Documento final do Sínodo para a Amazônia – Capítulo 1 Amazônia: Da escuta à conversão integral

A Amazônia hoje é uma beleza ferida e deformada, um lugar de dor e violência… As escutas pré-sinodais sistematizaram as seguintes ameaças:

  • apropriação e privatização de bens da natureza, como a própria água;
  • concessões florestais legais e a entrada de madeireiras ilegais;
  • caça e pesca predatórias;
  • megaprojetos insustentáveis (hidrelétricas, concessões florestais, exploração massiva de madeira, monoculturas, estradas, hidrovias, ferrovias e projetos de mineração e petróleo);
  • contaminação causada pela indústria extrativista e lixões urbanos;
  • e, sobretudo, mudanças climáticas.

São ameaças reais associadas a graves consequências sociais: doenças derivadas da contaminação, narcotráfico, grupos armados ilegais, alcoolismo, violência contra a mulher, exploração sexual, tráfico humano, venda de órgãos, turismo sexual, perda da cultura originária e da identidade (língua, práticas espirituais e costumes), criminalização e assassinato de lideranças e defensores do território. Por trás de tudo isso estão os interesses econômicos e políticos dos setores dominantes, com a cumplicidade de alguns governantes e algumas autoridades indígenas. As vítimas são os setores mais vulneráveis, crianças, jovens, mulheres e a irmã mãe terra.

Pela importância para a ação evangelizadora de toda a Igreja, o processo do Sínodo para Amazônia, sua preparação, sua dinâmica fraterna e participativa de realização, sua produção, sua sinodalidade…, precisa ser bem conhecido, pois foi uma experiência inovadora e com muitos elementos originais na vida da Igreja. Ele pode inspirar e fecundar de beleza toda a caminhada da Igreja.

O Observatório da Evangelização, já publicou a Introdução e, logo abaixo, o Capítulo 1 – Amazônia: Da escuta à conversão integral. Contiaremos a publicar cada umas das partes que compõem o documento aprovado no final do Sínodo e que foi entregue nas mãos do papa Francisco e que certamente servirá de base para a Exortação Pós- Sinodal que sairá em breve.

Confira:

CAPÍTULO l

AMAZÔNIA: DA ESCUTA À CONVERSÃO INTEGRAL

“Ele mostrou-me um rio de água da vida, que brilhava como cristal, e brotava do trono de Deus e do Cordeiro” (Ap 22,1)

5. “Cristo aponta para a Amazônia” (Paulo VI, atrib.). Ele liberta todos do pecado e outorga a dignidade dos Filhos de Deus. A escuta da Amazônia, no espírito próprio do discípulo e à luz da Palavra de Deus e da Tradição, leva-nos a uma profunda conversão dos nossos planos e estruturas a Cristo e ao seu Evangelho.

A voz e o canto da Amazônia como mensagem de vida 

6. Na Amazônia, a vida está inserida, ligada e integrada ao território, que, como espaço físico vital e nutritivo, é possibilidade, sustento e limite de vida. A Amazônia, também chamada Panamazônia, é um extenso território com uma população estimada em 33.600.000 habitantes, dos quais entre 2 a 2,5 milhões são indígenas. Esta área, composta pela bacia do rio Amazonas e todos os seus afluentes, estende-se por 9 países: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Brasil, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. A região amazônica é essencial para a distribuição das chuvas nas regiões da América do Sul e contribui para os grandes movimentos de ar ao redor do planeta; atualmente é a segunda área mais vulnerável do mundo em relação às mudanças climáticas devido à ação direta do homem.

7. A água e a terra desta região alimentam e sustentam a natureza, a vida e as culturas de inúmeras comunidades indígenas, camponesas, afrodescendentes (quilombolas), caboclos, colonos, ribeirinhos e habitantes dos centros urbanos. A água, fonte de vida, possui um rico significado simbólico. Na região amazônica, o ciclo da água é o eixo de interligação. Interliga ecossistemas, culturas e o desenvolvimento do território.

8. Na região amazônica há uma realidade pluriétnica e multicultural. Os diferentes povos souberam adaptar-se ao território. Dentro de cada cultura, construíram e reconstruíram sua cosmovisão, seus símbolos e significados, e a visão de seu futuro. Nas culturas e povos indígenas, práticas antigas e explicações míticas coexistem com tecnologias e desafios modernos. Os rostos que habitam a Amazônia são muito variados. Além dos povos originários há uma grande miscigenação nascida com o encontro e o desencontro de diferentes povos. 

9. A busca dos povos indígenas amazônicos pela vida em abundância se concretiza no que eles chamam de “bem viver”, e que se realiza plenamente nas Bem-Aventuranças. Trata-se de viver em harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os seres humanos e com o ser supremo, pois existe uma intercomunicação entre todo o cosmos, onde não há excluidores nem excluídos, e podemos criar um projeto de vida plena para todos. Tal compreensão da vida é caracterizada pela interligação e harmonia das relações entre água, território e natureza, vida comunitária e cultura, Deus e as várias forças espirituais. Para eles, “bem viver” significa compreender a centralidade do caráter relacional transcendente dos seres humanos e da criação, e implica um “bem fazer”. Este modo integral se expressa em seu próprio modo de organizar-se que parte da família e da comunidade, e que abraça o uso responsável de todos os bens da criação. Os povos indígenas aspiram alcançar melhores condições de vida, especialmente na saúde e na educação, para desfrutar do desenvolvimento sustentável protagonizado e estabelecido por eles mesmos e que mantenha a harmonia com seus modos de vida tradicionais, dialogando com a sabedoria e a tecnologia de seus antepassados e com as novas adquiridas. 

O clamor da terra e o grito dos pobres 

10. Porém, a Amazônia hoje é uma beleza ferida e deformada, um lugar de dor e violência. Os ataques à natureza têm consequências para a vida dos povos. Essa crise socioambiental única se refletiu nas escutas pré-sinodais que sistematizaram as seguintes ameaças contra a vida: apropriação e privatização de bens da natureza, como a própria água; concessões florestais legais e a entrada de madeireiras ilegais; caça e pesca predatórias; megaprojetos insustentáveis (hidrelétricas, concessões florestais, exploração massiva de madeira, monoculturas, estradas, hidrovias, ferrovias e projetos de mineração e petróleo); contaminação causada pela indústria extrativista e lixões urbanos; e, sobretudo, mudanças climáticas. São ameaças reais associadas a graves consequências sociais: doenças derivadas da contaminação, narcotráfico, grupos armados ilegais, alcoolismo, violência contra a mulher, exploração sexual, tráfico humano, venda de órgãos, turismo sexual, perda da cultura originária e da identidade (língua, práticas espirituais e costumes), criminalização e assassinato de lideranças e defensores do território. Por trás de tudo isso estão os interesses econômicos e políticos dos setores dominantes, com a cumplicidade de alguns governantes e algumas autoridades indígenas. As vítimas são os setores mais vulneráveis, crianças, jovens, mulheres e a irmã mãe terra.

11. A comunidade científica, por sua vez, alerta para os riscos do desmatamento, que até o momento representa quase 17% do total da floresta amazônica, e ameaça a sobrevivência de todo o ecossistema, colocando em perigo a biodiversidade e mudando o ciclo vital da água para a sobrevivência da floresta tropical. Além disso, a Amazônia também desempenha um papel fundamental como amortecedor das mudanças climáticas e fornece sistemas de suporte de vida fundamentais e de valor inestimável relacionados ao ar, à água, aos solos, às florestas e à biomassa. Ao mesmo tempo, especialistas recordam que, utilizando a ciência e tecnologias avançadas para uma bio economia inovadora de florestas em pé e rios correntes, é possível ajudar a salvar a floresta tropical, proteger os ecossistemas da Amazônia e os povos indígenas e tradicionais e, ao mesmo tempo, proporcionar atividades econômicas sustentáveis.

12. Um aspecto a abordar é a migração. Na Amazônia, há três processos migratórios simultâneos. Em primeiro lugar, os casos em que a mobilidade dos grupos indígenas em territórios de circulação tradicional, separados por fronteiras nacionais e internacionais. Em segundo lugar, o deslocamento forçado de povos indígenas, camponeses e ribeirinhos expulsos de seus territórios, e cujo destino final tende a ser as áreas mais pobres e menos urbanizadas das cidades. Em terceiro lugar, a migração inter-regional forçada e a situação dos refugiados que, obrigados a deixar seus países (entre outros, Venezuela, Haiti, Cuba) devem atravessar a Amazônia como um corredor migratório.

13. O deslocamento de grupos indígenas expulsos de seus territórios ou atraídos pelo falso brilho da cultura urbana representa uma especificidade única dos movimentos migratórios na Amazônia. Os casos em que a mobilidade destes grupos se realiza em territórios de circulação indígena tradicional, separados por fronteiras nacionais e internacionais, exigem atenção pastoral transfronteiriça capaz de compreender o direito à livre circulação destes povos. A mobilidade humana na Amazônia revela o rosto de Jesus Cristo empobrecido e faminto (cf. Mt 25,35), expulso e desabrigado (cf. Lc 3,1-3), e também na feminização da migração que torna milhares de mulheres vulneráveis ao tráfico humano, uma das piores formas de violência contra as mulheres e uma das mais perversas violações dos direitos humanos. O tráfico de pessoas ligado às migrações requer um trabalho pastoral permanente em rede.

14. A vida das comunidades amazônicas ainda não afetadas pela influência da civilização ocidental se reflete na crença e nos ritos sobre a ação dos espíritos da divindade, chamados de inúmeras formas, com e no território, com e em relação à natureza (LS 16, 91, 117, 138, 240). Reconheçamos que durante milhares de anos cuidaram da sua terra, das suas águas e das suas florestas, e conseguiram preservá-las até hoje para que a humanidade possa beneficiar do usufruto dos dons gratuitos da criação de Deus. Os novos caminhos da evangelização devem ser construídos em diálogo com estes conhecimentos fundamentais que se manifestam como sementes da Palavra.

A Igreja na Região Amazônica

15. A Igreja, no seu processo de escuta do clamor do território e do grito dos povos, deve fazer memória dos seus passos. A evangelização na América Latina foi um dom da Providência que chama todos à salvação em Cristo. Apesar da colonização militar, política e cultural, e além da ganância e ambição dos colonizadores, houve muitos missionários que deram suas vidas para transmitir o Evangelho. O sentido da missão não só inspirou a formação de comunidades cristãs, mas também uma legislação como as Leis das índias, que protegiam a dignidade dos indígenas contra os abusos de seus povos e territórios. Tais abusos causaram feridas nas comunidades e obscureceram a mensagem da Boa Nova. Frequentemente o anúncio de Cristo se realizou em conivência com os poderes que exploravam recursos e oprimiam as populações. No momento atual, a Igreja tem a oportunidade histórica de se diferenciar das novas potências colonizadoras, escutando os povos amazônicos para exercer com transparência sua atividade profética. Além disso, a crise socioambiental abre novas oportunidades para apresentar Cristo em todo o seu potencial libertador e humanizador.

16. Uma das páginas mais gloriosas da Amazônia foi escrita pelos mártires. A participação dos seguidores de Jesus em sua paixão, morte e ressurreição gloriosa acompanhou a vida da Igreja até hoje, especialmente nos momentos e lugares em que ela, por causa do Evangelho de Jesus, vive em meio a uma contradição acentuada, como acontece hoje com aqueles que lutam corajosamente por uma ecologia integral na Amazônia. Este Sínodo reconhece com admiração aqueles que lutam, com grande risco de vida, para defender a existência deste território.

Chamado à conversão integral 

17. A escuta do grito da terra e do grito dos pobres e dos povos da Amazônia com os quais caminhamos nos chama a uma verdadeira conversão integral, com uma vida simples e sóbria, toda alimentada por uma espiritualidade mística no estilo de São Francisco de Assis, exemplo de conversão integral vivida com alegria e louvor cristão (cf. LS 20-12). Uma leitura orante da Palavra de Deus nos ajudará a aprofundar e descobrir os gemidos do Espírito e nos encorajará em nosso compromisso de cuidar da “Casa comum”.

18. Como Igreja de discípulos missionários, suplicamos a graça da conversão que “implica deixar brotar todas as consequências do encontro com Jesus Cristo nas relações com o mundo que nos rodeia” (LS 21); uma conversão pessoal e comunitária que nos compromete a nos relacionar harmoniosamente com a obra criadora de Deus, que é a “Casa comum”; uma conversão que promova a criação de estruturas em harmonia com o cuidado da criação; uma conversão pastoral baseada na sinodalidade, que reconheça a interação de tudo o que foi criado. Conversão que nos leve a ser uma Igreja em saída que entre no coração de todos os povos amazônicos.

19. Assim, a única conversão ao Evangelho vivo, que é Jesus Cristo, poderá se desenvolver em dimensões interligadas para motivar a saída para as periferias existenciais, sociais e geográficas da Amazônia. Estas dimensões são: a pastoral, a cultural, a ecológica e a sinodal, que serão desenvolvidas nos próximos quatro capítulos.

(Atenção: os grifos são nossos)

Ob.: Acompanhe-nos. Na próxima postagem: 

Capítulo 2 – Novos Caminhos de conversão pastoral