Tragédia de Brumadinho é exemplo da ‘economia que coloca o lucro acima da vida’, diz bispo
Bispo referencial para Brumadinho, dom Vicente Ferreira comenta sobre os dois anos do crime socioambiental da Vale que matou 273 pessoas em Minas:
“Descobrimos que nosso luto tinha que ser verbo. Virar luta porque diante de tantas violações não seria possível a gente não ser uma voz política e profética.“
dom Vicente Ferreira
Por Thiago Ventura
Córrego do Feijão, distrito de Brumadinho. 25 de janeiro de 2019, 12h25. Há dois anos uma ferida aberta nas serras de Minas Gerais dói o corpo e alma de milhares de pessoas atingidas pelo crime socioambiental da mineradora Vale. O rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, conhecido como Tragédia de Brumadinho, matou 273 pessoas, deixou 11 desaparecidas e provocou o segundo maior desastre ambiental da história do Brasil.
Na defesa dos direitos das vítimas, movimentos sociais e órgãos do judiciário têm atuado junto aos moradores. Contudo, a ação da Igreja Católica tem feito diferença no acolhimento do luto, conforto espiritual e força para reivindicar a devida reparação. Uma das vozes que têm feito ecoar esse clamor é dom Vicente de Paula Ferreira, C.Ss.R, bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte e referencial para a Região Nossa Senhora do Rosário (Renser). Devido a sua atuação, tem sido até mesmo reconhecido como ‘bispo de Brumadinho’.
Natural de Alegre (ES) e com 46 anos, dom Vicente é religioso da Congregação Redentorista e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Foi nomeado bispo auxiliar de Belo Horizonte e titular de Castra Nova pelo papa Francisco em março de 2017. Desde o rompimento da barragem tem se dedicado à atender os atingidos e denunciar abusos cometidos pela empresa e governantes.
“Recebo críticas, mas não consigo ficar inerte diante de tantas atrocidades cometidas por empresas e por esses nossos governantes, em relação ao meio ambiente e as nossas comunidades“
dom Vicente Ferreira
Entre fevereiro e março de 2020, dom Vicente participou de encontros internacionais em Viena, Bruxelas, Essen, Berlim e Genebra para falar sobe o crime socioambiental da Vale. Inclusive participou da 43ª Sessão de Direitos Humanos da ONU e concelebrou com o papa Francisco em memória das vítimas.
Seja nos salões nobres da diplomacia ou com o pé no barro de comunidades atingidas, o bispo mantém discurso afinado com os recentes documentos Laudato Si’ e Fratelli Tutti na defesa do meio ambiente e dos pobres. Nesta entrevista, dom Vicente comenta sobre os dois anos da tragédia, bem como indica caminhos para evitar novas tragédias como a de Brumadinho.
“É preciso mudar a cultura e para isso temos que formar as pessoas, exigir novas posturas políticas, mudar esse estilo de economia, a começar por uma vida mais simples até a criação de acordos nacionais e internacionais de proteção ao meio ambiente”
dom Vicente Ferreira
(Entrevista concedida a Thiago Ventura, para o portal Domtotal, publicada em 25/01/2021)
Confira a entrevista:
1. Nestes dois anos de Tragédia de Brumadinho, qual análise o senhor faz do tratamento que as vítimas receberam da empresa e das autoridades?
R.: A tragédia/crime da Vale, em Brumadinho, tem mostrado, cada vez mais, as estratégias perversas de um extrativismo que mata pessoas e meio ambiente. Uma economia que coloca o lucro acima da vida. São dois anos de impunidade e, no momento, denunciamos um provável acordo do estado de Minas Gerais com a Mineradora, sem a participação dos atingidos. As instâncias públicas estão enfraquecidas e as comunidades não se sentem por elas amparadas na luta por justiça. Muitas reuniões, audiências que não dão os resultados esperados. Além disso, a mineração compra as notícias, vendendo mensagens como se tudo estivesse sendo feito. Na verdade, o que está acontecendo é um crime continuado. Constantemente escutamos gritos de socorro pela falta de água, pelo domínio do território, inclusive por conflitos que a própria mineradora provoca entre as comunidades. No meio de tudo isso, estamos nós tentando defender a narrativa dos sobreviventes. Queremos dar voz aos atingidos e atingidas.
Desde o dia 25/01/19 nossa Arquidiocese de Belo Horizonte, sob orientação do arcebispo e presidente da CNBB, dom Walmor de Oliveira, tem se desdobrado, principalmente através da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário, para acompanhar as consequências dessa terrível tragédia. Num primeiro momento, acolhemos doações, amparamos as pessoas, acompanhamos as famílias enlutadas com diversas atividades. Vivemos, juntos, nossos ritos de fé, amor e esperança. Somos Igreja consoladora num cenário desolador. Depois, descobrimos que nosso luto tinha que ser verbo. Virar luta porque diante de tantas violações não seria possível a gente não ser uma voz política e profética. Aos poucos, formamos a Equipe Renser, acompanhamos as comunidades em diversos projetos, ajudamos na formação de um Coletivo dos Atingidos e Atingidas, juntamos nossa fé com a vida e nos colocamos a caminho, rezando e lutando. Povo de Deus peregrino! Como expressão forte de um ano, aconteceu a I Romaria Arquidiocesana, ano passado, e acontece, nesses dois anos, a II Romaria Regional pela Ecologia Integral a Brumadinho.
Focamos os seguintes pilares: memória das 273 pessoas mortas, das quais 11 ainda não foram encontradas, e defesa da bacia do Paraopeba, sendo que a morte de Júlio César no complexo da Mina do Córrego do Feijão, no dia 18/12/2021, reforça a incapacidade da mineradora de operar e reparar sem matar mais vítimas; denúncia do crime; luta pela reparação integral dos direitos; anúncio de uma Ecologia Integral. São cartas/vídeos produzidas pelos atingidos e atingidas, saraus, lives, vigílias, celebrações eucarísticas e o lançamento do Pacto dos Atingidos e Atingidas pelo Crime da Vale, em Brumadinho. Trata-se de um texto construído de forma coletiva e que está traduzido para o inglês e espanhol. Devido à pandemia, quase tudo acontece de maneira virtual.
2. Como evitar que novos crimes socioambientais ocorram?
R.: Essa tem sido uma das pautas muito importantes de diversas redes que estão em formação em nossa Igreja. Lembro, aqui, a Rede Igrejas e Mineração, a Comissão Especial de Ecologia Integral e Mineração da CNBB, recentemente criamos em nosso Regional CNBB Leste 2 um Grupo de trabalho sobre o tema e, na Arquidiocese de Belo Horizonte, também formamos um Vicariato Episcopal Ambiental.
Tudo isso indica a força de muitas pessoas e grupos que estão se empenhando para mudar uma estilística de extrativismo que, cada vez mais, se mostra insustentável. Nesse ponto, a Laudato Si’ é um documento fundamental. Ele nos pede uma conversão ecológica urgente. “Não existem duas crises separadas, uma ambiental e uma outra social, mas uma e complexa crise socioambiental. As diretrizes para uma solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, para restituir a dignidade aos excluídos e ao mesmo tempo para cuidar da natureza” (LS, n. 139).
Em nossa região, por exemplo, são tantas as barragens que correm risco de rompimento que chegamos à conclusão que estamos diante de um tecido estragado que não aceita mais remendo. É preciso mudar a cultura e para isso temos que formar as pessoas, exigir novas posturas políticas, mudar esse estilo de economia, a começar por uma vida mais simples até a criação de acordos nacionais e internacionais de proteção ao meio ambiente.
3. O senhor tem feito uma atuação profética, denunciando incoerências do governo e empresas em relação ao meio ambiente e outras causas. O seu ministério episcopal foi mudado após a experiência de Brumadinho?
R.: Sim. Considero que com o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, eu iniciei um processo de conversão em minha vida e ministério episcopal. Durante muitos anos pesquisei o tema da pós-modernidade, mais precisamente sobre cristianismo e vulnerabilidade, sobre a herança cristã da caridade. Mesmo tendo uma grande proximidade com os mais pobres, as coisas ainda permaneciam num âmbito mais racional, organizacional. O rompimento da barragem foi um choque de realidade, a imposição de um trauma. Algumas coisas, que pareciam importantes no pensamento, tornaram-se reais na prática. Ganharam corpo, encarnaram-se. Tive que aprender com o povo a viver itinerários que nunca imaginava.
Quem está preparado para enfrentar um caos como esse? A vida tem seus imprevistos. Creio que a caminhada de fé e uma formação humanística me deram um grande suporte. Mas é com o povo que tenho aprendido a descobrir clareiras no caminho. É claro que recebo críticas, mas não consigo ficar inerte diante de tantas atrocidades cometidas por empresas e por esses nossos governantes, em relação ao meio ambiente e as nossas comunidades.
Eu conheço a dor dos atingidos e por eles grito, inclusive pela mãe terra. Como ficar calado diante das absurdas queimadas ocorridas ano passado, diante das flexibilizações das leis de proteção ambientais, se os povos originários estão morrendo, se outras barragens podem romper? Se eu me calar, será uma omissão da qual prestarei contas a Jesus porque foi ele quem disse: “o bom pastor dá sua vida pelas ovelhas” (Jo 10, 11).
4. Como fazer crescer na Igreja o cuidado e a ação na defesa da ecologia integral?
R.: O último capítulo da Laudato Sí trabalha o tema da Educação e Espiritualidade Ecológica. O texto toca em assuntos importantes. É preciso buscar um estilo de vida que supere a questão do egoísmo coletivo. A terra já não tem reservas que suportem uma sociedade tão consumista.
Trata-se, então, de fazermos nova aliança entre ser humano e meio ambiente. Família, escola, catequese são espaços privilegiados para esse processo de educação. Em muitos pontos de nossa evangelização nos acostumamos com uma ruptura entre fé e vida, liturgia e realidade, com cristianismo de massa. Temos que buscar outros caminhos e ele passará por um acompanhamento mais personalizado, dentro de pequenas comunidades.
No caso da conversão ecológica, nossa pastoral deve insistir no fato de que tudo está interligado nesse universo criado por Deus. E que nós recebemos do Criador uma vocação privilegiada de sermos cuidadores do jardim e não destruidores do planeta.
5. A crise na saúde e o colapso no Norte do país têm ampliado vozes a favor do impeachment. O senhor acredita que a Igreja católica poderá apoiar esse movimento?
R.: Desde o início da pandemia tenho manifestado indignação com as posturas do Governo Federal. Penso que nosso presidente se mostrou profundamente despreparado para o cargo que ocupa. Em muitas situações foi inconsequente e, agora, tem muitas responsabilidades por termos chegado ao caos que chegamos.
O colapso no Norte do país com a absurda falta de oxigênio é exemplo de situações que poderiam ter sido evitadas. Amargamos uma falta de planejamento do sistema de saúde no combate da pandemia. Sofremos com esse estilo desordenado de tratar uma situação tão grave que tem culminado com a perda de tantas vidas. Tudo isso é mais do que suficiente para que apoiemos o processo de impeachment.
A gente respeita as opiniões políticas divergentes, mas nesse caso, não podemos entrar para a história apoiando um governo “genocida”. É mais do que justo que a Igreja de Jesus ajude, nesse momento, a sociedade brasileira a pensar e escolher outro destino para nosso país, incluindo a luta por vacina para todos e por auxílio emergencial para os milhões de brasileiros sem emprego.
Termino lembrando a Fratelli Tutti “somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar a um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano” (FT, n. 241).
Fonte:
Edificante seu testemunho, dom Vicente. Seu compromisso de pastor com seu povo desprezado pelos poderes é um exemplo e um desafio a cada cristão. Que o Divino Amor o fortaleça nesta profética missão.
Entrevista essa de Dom Vicente nos instrui e orienta como cristãos que somos. Fico verdadeiramente acolhido e incentivado a persistir no amor ao próximo e doar ainda mais um pouco. Obrigado!