Documento final do Sínodo para a Amazônia – Capítulo 3 Novos caminhos de conversão cultural

A nossa conversão deve ser também cultural, fazer-se o outro, aprender do outro. Estar presentes, respeitar e reconhecer seus valores, viver e praticar a inculturação e a interculturalidade no anúncio da Boa Nova. Expressar e viver a fé na Amazônia é um desafio contínuo. Ela se encarna não só no trabalho pastoral, mas em ações concretas para com o outro, nos cuidados de saúde, na educação, na solidariedade e no apoio aos mais vulneráveis… Só uma Igreja missionária inserida e inculturada fará emergir Igrejas particulares autóctones, com rosto e coração amazônicos, enraizadas nas culturas e tradições próprias dos povos, unidas na mesma fé em Cristo e diferentes em seu modo de vivê-la, expressá-la e celebrá-la… a Igreja se compromete a ser aliada dos povos amazônicos para denunciar os ataques contra a vida das comunidades indígenas, os projetos que afetam o meio ambiente, a falta de demarcação de seus territórios, bem como o modelo econômico de desenvolvimento predatório e ecocida. A presença da Igreja entre as comunidades indígenas e tradicionais exige a consciência de que a defesa da terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida. ”

Pela importância para a ação evangelizadora de toda a Igreja, o processo do Sínodo para Amazônia, sua preparação, sua dinâmica fraterna e participativa de realização, sua produção, sua sinodalidade…, precisa ser bem conhecido, pois foi uma experiência inovadora e com muitos elementos originais na vida da Igreja. Ele pode inspirar e fecundar de beleza toda a caminhada da Igreja. 

O Observatório da Evangelização, já publicou a Introdução, o Capítulo 1 Amazônia: Da escuta à conversão integral, o Capítulo 2 – Novos caminhos de conversão pastoral, e, logo abaixo, o Capítulo 3 – Novos caminhos de conversão cultural. Continuaremos a publicar cada umas das partes que compõem o documento aprovado no final do Sínodo e que foi entregue nas mãos do papa Francisco e que certamente servirá de base para a Exortação Pós- Sinodal que sairá em breve. 

Confira:

CAPITULO III

NOVOS CAMINHOS DE CONVERSÃO CULTURAL

“E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14) 

41. A América Latina possui uma imensa biodiversidade e uma grande diversidade cultural. Nela, a Amazônia é terra de florestas e águas, de pântanos e várzeas, savanas e serras, mas sobretudo uma terra de inúmeros povos, muitos deles milenares, habitantes ancestrais do território, povos de antigos perfumes que continuam a perfumar o continente contra todo desespero. A nossa conversão deve ser também cultural, fazer-se o outro, aprender do outro. Estar presentes, respeitar e reconhecer seus valores, viver e praticar a inculturação e a interculturalidade no anúncio da Boa Nova. Expressar e viver a fé na Amazônia é um desafio contínuo. Ela se encarna não só no trabalho pastoral, mas em ações concretas para com o outro, nos cuidados de saúde, na educação, na solidariedade e no apoio aos mais vulneráveis. Gostaríamos de partilhar tudo isto nesta seção.

O rosto da Igreja nos povos amazônicos 

42. Nos territórios da Amazônia há uma realidade pluricultural que exige ter um olhar que inclua a todos, usando expressões que permitam identificar e vincular todos os grupos e refletir identidades que são reconhecidas, respeitadas e promovidas tanto na Igreja quanto na sociedade, que devem encontrar nos povos amazônicos um interlocutor válido para o diálogo e o encontro. Puebla fala dos rostos que habitam a América Latina e observa que, nos povos indígenas, há uma mestiçagem que cresceu e continua crescendo com o encontro e os desencontros entre as diferentes culturas que fazem parte do continente. Este rosto, também da Igreja na Amazônia, é um rosto encarnado em seu território, que evangeliza e abre caminhos para que os povos se sintam acompanhados em diferentes processos de vida evangélica. Também está presente um renovado sentido missionário por parte dos habitantes dos mesmos povos, realizando a missão profética e samaritana da Igreja, que deve ser reforçada pela abertura ao diálogo com as outras culturas. Só uma Igreja missionária inserida e inculturada fará emergir Igrejas particulares autóctones, com rosto e coração amazônicos, enraizadas nas culturas e tradições próprias dos povos, unidas na mesma fé em Cristo e diferentes em seu modo de vivê-la, expressá-la e celebrá-la.

a. Os valores culturais dos povos amazônicos 

43. Nos povos da Amazônia encontramos ensinamentos para a vida. Os povos originários e aqueles que chegaram mais tarde e focaram sua identidade na convivência, trazem valores culturais nos quais descobrimos as sementes do Verbo. Na floresta, não só a vegetação se entrelaça apoiando uma espécie à outra, mas também os povos se relacionam entre si em uma rede de alianças que beneficiam a todos. A floresta vive de inter-relações e interdependências e isso acontece em todas as áreas da vida. Graças a isso, o frágil equilíbrio da Amazônia foi mantido durante séculos. 

44. O pensamento dos povos indígenas oferece uma visão integradora da realidade, capaz de compreender as múltiplas conexões existentes entre tudo o que foi criado. Isto contrasta com a corrente dominante do pensamento ocidental que tende a fragmentar-se para compreender a realidade, mas não consegue articular novamente o conjunto de relações entre os vários campos do conhecimento. O manejo tradicional do que a natureza lhes oferece tem sido feita da forma que hoje chamamos de manejo sustentável. Também encontramos outros valores nos povos originários como a reciprocidade, a solidariedade, o sentido comunitário, a igualdade, a família, sua organização social e o sentido de serviço. 

b. Igreja presente e aliada dos povos nos seus territórios 

45. A ganância pela terra está na raiz dos conflitos que levam ao etnocídio, bem como ao assassinato e à criminalização dos movimentos sociais e de suas lideranças. A demarcação e proteção da terra é uma obrigação dos Estados nacionais e de seus respectivos governos. No entanto, boa parte dos territórios indígenas está desprotegida e os já demarcados estão sendo invadidos por frentes extrativistas predatórias como mineração e extração florestal, por grandes projetos de infraestrutura, por cultivos ilícitos e por grandes propriedades que promovem a monocultura e a pecuária extensiva. 

46. Desta forma, a Igreja se compromete a ser aliada dos povos amazônicos para denunciar os ataques contra a vida das comunidades indígenas, os projetos que afetam o meio ambiente, a falta de demarcação de seus territórios, bem como o modelo econômico de desenvolvimento predatório e ecocida. A presença da Igreja entre as comunidades indígenas e tradicionais exige a consciência de que a defesa da terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida. 

47. A vida dos povos indígenas, mestiços, ribeirinhos, camponeses, quilombolas e/ou afrodescendentes e comunidades tradicionais está ameaçada pela destruição, pela exploração ambiental e pela violação sistemática de seus direitos territoriais. Os direitos à autodeterminação, à demarcação dos territórios e à consulta prévia, livre e informada devem ser defendidos. Esses povos têm “condições sociais, culturais e econômicas que os distinguem de outros setores da comunidade nacional e que são regidos total ou parcialmente por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial” (Conv. 169 da OIT, art. 1, 1a). Para a Igreja, a defesa da vida, da comunidade, da terra e dos direitos dos povos indígenas é um princípio evangélico, em defesa da dignidade humana: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10b). 

48. A Igreja promove a salvação integral da pessoa humana, valorizando a cultura dos povos indígenas, falando de suas necessidades vitais, acompanhando os movimentos em suas lutas por seus direitos. O nosso serviço pastoral constitui um serviço à vida plena dos povos indígenas, que nos leva a anunciar a Boa Nova do Reino de Deus e a denunciar situações de pecado, estruturas de morte, violência e injustiça, promovendo o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico (cf. DAp 95). 

49. Um capítulo específico destaca os Povos Indígenas em Isolamento Voluntário (PIAV) ou Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial (PIACI). Na Amazônia existem cerca de 130 aldeias ou segmentos de aldeias que não mantêm contatos sistemáticos ou permanentes com a sociedade do entorno. Os abusos e as violações sistemáticos do passado provocaram a sua migração para lugares mais inacessíveis, procurando proteger e preservar a sua autonomia e optando por limitar ou evitar as suas relações com terceiros. Hoje eles continuam tendo suas vidas ameaçadas pela invasão de seus territórios a partir de diferentes frentes e por sua baixa demografia, deixando-os expostos à limpeza étnica e ao desaparecimento. Em seu encontro de janeiro de 2018 com os povos indígenas em Puerto Maldonado, o papa Francisco nos recorda que eles “são os mais vulneráveis entre os vulneráveis (…) Continuem a defender esses irmãos mais vulneráveis. A sua presença nos recorda que não podemos dispor dos bens comuns ao ritmo da ganância do consumo”. (Fr. PM). Uma opção pela defesa da PIAV/PIACI não isenta as Igrejas locais da responsabilidade pastoral por elas. 

50. Essa responsabilidade deve se manifestar em ações específicas de defesa de seus direitos, em ações de incidência para que os Estados assumam a defesa de seus direitos através da garantia legal e inviolável dos territórios que tradicionalmente ocupam, incluindo a adoção de medidas cautelares em regiões onde há apenas sinais de sua presença, não se confirmando oficialmente e estabelecendo mecanismos de cooperação bilateral entre Estados, quando esses grupos ocupam espaços transfronteiriços. O respeito pela sua autodeterminação e pela sua livre escolha sobre o tipo de relações que querem estabelecer com outros grupos deve ser sempre garantido. Isso exigirá que todo o povo de Deus, e especialmente as populações vizinhas aos territórios do PIAV/PIACI, sejam conscientizadas do respeito a esses povos e da importância da inviolabilidade de seus territórios. Como disse São João Paulo II em Cuiabá, em 1991, “A Igreja, queridos irmãos e irmãs indígenas, esteve e estará sempre ao vosso lado para defender a dignidade do ser humano, o seu direito a ter uma vida pacífica, respeitando os valores das suas tradições, costumes e culturas”. 

Caminhos para uma Igreja inculturada 

51. Cristo com a encarnação deixou a sua condição divina e se fez homem numa cultura concreta para se identificar com toda a humanidade. A inculturação é a encarnação do Evangelho nas culturas autóctones (“o que não é assumido não é redimido”, Santo Irineu, cf. Puebla 400) e, ao mesmo tempo, a introdução destas culturas na vida da Igreja. Neste processo os povos são protagonistas e acompanhados por seus agentes e pastores.

a. Vivência da fé expressa na piedade popular e na catequese inculturada 

52. A piedade popular é um meio importante que vincula muitos povos da Amazônia com suas vivências espirituais, suas raízes culturais e sua integração comunitária. São manifestações com as quais o povo expressa a sua fé, através de imagens, símbolos, tradições, ritos e outros sacramentais. As peregrinações, procissões e celebrações patronais devem ser apreciadas, acompanhadas, promovidas e algumas vezes purificadas, porque são momentos privilegiados de evangelização que devem conduzir ao encontro com Cristo. As devoções marianas estão profundamente enraizadas na Amazônia e em toda a América Latina. 

53. É característica a não clericalização das irmandades, confrarias e grupos ligados à piedade popular. Os leigos assumem um papel de liderança difícil de alcançar em outras esferas eclesiais, com a participação de irmãos e irmãs que exercem serviços e dirigem orações, bênçãos, cantos sagrados tradicionais, animam novenas, organizam procissões, promovem as festas patronais etc. É necessário “dar uma catequese apropriada e acompanhar a fé já presente na religiosidade popular. Um caminho concreto poderia ser oferecer um processo de iniciação cristã que nos leve a nos tornarmos cada vez mais semelhantes a Jesus Cristo, provocando a progressiva apropriação de suas atitudes” (DAp 300).

b. O mistério da fé refletido numa teologia inculturada 

54. A teologia índia, a teologia do rosto amazônico e a piedade popular já são riquezas do mundo indígena, de sua cultura e espiritualidade. Quando o missionário e agente pastoral leva a palavra do Evangelho de Jesus, ele se identifica com a cultura e concretiza o encontro do qual nasce o testemunho, o serviço, o anúncio e a aprendizagem das línguas. O mundo indígena com seus mitos, narrativas, ritos, cantos, danças e expressões espirituais enriquece o encontro intercultural. Puebla já reconhece que “as culturas não são terrenos vazios, desprovidos de valores autênticos”. A evangelização da Igreja não é um processo de destruição, mas de consolidação e fortalecimento desses valores; uma contribuição para o crescimento das “sementes do Verbo”. (DP 40, cf. GS 57) presente nas culturas.

Caminhos para uma Igreja intercultural 

a. Respeito às culturas e aos direitos dos povos 

55. Todos nós somos convidados a nos aproximarmos dos povos amazônicos de igual para igual, respeitando sua história, suas culturas, seu estilo de “bem viver” (PF 06.10.19). O colonialismo é a imposição de certos modos de vida de alguns povos sobre outros, seja econômica, cultural ou religiosa. Rejeitamos uma evangelização ao estilo colonial. Anunciar a Boa Nova de Jesus implica reconhecer as sementes do Verbo já presentes nas culturas. A evangelização que hoje propomos para a Amazônia é o anúncio inculturado que gera processos de interculturalidade, que promovem a vida da Igreja com identidade e rostos amazônicos.

b. Promoção do diálogo intercultural no mundo globalizado 

56. Na tarefa evangelizadora da Igreja, que não deve ser confundida com o proselitismo, devemos incluir processos claros de inculturação dos nossos métodos e esquemas missionários. Especificamente, propõe-se que os centros de pesquisa e pastoral da Igreja, em aliança com os povos indígenas, estudem, compilem e sistematizem as tradições das etnias amazônicas para favorecer uma obra educativa que parta de sua identidade e cultura, ajude na promoção e defesa de seus direitos, preserve e dissemine seu valor no cenário cultural latino-americano. 

57. As ações educativas são hoje desafiadas pela necessidade de inculturação. É um desafio buscar metodologias e conteúdos adequados aos povos nos quais queremos exercer o ministério do ensino. Para isso, é importante o conhecimento de suas línguas, suas crenças e aspirações, suas necessidades e esperanças, bem como a construção coletiva de processos educativos que tenham, tanto na forma quanto no conteúdo, a identidade cultural das comunidades amazônicas, insistindo na formação de uma ecologia integral como eixo transversal.

c. Desafios à saúde, educação e comunicação 

58. A Igreja assume como uma importante tarefa a promoção da educação sanitária preventiva e a oferta de cuidados de saúde nos lugares onde a assistência do Estado não chega. É necessário favorecer iniciativas de integração que beneficiem a saúde das populações amazônicas. Também é importante promover a socialização do conhecimento ancestral no campo da medicina tradicional específica de cada cultura. 

59. Dentre as complexidades do território amazônico, destacamos a fragilidade da educação, especialmente entre os povos indígenas. Embora a educação seja um direito humano, a qualidade da educação é deficiente e os abandonos são muito frequentes, especialmente entre as meninas. A educação evangeliza, promove a transformação social, capacitando as pessoas com um senso crítico saudável. “Uma boa educação escolar numa idade precoce coloca sementes que podem produzir efeitos ao longo da vida” (LS 213). É nossa tarefa promover uma educação para a solidariedade que nasce da consciência de uma origem comum e de um futuro partilhado por todos (cf. LS 202). Deve-se exigir dos governos a implementação de uma educação pública, intercultural e bilíngue. 

60. O mundo cada vez mais globalizado e complexo desenvolveu uma rede de informação sem precedentes. Entretanto, tal fluxo instantâneo da informação não leva à melhor comunicação ou conexão entre povos. Na Amazônia, queremos promover uma cultura comunicativa que favoreça o diálogo, a cultura do encontro e o cuidado da “Casa comum”. Motivados por uma ecologia integral, queremos fortalecer os espaços de comunicação já existentes na região, a fim de promover urgentemente uma conversão ecológica integral. Para isso, é necessário colaborar com a formação de agentes de comunicação autóctones, especialmente indígenas. Eles não são somente interlocutores privilegiados para a evangelização e a promoção humana no território, mas também nos ajudam a difundir a cultura do “bem viver” e do cuidado da criação. 

61. Para desenvolver as diversas conexões com toda a Amazônia e melhorar a sua comunicação, a Igreja quer criar uma rede de comunicação eclesial panamazônica, que inclua os vários meios utilizados pelas Igrejas particulares e outros organismos eclesiais. A sua contribuição pode ter ressonância e ajuda na conversão ecológica da Igreja e do planeta. A REPAM pode colaborar na assessoria e apoio aos processos de capacitação, monitoramento e fortalecimento da comunicação na região panamazônica.

 

Novos caminhos para a conversão cultural

62. Nesse sentido, propomos a criação de uma rede de escolas de educação bilíngue para a Amazônia (semelhante a Fé e Alegria) que articule propostas educativas que respondam às necessidades das comunidades, respeitando, valorizando e integrando a identidade cultural e linguística. 

63. Queremos sustentar, apoiar e favorecer as experiências educativas de educação intercultural bilíngue já existentes nas jurisdições eclesiásticas da Amazônia e envolver as universidades católicas no trabalho em rede. 

64. Buscaremos novas formas de educação convencional e não convencional, como a educação a distância, de acordo com as necessidades dos lugares, dos tempos e das pessoas. 

(Atenção: os grifos são nossos)

Ob.: Acompanhe-nos. Na próxima postagem: 

Capítulo 4 – Novos caminhos de conversão ecológica