O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.
Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.
(Obs.: Esta é a QUARTA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)
7. A família
A família, tal como os censores do Documento de Aparecida confirmam, é um dos temas controversos e sensíveis na Igreja, sobretudo, em relação aos “casais em segunda união” e às uniões homo-afetivas, sem falar nos contraceptivos e no aborto.
Aparecida: acolher os casais em segunda-união
Independente de entrar em juízo de valor e na defesa dos princípios cristãos, o Documento de Aparecida recomenda, antes de tudo, uma atitude de acolhida e um acompanhamento com cuidado, prudência e amor compreensivo. O “texto original” falava em “matrimônios que vivem em situação irregular”; os censores substituíram “matrimônio” por “casais” (DAp 437) e acrescentaram: “tendo presente que os divorciados que tornaram a se casar não lhes é permitido comungar” (DAp 248).
No início do Documento, ao introduzir o capítulo dedicado a abordar “o olhar dos discípulos missionários sobre a realidade”, enumera-se entre os pressupostos que enfraquecem a vida familiar, a “ideologia de gênero”, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em conta as diferenças dadas pela natureza humana. Frisa-se que isso fere a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família (DAp 40).
Papa Francisco: quem sou eu para julgar
Questões como o acesso dos casais em segunda-união à Eucaristia ou a acolhida dos homossexuais, que são tabus para os censores, para o papa Francisco, como atesta seu empenho na preparação e realização do Sínodo sobre a família, precisam ser estudadas e debatidas na Igreja. Diante da crise da família, setores mais conservadores da Igreja, em lugar em desenvolver uma maior capacidade de acolhida àqueles que não conseguem viver conforme os ideais da fé cristã, tem se destacado em frisar o imperativo do cumprimento dos princípios. Os censores do Documento de Aparecida tiveram a preocupação de deixar isso registrado no “texto oficial”. É uma atitude na contramão de uma “Igreja samaritana”, expressão de Paulo VI para caracterizar a nova eclesiologia do Vaticano II, categoria muito presente em Aparecida, à qual o papa Francisco contrapõe uma “Igreja alfândega” (EG 47).
A postura do novo Papa começa pelo nome, emprestado de Francisco de Assis. Na realidade, Francisco é mais do que um nome. É um programa de vida, referência evangélica para todo o Povo de Deus. Entre outros, de Francisco de Assis, Francisco de Roma assume explicitamente, já demonstrado com gestos emocionantes, a “revolução da ternura”. Frisa ele: “precisamos todos aprender a abraçar, como fez São Francisco”. Em entrevista à Revista La Civiltà Cattolica, advoga por uma “Igreja samaritana”: “vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 105)1. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o nível de açúcar altos. Primeiro, deve-se curar as suas feridas. Depois podemos nos ocupar do restante. Curar as feridas, curar as feridas… E é necessário começar de baixo” (cf. EG 67).
No pronunciamento aos Bispos do CELAM, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude no Brasil, na perspectiva de João XXIII, o papa Francisco fala da necessidade de uma Igreja-mãe, condição para uma Igreja-mestra, que só se legitima quando respaldada pelo testemunho. A vocação e missão da Igreja começam, segundo o Papa, “pelo exercício da maternidade”, “que se dá pelo exercício da misericórdia”. Só a misericórdia
gera, amamenta, faz crescer, corrige, alimenta, conduz pela mão… Por isso, faz falta uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, temos hoje poucas possibilidades de nos inserir em um mundo de ‘feridos’, que têm necessidade de compreensão, de perdão, de amor (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 105)2.
Papa Francisco, no pronunciamento aos Bispos do CELAM, em 2013, durante a Jornada Mundial da Juventude.
Isso implica a Igreja descentrar-se de si mesma, o que não significa, simplesmente, sair para fora. Em Evangelii gaudium, o papa Francisco afirma que sair de si mesma, antes de tudo, significa
uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção dos outros para chegar às periferias humanas não significa correr para o mundo, sem rumo e sem sentido. Muitas vezes, implica antes deter os passos, deixar de lado a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar as urgências para acompanhar quem ficou à beira da estrada. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que fica com as portas abertas para que, quando regresse, possa entrar sem dificuldade.
Papa Francisco, Evangelii gaudium, n. 46
8. A mulher na Igreja
Uma oitava questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação à mulher na Igreja. A mulher na sociedade, sua dignidade e seus direitos, é uma questão pacífica. Entretanto, seu papel na Igreja, é uma questão controversa, especialmente para os setores mais conservadores da Igreja.
Aparecida: a mulher é discriminada na Igreja
No seio da sociedade, a Igreja advoga pela igual dignidade da mulher em relação ao homem. O próprio papa Bento XV reafirmou isso no Discurso Inaugural de Aparecida: “em algumas famílias da América Latina, persiste ainda, infelizmente, uma mentalidade machista, ignorando a novidade do cristianismo que reconhece e proclama a igual dignidade e responsabilidade da mulher com relação ao homem” (DAp DI). Entretanto, não é o mesmo o discurso quando se trata da mulher no seio da Igreja, tanto que há uma séria defasagem entre a participação da mulher na sociedade em relação à Igreja.
O “texto original” do Documento de Aparecida, de maneira corajosa, reconhecia esta defasagem, mas foi suprimida pelos censores: a mulher, frisava o texto, é “descriminada na Igreja e com frequência ausente nos organismos pastorais” (DAp 99b). E acrescentaram que as mulheres, na Igreja, terão acesso aos ministérios, mas só “àqueles que a Igreja confia aos leigos”.
O Papa Francisco e as mulheres
Ao contrário dos censores do Documento de Aparecida, para o papa Francisco, a mulher é discriminada na Igreja e precisa ter acesso aos ministérios. Falando aos Bispos do CELAM no Rio de Janeiro, adverte: “não reduzamos o empenho das mulheres na Igreja; antes, pelo contrário, promovamos o seu papel ativo na comunidade eclesial. Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão global e real, ela corre o risco da esterilidade” (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 105)3. Na Evangelii gaudium, quando o papa Francisco fala da dignidade e dos ministérios não-ordenados, fala sem constrangimento de “homens e mulheres” (EG 52, 86, 104, 171, 252, 271, 283): “Vejo, com muito prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais juntamente com os presbíteros, contribuem para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica” (EG 103).
Um dos fortes argumentos dos setores mais conservadores para cercear a participação da mulher nos ministérios é a tradição, a ausência de ministérios para elas no itinerário da Igreja. Em contrapartida, o Papa fala que o papel herdado pela tradição pode ser aprofundado e deve ser ampliado, “para uma presença feminina mais incisiva na Igreja” (EG 103). O Vaticano II lembrou que a tradição é viva, progride, está aberta, porquanto “é a história do Espírito Santo, na história do Povo de Deus” (Bruno Forte). Para a Evangelii gaudium, trata-se de uma questão séria, que não se pode dar por resolvida sem um tratamento sério e profundo: “As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que os homens e mulheres tem a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente” (EG 104). É uma tarefa que envolve a todos, especialmente, o magistério e os teólogos: “Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja” (EG 104).
Tema ainda mais espinhoso é o da ordenação de mulheres. Já, desde sua primeira viagem ao exterior, precisamente ao Rio de Janeiro por ocasião da Jornada Mundial da Juventude em 2013, o papa Francisco se mostrou partidário de que as mulheres tenham um papel de maior relevância na Igreja católica —“não nos podemos limitar às mulheres coroinhas, à presidenta da Caritas, à catequizadora; é preciso fazer uma profunda teologia da mulher. Quanto à ordenação das mulheres, a Igreja falou e disse não. Assim disse João Paulo II, mas com uma formulação definitiva. Essa porta está fechada. Mas, sobre isso, quero dizer-lhes algo: a Virgem Maria era mais importante que os apóstolos, do que os bispos, do que os diáconos e os sacerdotes. A mulher na Igreja é mais importante que os bispos e os padres. Como? Isto é o que devemos tratar de explicar melhor. Creio que falta uma explicação teológica sobre isto”. Mas, foi recentemente, no dia 12 de maio, durante o encontro com União Internacional de Superioras Gerais (UISG) de institutos religiosos na Sala Paulo VI, que o papa Francisco, interpelado sobre a possibilidade do acesso das mulheres ao Diaconato, decidiu constituir uma comissão de estudo a respeito. Algo totalmente impensável nos últimos pontificados.
9. Ministério ordenado e clericalismo
É com relação ao exercício do ministério ordenado que os censores também deixaram registrada sua dificuldade em assumir a renovação do Concílio Vaticano II. O “texto original” do Documento de Aparecida dizia: “Lamentamos certo clericalismo, algumas tentativas de voltar a uma eclesiologia e espiritualidade anteriores ao Concílio Vaticano II”. No “texto oficial”, suprimiu-se o clericalismo e, em lugar de uma eclesiologia e espiritualidade “anteriores” ao Vaticano II, aparece “contrárias” (DAp 100b). Também foi supresso, neste número, “lamentamos a ausência de senso de autocrítica” e “moralismo que debilitam a centralidade de Jesus Cristo”.
Aparecida: lamentamos a volta do clericalismo
Uma das profundas mudanças do Vaticano II foi a superação do binômio clero-leigos pelo binômio comunidade-ministérios: não existe, segundo a Lumen gentium, duas categorias de cristãos, mas um único gênero — os batizados — no seio de uma Igreja toda ela ministerial. E há uma radical igualdade em dignidade de todos os ministérios. O “texto original” do Documento de Aparecida procurava ressaltar esta passagem, mas os censores matizaram a mudança. Por exemplo, os presbíteros, no Documento original, eram designados, mais “irmãos” do que “padres, pai”, pois estão ao serviço do sacerdócio comum dos fiéis”. Os censores suprimiram isso e acrescentaram que os “presbíteros são qualitativamente diferentes” dos leigos. Deste número, suprimiu-se: “[…] Esta dimensão fraterna deve transparecer no exercício pastoral e superar a tentação do autoritarismo que o isola da comunidade e da colaboração com os demais membros da Igreja”. E acrescentou-se: “Todo Sumo Sacerdote é tomado dentre os homens e colocado para intervir a favor dos homens em tudo aquilo que se refere ao serviço de Deus” (Hb 5,1). Finalmente, substituiu-se: […] o presbítero “não pode cair na tentação de considerar-se um delegado ou representante da comunidade”, por “não pode cair na tentação de considerar-se um ‘mero’ delegado ou ‘só um’ representante da comunidade” (DAp 193).
Ainda com relação ao ministério ordenado, mais especificamente relativo ao diaconato permanente, suprimiu-se, do “texto original”: “A presença numérica dos diáconos permanentes cresceu significativamente em nossas Igrejas, ainda que com desigual desenvolvimento e valoração. A V Conferência anima os Bispos da América Latina e o Caribe impulsar o diaconato permanente nas distintas dioceses e para grupos humanos específicos e pastorais ambientais”. Acrescentou-se: “Não se pode criar nos candidatos ao diaconato expectativas permanentes que superem a natureza própria que corresponde ao grau do diaconato” (DAp 208).
Como se pode constatar, o “texto original” do Documento de Aparecida, coerente com a renovação do Vaticano II, tratava de situar os ministros ordenados dentro do Povo de Deus e de colocá-lo ao serviço dos leigos. Já os censores, ao contrário, mostram-se preocupados em salvaguardar a distância e as categorias das ordens clericais superiores sobre as ordens inferiores, sobretudo, do clero sobre os fiéis leigos.
Papa Francisco: clericalismo não tem nada a ver com cristianismo
Se para os censores do Documento de Aparecida deve-se zelar pela diferença entre clérigos e leigos, para o papa Francisco, em sintonia com o Vaticano II, existe uma radical igualdade em dignidade de todos os ministérios da Igreja. Por isso, nem clericalismo e nem leigo clericalizado. O clericalismo na Igreja é um dos temas recorrentes nos pronunciamentos do Papa Francisco, desde a primeira hora, em coerência com sua posição ainda como bispo em Buenos Aires. Em entrevista a um jornalista italiano, afirma que “o clericalismo não tem nada a ver com cristianismo. Quando tenho na minha frente um clericalista, instintivamente me transformo num anticlerical”. Adverte que “na maioria dos casos, o clericalismo é uma tentação muito atual; trata-se de uma cumplicidade viciosa: o padre clericaliza o leigo e, o leigo, lhe pede o favor de o clericalizar, porque, no fundo, lhe é mais cômodo”. Para o Papa, “o fenômeno se explica, em grande parte, pela falta de maturidade e de liberdade cristã em parte do laicato” (IRMÃS PAULINAS, São Paulo, p. 141-142)4. Para o Papa, “a proposta dos grupos bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos Conselhos pastorais está na linha da superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical” (ibid. p. 142).
Em sua visita ao Brasil, falando aos Bispos do CELAM, o papa Francisco pergunta:
nós, Pastores, Bispos e Presbíteros, temos consciência e convicção da missão dos fiéis leigos e lhes damos a liberdade para irem discernindo, de acordo com o seu caminho de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamo-los e acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevida submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca do bem da Igreja e pela sua missão no mundo?”.
Papa Francisco, em 2013, no Encontro com os Bispos do CELAM
Como real espaço do exercício da corresponsabilidade de todos os batizados na Igreja, o Papa recorda aos Bispos a importância dos conselhos: “os Conselhos Paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastoral? O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos muito atrasados nisso” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 136)5.
Relacionado ao clericalismo está o estilo de exercício do ministério episcopal na Igreja, em sua grande maioria na Igreja hoje, distante do estilo de episcopado do “pacto das catacumbas”, selado por um grupo de Bispos no encerramento do Concílio Vaticano II. O clericalismo dos presbíteros parece agravado no modelo de bispo que predominou nas últimas décadas, seja no distanciamento do povo por um estilo de vida sem despojamento, seja de autoritarismo em relação ao seu presbitério. Ao ordenar novos Bispos em Roma, o papa Francisco lhes faz três recomendações. Primeiro,
que sejam pastores com cheiro de ovelhas, presentes no meio de sua gente como Jesus, o Bom Pastor. A presença de vocês não é secundária, é indispensável. As próprias pessoas pedem isso, desejam ver o seu bispo caminhar com elas, para estarem próximas dele. Não se fechem! Vão para o meio de seus fiéis, inclusive nas periferias de suas dioceses e em todas as ‘periferias existenciais’ onde há sofrimento, solidão, degradação humana. Presença pastoral significa caminhar com o povo de Deus: na frente, assinalando o caminho; no meio, para fortalecer a unidade; atrás, para que ninguém se desgarre, mas, sobretudo, para acompanhar o olfato que o povo de Deus possui para encontrar novos caminhos (BRIGHENTI, 2014, p. 25).
Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma
Segundo,
os Bispos devem ser pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão, pacientes e misericordiosos, capazes de escutar, compreender, ajudar e orientar. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham psicologia de príncipe (BRIGHENTI, 2014, p. 25).
Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma
Terceiro,
o Bispo precisa ficar com o rebanho. Refiro-me à estabilidade, que tem dois aspectos específicos: “permanecer” na Diocese, e permanecer “nesta” Diocese, sem buscar transferências ou promoções. Os Bispos precisam ser homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja, sem viver na expectativa de outra, melhor ou mais rica. Tenham o cuidado de não cair no espírito do carreirismo, que é um câncer na Igreja. Como pastores, não é possível realmente conhecer o próprio rebanho, caminhar na frente, no meio e atrás dele, cuidá-lo com o ensinamento, a administração dos sacramentos e o testemunho de vida, caso não permaneçamos na Diocese. Permaneçam junto ao rebanho; evitai o escândalo de ser bispo de aeroporto (BRIGHENTI, 2014, p. 25).
Papa Francisco, no Encontro com os novos Bispos em Roma
Finalmente, em contraposição aos censores do Documento de Aparecida, o papa Francisco resgata uma recomendação na formação dos futuros presbíteros. Falando da necessidade de “um projeto formativo do Seminário que ofereça aos seminaristas um verdadeiro processo integral: humano, espiritual, intelectual e pastoral, centrado em Jesus Cristo Bom Pastor, o “texto original” propunha o que os censores suprimiram: “Para isso, seria uma ajuda que os seminaristas se agrupassem em pequenas comunidades de oração e de vida, mas sempre mantendo a unidade formativa do Seminário e seu projeto” (DAp 319). Curiosamente, o papa Francisco, falando aos Superiores Gerais de Institutos Religiosos afirma: “se o seminário for muito grande, precisa-se separá-lo em comunidades menores com formadores que estejam capacitados a acompanhar, verdadeiramente, aqueles de sua responsabilidade. O diálogo deve ser sério, sem medo, sincero. É importante lembrar que a linguagem dos jovens em formação, hoje, é diferente daquela do passado: estamos vivendo uma mudança epocal. A formação é uma obra de arte, não uma ação policialesca. Devemos formar o coração dos jovens. Do contrário, formaremos pequenos monstros. E então estes pequenos monstros formarão o Povo de Deus. Isso me dá arrepios”.
10. A vida consagrada
Uma décima questão sensível, colocada em relevo pelos censores do Documento de Aparecida, é com relação à vida consagrada na Igreja e na sociedade. Na América Latina, um dos atores mais ativos e propositivos na recepção da renovação do Vaticano II, sem dúvida, foi a vida consagrada, com belas iniciativas de inserção no meio dos pobres.
O profetismo da vida religiosa inserida
A concepção conciliar da vida consagrada como sequela Christi levou amplos segmentos dos religiosos e religiosas a se inserirem no meio dos pobres, em perspectiva libertadora. Grande parte da produção da teologia da libertação foi gestada por religiosos, vivendo em estreita ligação com lugares sociais de exclusão. Evidente que também foram estes segmentos que sofreram os maiores embates com os setores mais conservadores da Igreja, reticentes à renovação do Vaticano II. É neste contexto que se deu, no final da década de 1980 a intervenção na CLAR pela Congregação dos Religiosos e a proibição de iniciativas da vida consagrada como o Projeto “Palavra Vida”. Em muitos pronunciamentos de setores antagônicos à perspectiva libertadora, a vida consagrada era taxada de “magistério paralelo”, exigindo “comunhão” dos religiosos com seus pastores e exercício de sua missão, “sob” as orientações do bispo local.
Esta postura desqualificadora da vida religiosa inserida nos meios populares, os censores também deixaram registada no “texto oficial” do Documento de Aparecida. O “texto original” dizia que os religiosos realizem sua missão, “[…] em mútua relação com os pastores”. Os censores substituíram “mútua relação” por “autêntica comunhão” e acrescentaram: “sob sua orientação” (DAp 223). Mostram também seu distanciamento com o testemunho das comunidades religiosas inseridas no meio dos pobres, acrescentando que, nesta inserção, “comunidades inteiras se secularizaram”.
O papa Francisco: respondam ao clamor dos pobres
Se para os censores, os institutos de vida consagrada precisam estar submissos aos bispos e distantes do mundo secular, para o papa Francisco, eles precisam estar inseridos entre os mais pobres e serem reconhecidos pelos bispos em sua autonomia. Em sua Carta Apostólica às pessoas consagradas: para a proclamação do ano da Vida Consagrada (publicada em 2014), o papa Francisco reafirma o que foi supresso do “texto original” do Documento de Aparecida, relativo à vida consagrada inserida nos meios dos pobres e a relação com os Bispos. Com relação ao lugar da vida consagrada, o Papa reafirma o que lhe é recorrente em seus pronunciamentos: “Espero ainda de vós o mesmo que peço a todos os membros da Igreja: sair de si mesmo para ir às periferias existenciais”. E continua:
A humanidade inteira aguarda: pessoas que perderam toda a esperança, famílias em dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado qualquer futuro, doentes e idosos abandonados, ricos saciados de bens, mas, com o vazio no coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino… Não vos fecheis em vós mesmos, não vos deixeis asfixiar por pequenas brigas de casa, não fiqueis prisioneiros dos vossos problemas. Estes resolver-se-ão se sairdes para ajudar os outros a resolverem os seus problemas, anunciando-lhes a Boa Nova. Encontrareis a vida dando a vida, a esperança dando esperança, o amor amando.
Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 4
A insistência do papa Francisco sobre a presença dos religiosos nas periferias, também aparece de forma incisiva em sua fala no encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos, dia 29 de novembro de 2013. O diálogo do Papa foi reproduzido por Antonio Spadaro e publicado pela revista La Civiltà Cattolica, na edição de janeiro de 2014: “Estou convencido de uma coisa: as grandes mudanças na história ocorreram quando a realidade não era vista a partir do centro, mas sim da periferia. Trata-se de uma questão hermenêutica: entende-se a realidade apenas se ela for olhada da periferia, e não quando nosso ponto de vista está equidistante de tudo. Para verdadeiramente entendermos a realidade, precisamos nos distanciar da posição central de calmaria e de paz, e nos dirigirmos às áreas periféricas. Estar aí ajuda-nos a ver e a entender melhor; ajuda-nos a analisar a realidade de forma mais correta, evitando o centralismo e abordagens ideológicas”. Para o Papa, é preciso conhecer a realidade via experiência:
Frequentemente faço referência a uma carta do Padre Pedro Arrupe, que foi o Superior Geral da Companhia de Jesus. Trata-se de uma carta enviada aos Centros de Investigación y Acción Social (CIAS). Nela o Padre Arrupe falava da pobreza e dizia que algumas horas semanais de contato com os pobres são necessárias. E isto é muito importante para mim: é necessário conhecer a realidade via experiência, passar certo tempo caminhando pela periferia buscando se familiarizar com ela e com as experiências de vida das pessoas.
Papa Francisco, em 29/11/2013, no Encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos
Trata-se de diretrizes para a vida consagrada, que exigem mudanças na ação e nas estruturas. Em sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, aqui já mencionada: para a proclamação do ano da Vida Consagrada, afirma:
De vós espero gestos concretos de acolhimento dos refugiados, de solidariedade com os pobres, de criatividade na catequese, no anúncio do Evangelho, na iniciação à vida de oração. Consequentemente almejo a racionalização das estruturas, a reutilização das grandes casas em favor de obras mais cônsonas às exigências atuais da evangelização e da caridade, a adaptação das obras às novas necessidades .
Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 4
E conclui:
A inventiva do Espírito gerou modos de vida e obras tão diferentes que não podemos facilmente catalogá-los ou inseri-los em esquemas pré-fabricados. Por isso, não consigo referir cada uma das inúmeras formas carismáticas. Mas, neste Ano, ninguém deveria subtrair-se a um sério controle sobre a sua presença na vida da Igreja e sobre o seu modo de responder às incessantes e novas solicitações que se levantam ao nosso redor, ao clamor dos pobres .
Papa Francisco, em 2014, na sua Carta Apostólica às pessoas consagradas, n. 5
A respeito da relação dos religiosos com a Igreja Local, particularmente os Bispos, o papa Francisco marca também um distanciamento da prática vigente, inclusive dos critérios das diretrizes que foram promulgadas, em 1978, pela Congregação para os Religiosos e pela Congregação para os Bispos, com o documento intitulado Mutuae relationes, que o Papa pede à mesma Congregação para revê-los. No mesmo encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos, dia 29 de novembro de 2013, afirma: “aquele documento foi útil naquele período, mas agora está desatualizado. Os carismas dos vários institutos precisam ser respeitados e fomentados porque são necessários nas dioceses. Conheço por experiência os problemas que podem haver entre um bispo e as comunidades religiosas”. E continuou:
O fato é que conheço os problemas, mas também sei que os bispos nem sempre estão por dentro dos carismas e das obras dos religiosos. Nós, bispos, precisamos entender que as pessoas consagradas não são funcionárias, e sim presentes que enriquecem as dioceses. O envolvimento das comunidades religiosas nas dioceses é importante. O diálogo entre o bispo e os religiosos tem que ser resgatado, de modo que, devido à falta de entendimento de seus carismas, os bispos não vejam os religiosos simplesmente como instrumentos úteis.
Papa Francisco, em 29/11/2013, no Encontro com os Superiores Gerais de Congregações e Institutos Religiosos
Considerações finais
As dez questões selecionadas para ilustrar o posicionamento de determinados segmentos da Igreja em relação ao papa Francisco, concretamente, a intervenção dos censores do “texto original” do Documento de Aparecida, mostram a grata surpresa do resgate pelo magistério pontifício do profetismo da Igreja na América Latina. O que era periférico e aparentemente heterodoxo, repentinamente se faz centro e torna-se provocação para a Igreja inteira. Os “ventos do Sul” que sopravam há cinco décadas e sempre foram recebidos com suspeição, agora, sopram no coração da Igreja como um todo, graças ao “papa que vem do fim do mundo”, porta-voz das jovens Igrejas do Sul, particularmente da América Latina.
As razões mais profundas do cerceamento das proposições da Igreja na América Latina radicam na dificuldade em assimilar a renovação do Vaticano II, da qual a Igreja em nosso Continente fez uma recepção criativa em torno da Conferência de Medellín. De fato, em grande medida, as dez questões abordadas, entre as 40 maiores sinalizadas pelos censores do Documento de Aparecida, se constituem em tarefas pendentes no processo de implementação das reformas do Concílio, estancadas ou até mesmo desqualificadas nas últimas décadas, com a volta de uma Igreja alinhada ao perfil da neo-Cristandade. Tudo fazia crer que a renovação do Vaticano II era uma batalha perdida. Entretanto, a ascensão de um papa “do fim do mundo” significa esperança renovada.
Haverá futuro para as propostas da Igreja na América Latina, em grande medida assumidas pelo papa Francisco? Talvez até mais em outros continentes que no nosso. Se depender de muitos de nossos bispos e, sobretudo, de grande parte da nova geração de presbíteros, muitos deles fazendo as contas de quantos anos restam para este pontificado, dificilmente teremos uma nova primavera na Igreja. Nossa periferia, que agora se tornou centro, quase já não se reconhece naquele rosto de Igreja que ela mesma se plasmou em torno às CEBs, a Teologia da Libertação, a pastoral social, a leitura popular da Bíblia e o testemunho dos mártires das causas sociais. A esperança é que “os ventos do Sul”, que agora sopram no Norte que descobriu o teor e o valor da tradição eclesial libertadora, como o “vento impetuoso” de Pentecostes (cf. At 2,2), volte a “abrasar o coração” da periferia latino-americana, que ainda não assimilou o significado e o alcance de se ter um papa do “fim do mundo”, acolhendo e abençoando aquilo que até então era visto pelo centro como barbárie eclesial.
Notas
- Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
- Alocução no Encontro com o Episcopado Brasileiro, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Arcebispado do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.
- Alocução no Encontro com o Episcopado Brasileiro, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Arcebispado do Rio de Janeiro, dia 27 de junho de 2013.
- Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
- Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho.
Referências
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Fonte:
Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.