CF 2019: Segundo Dom Guilherme, é preciso reanimar os movimentos sociais

O bispo de Lages (SC) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Social Transformadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Guilherme Werlang, concedeu uma provocante entrevista sobre a Campanha da Fraternidade 2019, na qual defendeu que

os movimentos sociais são uma instância para que os pobres possam ter vida mais digna e buscar a vida plena e a mudança, como é o desejo do próprio Jesus Cristo”.

Confira. a seguir, a entrevista concedida a Frei Gustavo Medella:

1.Qual a importância dos movimentos sociais para conquista de direitos pela população?

Dom Guilherme – Em um país que quer se definir como democrático, os movimentos sociais são indispensáveis. Eles são a voz do povo mais pobre, sofrido, que não são contemplados em seus direitos de cidadão. Eles são indispensáveis para o cumprimento dos direitos, sobretudo da parte mais fragilizada da população e da parte mais excluída da sociedade. Se esta parcela da população não tivesse os movimentos sociais, certamente seria, mais do que já é, considerada pela elite dominante como um lixo social, ou como há muitos anos o padre Zezinho cantava, que era uma massa sobrante e excluída como frutos de um sistema que só vê lucros em seus objetivos. Tive a oportunidade, há um ou dois anos, de participar do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na posição de presidente da Comissão Episcopal para a Ação Social Transformadora. Acompanhei a votação para um pedido de habeas corpus em favor de um líder do Movimento Sem-Terra, que estava sendo criminalizado e preso injustamente. Pude ouvir do presidente do STJ que os movimentos sociais não são organizações criminosas, como muitas pessoas dizem. Ganhamos aquele habeas corpus por seis votos a zero. Significa que eles, tendo ou não tendo um CNPJ, como às vezes se atribui, são legítimos, necessários e indispensáveis. Seja no campo ou na cidade, como moradores de rua, catadores de lixo, recicladores, sem-teto. Eles atuam quando os grupos sociais não são contemplados pelas Políticas Públicas. A única forma de sobreviverem e se defenderem, com dignidade, é por meio das organizações e movimentos sociais. Nós, como Igreja, não podemos ter medo de apoiar os movimentos. Nem sempre preciso assinar embaixo de tudo o que os movimentos sociais fazem. Eles caminham com as próprias pernas, pensam com a própria cabeça. Mas nós, como Igreja – até pelo exemplo explícito do Papa Francisco – temos, a partir do Evangelho, que tomar uma posição, temos que estar juntos dos movimentos para refletir, caminhar com eles e dar ao povo dignidade de vida. Não é à toa que o Papa Francisco realizou três encontros mundiais dos movimentos populares. Tive a oportunidade de participar do segundo encontro que aconteceu em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Sem dúvida, os movimentos sociais são uma instância para que os pobres possam ter vida, vida mais digna e vida plena, como é o desejo do próprio Jesus Cristo.

2. Quais os principais desafios para estes movimentos no Brasil hoje?

Dom Guilherme – Não gostaria de roubar a palavra dos movimentos sociais, mas, na minha visão, enquanto bispo e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Social Transformadora da CNBB, creio que, especificamente neste momento histórico que o Brasil atravessa, quando sabemos que a campanha eleitoral, tanto para o Legislativo quanto para o Executivo, especialmente, desceu a níveis baixíssimos, estamos diante de um quadro, que vejo com muita preocupação, de retirada dos direitos adquiridos a duras penas pelo povo brasileiro na área trabalhista, seguridade social, saúde, educação, alimentação. Diante deste quadro que está aí, onde o capital nacional e internacional influenciam de uma forma avassaladora, buscando mais e mais lucros, desrespeitando a sociedade brasileira, o meio ambiente e a cultura. O maior desafio é continuar organizado, mobilizado e resistindo. Neste momento, a resistência deve ser a palavra-chave. Não desistir, não entregar de mão beijada aquilo que foi conquistado durante 20, 30 anos ou mais, depois do regime militar e depois da Constituição de 1988. Não podemos entregar aquilo que foi construído pelo povo para que o capital tenha mais lucros. O grande desafio é desmascarar as mentiras, que, por meio da grande mídia, espalha-se e faz com que o povo acredite. Por exemplo, de que a Previdência Social esteja quebrada. Não existe isso e os números mostram. Bastaria cobrar todas as dívidas de INSS das grandes empresas e grandes capitais, como os bancos. Os movimentos sociais, neste momento, têm o desafio de continuar na resistência. Muitos estão perdendo o sonho, dizendo que tudo foi em vão. É preciso reanimar os movimentos sociais e também posicionar-se diante da ameaça da criminalização e da judicialização destes grupos. Será um momento muito difícil para a sociedade brasileira, especialmente para as lideranças dos movimentos, no campo, na cidade, nos sindicatos. Aqueles que, de fato, querem defender os direitos do povo brasileiro. Na minha visão, estes são os grandes desafios e que não podem ser temidos, mas enfrentados para que a democracia, que ainda é fraca e frágil, não se perca naquilo que nós já conquistamos com luta e organização popular.

3. Qual a importância das pastorais sociais para a caminhada da Igreja no Brasil?

Dom Guilherme – A Igreja no Brasil, através da CNBB, tem 12 Comissões Episcopais Pastorais ordinárias. Temos ainda algumas Comissões Episcopais extraordinárias, como por exemplo a da Amazônia, a da questão da mineração. As pastorais sociais são o rosto da caridade da Igreja, atuam em nome da Igreja, em nome do Evangelho. Elas não estão à margem de outras pastorais. São mais de trinta pastorais sociais organizadas em nível nacional. Elas estão nas fronteiras, como diz o Papa Francisco. Estão onde é mais difícil e procuram ser a presença solidária da Igreja junto àquelas pessoas fragilizadas e vulneráveis, com uma palavra de esperança, sendo presença do Bom Pastor e do bom samaritano no socorro àqueles que estão caídos ao longo da estrada. As pastorais sociais enfrentam grandes desafios. Muitas vezes pessoas da própria Igreja, nas paróquias e nas dioceses, não olham com bons olhos os leigos e leigas, religiosas e religiosos que estão nas pastorais sociais. Os bispos das pastorais sociais, em nome da CNBB, assumem este trabalho nos regionais, acompanhando os grupos, e muitas vezes, estes bispos são facilmente classificados pela sociedade como bispos “comunistas”, sofrem restrições e acusações falsas. A importância das pastorais sociais na Igreja no Brasil, sem dúvida, é sumamente importante e caminha lado a lado com a liturgia, catequese, Cáritas, todas as outras organizações da Igreja. O Evangelho, sem a caridade, não é um Evangelho cristão. Já escrevia São Tiago que a fé sem obras é morta. Alguém que está nas pastorais sociais está na Igreja, assim como quem está a serviço da liturgia, catequese, etc. Como os trabalhos são muitos, cada organização deve distribuir as responsabilidades, dividindo o serviço, para que o corpo social possa ser devidamente atendido. As pastorais sociais não servem somente à própria Igreja, mas estão a serviço da sociedade. Elas são a presença da Igreja nos presídios, entre os moradores de rua, os sem-teto, os sem-terra, aqueles que não têm voz e nem vez. Por isso, precisamos dar incentivo, apoio e solidariedade a todos que militam e lutam nas pastorais sociais, sem temer as críticas e perseguições – e muitas vezes até as mortes. Grande parte dos assassinatos das lideranças dos movimentos sociais acontece porque eles os agentes atuam nas pastorais sociais. Temos muito sangue de mártires correndo neste país. O sangue dos mártires sempre é sementeira de Evangelho, que vai fazer brotar vida nova. Nós não queremos a morte de ninguém, não podemos querer isso, mas precisamos daqueles que, assim como Jesus Cristo, São Paulo e os apóstolos em geral, não temem anunciar o Evangelho. E as pastorais sociais têm esse papel desafiador e sumamente importante na caminhada da Igreja no Brasil e no mundo.

Fonte:

www.franciscanos.org.br