“A crise sobre a missão do presbítero não estava no âmbito teológico, mas adentrou a dimensão humana de “alguns”, que sinalizaram que outras preocupações tinham que ser consideradas na formação dos atuais e futuros sacerdotes”, provoca nosso colaborador, Pe. Matias Soares, ao tratar de questões seríssimas tanto para vida presbiteral quanto em relação à formação nos seminários. “O presbítero contemporâneo muitas vezes está posto nesse contexto de liquidez, esvaziamento, preocupação com as aparências, superficialidade e desejo de retropia”, continua ele. “Há quem diga que os futuros presbíteros sejam mais ‘formados pelos gurus’ das Redes do que por aqueles que têm a responsabilidade eclesial de ajudar na formação integral e integrante dos que serão os presbíteros de amanhã.” Vale a pena conferir:
SACERDOTES E PRESBÍTEROS: UMA LEITURA APROXIMATIVA
Por Pe. Matias Soares
O título dessa reflexão já traduz a intenção que pretendo desenvolver. Fruto de partilhas, meditações e observações pessoais, venho percebendo sinais do rosto dos presbíteros da nossa realidade brasileira. A ideia é geral e sem nenhuma pretensão de fechamento a críticas e observações que possam favorecer o amadurecimento de um caminho que precisa ser feito permanentemente, para o bem da Igreja e do povo santo de Deus, que a compõe; ou mais propriamente, que é a sua realidade e diz o que ela é, enquanto peregrina na história. A questão da pessoa e identidade do presbítero precisa ser uma preocupação constante da vida da Igreja, pois somos nós que estamos nas realidades visíveis e circunstanciais das células viventes que compõem o corpo eclesial católico.
O ponto sobre o qual quero tratar é a figura do presbítero do antes e do pós-Concílio. Como já afirmei, a linha de leitura é aproximativa, ou seja, não pretendo tratar a problemática com aprofundamentos científicos e bibliográficos quantitativos, mas com ideias bem claras, mesmo que talvez não distintas. Vejamos cinco pontos: 1) O presbítero antes do Concilio; 2) O presbítero no pós-Concílio; 3) O presbítero e o Ano Sacerdotal; 4) O presbítero da Era Digital; 5) O presbítero e a Sequela Christi.
- O presbítero antes do Concílio: para essa impostação, é necessário pensar o que era sinal de identidade do sacerdote nesta fase. Não uso a terminologia presbítero, neste primeiro momento. Três qualidades eram estruturantes da identidade sacerdotal neste contexto: a) a espiritualidade; b) a formação intelectual; c) a disciplina. Na Conferência Geral do Rio de Janeiro (1955), cujo tema foi “a evangelização como defesa da fé e das vocações e a preparação do clero”, podemos ter uma ideia das prioridades e a visão de sacerdote que era forjada na América Latina e, claro que, no Brasil. No cap. II (Art. I, 9, a) se afirma o que é esperado da formação nos seminários, a saber: “que todos os superiores se esforcem para manter nos seminários o ambiente espiritual, intelectual e humano necessário para formar santos, doutos e idôneos sacerdotes”. Essa era a meta da formação nos seminários. Na convivência com os sacerdotes formados naquela época, isso é algo perceptível. Esses traços eram bem presentes. A austeridade, a vida despojada, a consistente formação cultural e apostolado mais voltado para a vida sacramental, sem dispensar a preocupação com a assistência social, como a construção de abrigos, escolas, centro sociais, formação de lideranças e tantos outros sinais de protagonismo.
- . O presbítero no pós-Concílio: no Brasil houve uma chamada crise da identidade sacerdotal no pós-Concílio. Esse fenômeno foi constatado em toda a Igreja, ao menos daquilo que já ouvi em outros ambientes e reflexões sobre a problemática. O ideal da existência presbiteral, e aqui há de ser mencionada já essa expressão, por causa da própria impostação elaborada no Concílio (Presbyterorum Ordinis), foi orientado em direção a três horizontes: a) ministros da palavra de Deus; b) ministros dos sacramentos; c) ministério pastoral (Cf. PO, Cap. II, 4-6). A leitura e a meditação destes números são fundamentais para pensarmos a reviravolta da missão do presbítero na Igreja e para o Mundo, depois do Concílio. Ainda, para o que é relevante nesta reflexão, vale considerar o que é lembrado no final do n. 6, que afirma: “Na estruturação da comunidade cristã, os presbíteros nunca servem alguma ideologia ou facção humana, mas, como anunciadores do Evangelho e pastores da Igreja, trabalham pelo aumento espiritual do corpo de Cristo”. A continuidade da missão presbiteral, no é que essencial, continua. O presbítero de então era chamado a ser, assim como aqueles de antes do Concílio, centrados na missão para a qual o próprio Cristo os chamou, preparou e enviou (Mc 3,13-19; Lc 10,1-24; Mt 28,19-20). Coloco a menção aos vários elementos do discipulado, porque há uma recuperação conciliar do presbítero como homem da palavra, discípulo missionário, assim como todos os demais membros do povo de Deus, em íntima e indissociável missão sacerdotal e pastoral. A experiência de confusão e falta de uma justa hermenêutica fez com que a aplicação das necessárias inovações portadas pelo Concílio tivesse uma influência também no modo de ser do presbítero na América Latina. Hoje podemos pensar que o abandono do elemento dogmático e teológico, direcionou a vida presbiteral ao componente mais prático e ideológico. Com as inquietações históricas e circunstanciais vividas no Brasil, a partir de 1968, os presbíteros assumiram uma dinâmica necessária para aquele momento, mas que, nas suas bases formativas e práticas foram sendo absorvidas como uma possibilidade unilateral de ser presbítero na Igreja. Foi uma reviravolta que abandonou, em muitos contextos, outros fatores da missão quetambém tinham sua importância.
- O presbítero e o Ano Sacerdotal: Foi uma tentativa do Papa Bento XVI, a partir do seu horizonte teológico, reafirmar quem era o sacerdote e a sua missão no mundo contemporâneo. Há de se notar que a centralidade do sacerdote, como ‘sacramento’, é retomada e tida como uma possível resposta a necessária reorientação da identidade presbiteral. Vale ressaltar, que para Bento XVI uma das marcas desse tempo é a crise de fé pela qual passa o homem contemporâneo. Em sua leitura, o sacerdote é vocacionado a ser essa via sacramental entre Deus e esse ser humano. Eis o que afirma o então Pontífice na homilia de encerramento do Ano sacerdotal: “O sacerdote não é simplesmente o detentor de um ofício, como aqueles de que toda a sociedade tem necessidade para nela se realizarem certas funções. É que o sacerdote faz algo que nenhum ser humano, por si mesmo, pode fazer: pronuncia em nome de Cristo a palavra da absolvição dos nossos pecados e assim, a partir de Deus, muda a situação da nossa vida. Pronuncia sobre as ofertas do pão e do vinho as palavras de agradecimento de Cristo que são palavras de transubstanciação – palavras que O tornam presente a Ele mesmo, o Ressuscitado, o seu Corpo e o seu Sangue, e assim transformam os elementos do mundo: palavras que abrem de par em par o mundo a Deus e o unem a Ele. Por conseguinte, o sacerdócio não é simplesmente ofício, mas sacramento: Deus serve-Se de um pobre homem a fim de, através dele, estar presente para os homens e agir em seu favor” (Bento XVI). Infelizmente, com os escândalos e intensas descobertas dos casos de pedofilia, envolvendo os sacerdotes, o que fora almejado pelo Papa Bento não teve o êxito esperado. A crise sobre a missão do presbítero não estava no âmbito teológico, mas adentrou a dimensão humana de “alguns”, que sinalizaram que outras preocupações tinham que ser consideradas na formação dos atuais e futuros sacerdotes. Um desafio era lançado. O Pontífice reconhece o que estava existindo e afirma o seguinte: “E assim aconteceu que, precisamente neste ano de alegria pelo sacramento do sacerdócio, vieram à luz os pecados dos sacerdotes, sobretudo o abuso contra crianças, no qual o sacerdócio enquanto serviço da solicitude de Deus em benefício do homem se transforma no contrário. Também nós pedimos insistentemente perdão a Deus e às pessoas envolvidas, enquanto pretendemos e prometemos fazer tudo o possível para que um tal abuso nunca mais possa suceder; prometemos que, na admissão ao ministério sacerdotal e na formação ao longo do caminho de preparação para o mesmo, faremos tudo o que pudermos para avaliar a autenticidade da vocação, e que queremos acompanhar ainda mais os sacerdotes no seu caminho, para que o Senhor os proteja e guarde em situações penosas e nos perigos da vida” (Bento XVI). Tal situação questiona a Igreja internamente e a desacredita externamente. Há um desgaste, que está na sombra do agir moral da instituição, que ainda, apesar de muitas iniciativas tanto para rever a formação e o acompanhamento dos sacerdotes, quanto para apurar os escândalos e punir os culpados, segue sendo bombardeada de muitos modos.
- O presbítero da Era Digital: aqui, usando o que é marca da época pós-moderna, quero situar a figura do presbítero nessa nova realidade líquida. O presbítero contemporâneo muitas vezes está posto nesse contexto de liquidez, esvaziamento, preocupação com as aparências, superficialidade e desejo de retropia (expressão usada por Bauman para descrever um desejo de volta ao passado). Essa confusão está reorientando a própria formação nos seminários. Há quem diga que os futuros presbíteros sejam mais “formados pelos gurus” das Redes do que por aqueles que têm a responsabilidade eclesial de ajudar na formação integral e integrante dos que serão os presbíteros de amanhã. Em contrapartida, as sementes de uma ideologização pós-conciliar, que consagram a polarização clerical entre os assim chamados conservadores e progressistas, os de direita e os de esquerda, impulsionam a uma desgastante confusão de qual seja o “rosto do presbítero da Igreja no Brasil, nos dias atuais”. Quando nós, os presbíteros brasileiros que estudamos em Roma, fomos recebidos em audiência pelo Papa Francisco, o mesmo nos pediu: “sejam um sinal de esperança para o povo brasileiro”. Essas palavras devem ser, para todos nós, uma provocação que nos leva à reflexão. Como o presbítero brasileiro, nos dias de hoje, pode ser essa testemunha da esperança para o povo do Brasil? Penso que o Papa Francisco, mesmo sem uma ordem, tem nos mostrado um caminho condizente com a dinâmica do Evangelho. Leiamos e estejamos atentos às suas orientações. Mesmo sabendo que há um problema: muitos não querem a “conversão pastoral, nem missionária” que o Pontífice deseja para a Igreja nos dias de hoje. Muitos estão apegados a um modelo de sacerdócio de antes do Concílio, enquanto outros estão apegados aos ideais de presbítero do pós-Concílio, sem uma honesta e equilibrada hermenêutica do único sujeito eclesial, que é o presbítero que é sacerdote e do sacerdote que é presbítero. Temos que rezar e pensar. É urgente e necessário. Basta de busca pelo eterno retorno, como também, basta de dialética. É necessário conversão.
- O presbítero e a Sequela Christi: mesmo com um norte mais dogmático, uma leitura que me serve como base para pensar esse último ponto é tirada de uma leitura espiritual que fiz recentemente, que é do grande teólogo Hans Urs von Balthasar (Esistenza Sacerdotale, 2010). Sei que outras vias podem e devem ser propostas; contudo, depois de escrever algumas linhas, julgo pertinente trazer certas referências desse autor para possíveis aplicações e discussões. Para Balthasar, a espiritualidade sacerdotal é essencialmente eclesial e mariana. Pois, a imagem originária da Igreja é Maria, enquanto Pedro simplesmente exercerá uma função na Igreja. Tomo esse paradigma espiritual, porque é uma característica dos grandes teólogos católicos da modernidade para pensarem a identidade cristã. A presbiteral não pode ser indiferente a esse horizonte antropológico e teológico. Para Balthasar, e aqui a questão central deste último ponto, é que a chamada à “sequela radical” constitui as primeiras articulações do novo e as primeiras concretizações do andar incondicionado: Deixar tudo (Mc 1,17.20; 2,14; Lc 5,11; Mt 19,27); não colocar condições limítrofes (Mt 8,16-22); jogar tudo em uma única carta: um andar literalmente atrás de Jesus sem conhecer antecipadamente onde este irá (Jo 1,39). Com isso, vem a direção apresentada ao dado apostólico da vida presbiteral, que tem em Jesus Cristo a sua fonte inesgotável, insubstituível e universal. Através de Maria e Pedro, precisamos aprender o que fazer e como fazer.
Por fim, essa atenção ao que somos e qual é nossa missão nos presbitérios da Igreja no Brasil não pode ser secundária. Nesse aspecto, os Bispos têm uma missão insubstituível e personalíssima. O presbitério mesmo precisa se sentir responsável pelo seu próprio bem, caso queira servir dignamente e evangelicamente ao povo de Deus. Somos sacerdotes presbíteros e presbíteros sacerdotes. Não há necessidade de confusão. Nada de polarização, mas integração e consciência de que Jesus Cristo nos chamou, porque Ele quis. Com a Igreja e por amor a essa vocação, cuidemos desse tesouro que o Senhor nos concedeu, em vasos de argila, mas com a certeza da sua graça. Assim o seja!
Quanto ao artigo do Pe. Matias Soares, muito interessante aliás, quero apenas advertir o perigo de introduzir mais um termo errado na linguagem da moda: retropia. Refere-se ao termo criado por Zygmunt Bauman, mais exatamente: “retrotopia”, a utopia que fica para trás, a idealização de um passado que não foi tão bonito assim como se imaginava. Com mais de meio século de sacerdócio fico com pena daquelas jovens seminaristas e mesmo sacerdotes que acham que a batina e as vestes rendadas vão salvar a fé. Jesus Cristo e a fé nada têm a ver com essas aparências. Leiam Hebreus 11-12.
Minha intenção é justamente mostrar a precariedade desse fenômeno. Foi o termo que encontrei para descrevê-lo. Obrigado pelo comentário e observação!
“Fazei tudo o que Ele vos disser.” (João 2,6).
Penso que o termo mais adequado seria retroutopia.