Meu comentário se dirige, antes de tudo, aos cristãos que, enquanto homens ou mulheres de fé, buscam discernir a vontade de Deus para suas vidas. Um pressuposto importante é que todo texto, como também o religioso, é polissêmico, ou seja, permite mais uma leitura. Dito isso, portanto, sem qualquer pretensão de explorar ou de esgotar todos os sentidos sigamos com esta reflexão:
1. Um cristão quando lê a Bíblia a acolhe como Palavra de Deus, seja para ele, seja para sua comunidade de fé e partilha de vida. Por isso é tão importante, como uma leitura de fé que busca discernir e conhecer a vontade de Deus, compreender bem a mensagem do texto bíblico.
Num primeiro momento, importa situar o texto no contexto em que foi escrito [o que estava a acontecer, como os envolvidos diretamente com o surgimento do texto entendiam a dinâmica da vida, da cultura, da sociedade, da política, da economia, da religião…] e buscar conhecer o(s) pretexto(s) que levou(ram) a escrever o texto [para quem escreveu(ram) e com que objetivo(s)] para, em seguida, interpretar a luz da fé o conteúdo da mensagem, mas em diálogo fecundo com o nosso contexto e pretexto(s).
Invocar o Espírito Santo, usar boa tradução bíblica (por exemplo: a da CNBB, a de Jerusalém, a TEB – tradução ecumênica, a pastoral…), acompanhar a leitura com um bom comentário bíblico (há diversos em português) e criar pequenos círculos bíblicos ou grupos de reflexão (a busca da vontade de Deus em comunhão fraterna)… Este pequeno conjunto de procedimentos tem se mostrado um excelente caminho para o cultivo da intimidade com os textos sagrados na tradição cristã.
2. Os evangelhos não são biografias de Jesus, mas sobretudo narrativas de fé dos/as discípulos/as para transmitir, pela força do Espírito Santo, a experiência de fé confiante no Deus Emanuel (Deus estradeiro, sempre conosco), pois, enquanto peregrinos não estamos sozinhos na luta diária pela vida digna, realização e felicidade, no enfrentar os desafios e as adversidades do caminho. A fé dos pobres, oprimidos e excluídos, revela um Deus que está sempre junto conosco, a promover e provocar libertação, mesmo quando pensamos com pessimismo ou realismo histórico que neste mundo, a vitória é sempre dos poderosos e/ ou espertalhões capazes de fazer qualquer coisa para alcançar seus objetivos.).
Os evangelhos anunciam o testemunho do profeta da Galileia, Jesus de Nazaré, que por meio de palavras e ações, revelou a presença do Reino do Deus da vida no meio de nós. Na fé de Jesus, Deus é o Abba (paizinho amoroso), que está conosco na luta contra as forças de morte. Na dinâmica conflitiva dos acontecimentos – mesmo na tragédia da traição, prisão, paixão e morte violenta na cruz –, os evangelhos revelam, de forma esperançada, a presença atuante e libertadora de Deus, o Senhor da história. Jesus encarna em sua vida, fiel até as últimas consequências, a um caminho que nos ensina a viver segundo a vontade de Deus: ele passou a vida fazendo o bem. A Ressurreição de Jesus da morte revela a presença e a soberania de Deus: ele tem a última palavra sobre o destino da vida.
Os cristãos hoje são chamados a fazer a mesma experiência dos/as discípulos/as de Jesus, deixar-se transformar pela certeza gerada pela fé na presença atuante do Deus libertador na história, mesmo em meio as cruzes da violência dos tiranos de nosso tempo. A presença amorosa e libertadora do Deus de Jesus é capaz de vencer a forças do mal e da morte.
3. No tempo de Jesus [como também em qualquer momento da história e, portanto, hoje também], cada pessoa precisava fazer experiência transformadora da “liberdade libertada”, ou seja, experimentar a dignidade de ser sujeito de sua história, a autonomia de discernir e escolher o melhor caminho a seguir e, assim, poder concretizar a realização e a felicidade. Para isso, era preciso vencer as “forças malignas” que lhe escravizam e impedem a concretização da liberdade.
Na linguagem religiosa, “demônio” poderíamos traduzir como a personificação histórica do inimigo da liberdade dos filhos e filhas de Deus, ou seja, de tudo o que impede concretamente cada pessoa ou grupo avançar na conquista da dignidade humana. Pode ser considerado “demônio”, portanto, qualquer realidade que domina, escraviza ou mesmo retira a autonomia e a coragem do ser humano, seja no nível pessoal, social, cultural, econômico, político, religioso. Demônio é o que rouba a esperança, o ânimo, a coragem e a força interior de lutar, o que impede a libertação para a realização da vida digna dos filhos e filhas de Deus.
São tantos os demônios a ser expulsos para que a vida seja o bem maior a ser cuidado: uma pessoa pode ser um demônio; um preconceito social pode ser um demônio; uma prática cultural pode ser um demônio; uma estrutura injusta pode ser um demônio; uma postura religiosa impiedosa pode ser um demônio; uma lógica econômica que explora e exclui pode ser um demônio; um modo de exercer a política de forma tirânica e que legitima a violência e a morte pode ser um demônio…
Neste sentido, no tempo de Jesus era possível discernir e reconhecer as forças do mal, os muitos demônios que estavam a impedir as pessoas, concretamente cada homem ou mulher daquele tempo, de experimentarem a liberdade de amar e serem amados, partilhar e serem incluídos na mesa da dignidade, de servir e de serem servidos, de cuidar e de serem cuidados. Eram demônios a dominação romana, os procuradores, os centuriões e seus soldados, a dominação de Herodes, dos herodianos e seus soldados, dos cobradores de impostos, a dominação dos saduceus (elites políticas e econômicas), a dominação do sumo sacerdote, doutores da lei, fariseus (elites religiosas). Mas também eram demônios a mentalidades com seus preconceitos e mecanismos de exclusão social dos pagãos, dos(as) samaritanos(as), das mulheres em geral, dos(as) órfãos(ãs) e viúvas, das crianças, dos(as) doentes, leprosos por exemplo, dos(as) escravos(as). Outros demônios que Jesus expulsava, com sua autoridade e curas, por onde passava: da indiferença social e seus males, do egoísmo e seus males, da corrupção e seus males, da mortalidade infantil e seus males, da hipocrisia religiosa e seus males, do preconceito e seus males, da ignorância do o Reino de Deus e do amor gratuito e universal de Deus e seus males… A práxis libertadora de Jesus contagiou e envolveu os/as seus/suas discípulos/as, de forma que dela também participaram e, após a morte de Jesus, deram continuidade.
Os evangelhos narram a vida de Jesus como alguém que passou a vida fazendo o bem, libertando as pessoas, ajudando que estas experimentassem a Deus como fonte de vida nova. Ele provocou nas pessoas a possibilidade de experimentarem a Deus, a si mesmas, a vida, a cultura, a sociedade, a política, a economia e a religião de “outra maneira”. Esta outra maneira é que era profundamente libertadora… O jeito de Jesus, o modo dele viver e de ensinar a viver, concretizava, por onde passava, “outra maneira” possível de convivermos, de assumirmos juntos a liberdade dos filhos e filhas de Deus.
Concluindo, pode-se afirmar que a experiência cristã ou é libertadora dos “demônios” que escravizam a mente e a liberdade humanas ou não é uma experiência fiel à fé cristã. O Deus de Jesus se revela como o anti-mal, como aquele que está conosco na luta contra as forças demoníacas que impedem, sobretudo, aos pobres e oprimidos de viver. A ação evangelizadora da Igreja é uma ação de “exorcismo dos demônios” que concretizam e perpetuam o mal em nosso meio. As pastorais, portanto, precisam assumir a luta contra as forças do mal.
Um cristianismo que aceitasse, acolhesse e convivesse com os “demônios” de hoje, sem lutar para expulsá-los de nosso meio, seria uma traição à memória perigosa de Jesus de Nazaré. Seria como um sal que tivesse perdido o sabor e o poder de salgar. Seria como uma luz que tivesse perdido o poder de iluminar por estar encoberta pelos candeeiros do mal. Não há vida cristã, portanto, vida nova, sem profetismo, sem luta e expulsão dos nossos “demônios” pessoais e sociais, as forças perversas que impedem a vida de ser o bem maior e o seu cuidar cotidiano como o culto que agrada a Deus.
Prof. Edward Guimarães é doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, membro da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER. É professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde é o secretário executivo do Observatório da Evangelização.