mentalidade religiosa, a pessoa é chamada a procurar discernir, aprofundar, purificar ou mesmo superar determinadas compreensões que vão se revelando inconsistentes, ingênuas ou deturpadas. No entanto, importa reconhecer que é com a mentalidade religiosa que a pessoa se relaciona com Deus, que concebe as formas do agir divino no mundo, na história e nos acontecimentos da vida concreta de cada um. Do mesmo modo, é a mentalidade religiosa que interfere na maneira de agir e no nível de qualidade das diversas relações que cada pessoa de fé estabelece.
Há muitas mentalidades religiosas distintas: algumas atribuem toda causalidade, consequência e responsabilidade diante dos acontecimentos diretamente a Deus. Outras atribuem toda causalidade, consequência e responsabilidade aos seres humanos enquanto sujeitos históricos. Entre as duas primeiras, há mentalidades religiosas que procuram unir os dois polos com equilíbrio e discernimento, embora procurando distinguir o nível da ação divina, sempre transcendente, e o da ação humana, histórica e imanente. Estas procuram discernir a (inter)relação entre as duas, a ação divina e humana. Quanto maior o peso atribuído à ação divina, menor a responsabilidade humana e vice-versa.
A revelação judaico-cristã funda-se na experiência de uma aliança histórica entre duas liberdades: de um lado, a livre iniciativa de Deus em nos criar livres e responsáveis e aproximar-se amorosamente da pessoa humana (proposta ou projeto de Deus) e, de outro, a livre resposta humana a Deus em acolher o dom da liberdade e assumir a responsabilidade no amar-servir e no cuidar da vida, da convivência fraterna-sororal e da Casa comum.
V – A urgência de outra compreensão da fé
É muito importante sublinhar que, de modo algum, a fé deve ser compreendida, como uma espécie de superpoder que torna a pessoa humana protegida, agraciada e invulnerável diante das fragilidades e de qualquer tipo de ameaça à vida: endividamentos, violências, doenças, acidentes, tragédias…
Ao contrário, a fé adulta é acolhida como fonte de confiança no Amor de Deus por nós – trata-se de um Deus que se revela Emanuel, sempre estradeiro conosco – e de responsabilidade humana para o amar, o servir e o cuidar da vida, da convivência e da Casa comum.
A fé, em última instância, é fonte de lucidez, coragem e criatividade para o discernir e para a busca do bem viver: para a prática do amar que se coloca a serviço a vida, do amar que se faz solidário para com o próximo, do amar que se faz misericórdia e opção pelos pobres e vulneráveis, do amar que se faz partilha inclusiva e práxis de justiça social, do amar que se faz cuidado com a nossa Casa comum.
Prof. Edward Guimarães é doutorando em ciências da religião pela PUC Minas, mestre e graduado em teologia pela FAJE e licenciado em filosofia pela UFMG. É professor do Departamento de ciência da religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. É membro do Conselho arquidiocesano de pastoral e assessor do Vicariato episcopal para ação pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte.