O texto original do Documento de Aparecida — que teve à frente da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio — antes de ser publicado como texto oficial, sofreu ao redor de 250 mudanças. Diante da negativa da Presidência da V Conferência pela autoria das mudanças e oficiosamente do próprio papa Bento XVI, que se limitou a “autorizar” a publicação do texto, os autores das censuras no texto original do Documento de Aparecida (DAp), nunca foram revelados. Frente a isso, o curioso é constatar que o Papa Francisco, desde a primeira-hora de seu pontificado, em seus pronunciamentos e documentos, tem resgatado praticamente tudo aquilo que os censores do texto original de Aparecida tinham suprimido. É o “Papa do fim do mundo”, fazendo soprar desde a periferia os “ventos do Sul” no coração da Igreja como um todo. Trata-se da afirmação da tradição eclesial libertadora da Igreja na América Latina, antes sob suspeição e, agora, reconhecida e enriquecendo a Igreja inteira. Dentre as mais de duas centenas de mudanças, há umas 40 maiores e de fundo, das quais este estudo aborda 10 delas, apresentando seu teor no texto original de Aparecida, seguido das censuras presentes no texto oficial e o resgate do que foi suprimido pelos censores em pronunciamentos e documentos do papa Francisco.
Palavras-chave: Documento de Aparecida. Vaticano II. Papa Francisco. Igreja na América Latina. Magistério Pontifício.
(Obs.: Esta é a PRIMEIRA PARTE do texto do teólogo pastoralista Agenor Brighenti publicado na Revista Pistis e Práxis. Teologia e Pastoral. Adaptação para o Observatório da Evangelização é de Edward Guimarães. Os grifos são nossos.)
Introdução
Terminados os trabalhos da V Conferência Geral dos Bispos da América Latina e Caribe em Aparecida no ano de 2007, seus participantes e assessores tinham em mãos o “texto original” do Documento de Aparecida, que teve na presidência da Comissão de Redação o então cardeal Bergoglio, hoje papa Francisco. Semanas depois, mais precisamente no dia 29 de junho, quando o papa Bento XVI “autorizou” (sic) a publicação do Documento Conclusivo, houve a desagradável surpresa de constatar que o “texto oficial” não coincidia com o “texto original”. Entre o término da Assembleia e a data da “autorização” de publicação do Documento, haviam sido feitas ao redor de 250 mudanças no “texto original”, muitas delas de menor importância, mudanças de forma ou de redação, mas outras tantas maiores, de conteúdo, pelo menos umas 40, importantes, de fundo.
O fato provocou a mobilização de setores significativos da Igreja, na busca de uma explicação sobre as mudanças efetuadas no “texto original”, tanto junto à Presidência da Assembleia como à Presidência do Conselho Episcopal Latino-americana (CELAM). A resposta, em um primeiro momento, foi de que o “texto original” e o “texto oficial” eram exatamente os mesmos. Entretanto, quando se demonstrou por meio de um minucioso trabalho analítico em quadros sinóticos1, as supressões, correções e os acréscimos ao “texto original”, a primeira explicação ficou desqualificada. Afirmava-se que, terminada a Assembleia, tudo o que a Presidência da Assembleia havia feito, foi levar o texto a Roma, para a “aprovação” do Papa. O desconcerto foi ainda maior, quando um membro da própria Presidência contou que o Papa, ao receber o texto, teria dito que por se tratar de um documento dos Bispos da Igreja na América Latina e Caribe, não caberia a ele “aprovar”, mas simplesmente “autorizar” sua publicação, exatamente como está expresso na carta que abre o Documento2.
Então, afinal, quem foram os autores das mudanças no “texto original” do Documento de Aparecida, entregue pela Comissão de Redação, presidida pelo então cardeal Bergoglio, à Presidência da Assembleia para levá-lo ao Papa? Nunca houve uma explicação oficial. Entretanto, conhecendo-se o teor do debate na Assembleia e as propostas das emendas apresentadas e não aprovadas e que agora apareciam no “texto oficial”, praticamente os autores das mudanças efetuadas deixaram nelas sua própria assinatura. Por outro lado, ninguém poderia imaginar, muito menos os censores que, poucos anos depois, o então presidente da Comissão de Redação do “texto original” do Documento viria a ser Papa. E mais que isso, que praticamente todas aquelas mudanças ou supressões que os censores haviam feito no “texto original”, o então cardeal Bergoglio — agora papa Francisco — traria novamente à tona e as proporia à Igreja como um todo, tanto através de seus reiterados pronunciamentos, como de seus documentos.
Neste estudo, no intuito de explicitar os “ventos do Sul na nova conjuntura eclesial” com a ascensão ao pontificado do cardeal Bergoglio, selecionamos dez das maiores mudanças efetuadas pelos censores no “texto original” do Documento de Aparecida. Sobre cada uma delas, apresentaremos sua redação no “texto original” em comparação com o “texto oficial”, seguida do resgate que o papa Francisco está fazendo daquilo que os censores haviam pontuado ou suprimido.
Quando se vê, na atualidade, o empenho do papa Francisco na reforma da Cúria romana e as dificuldades e até hostilidades que está encontrando em levar a cabo sua arrojada proposta evangelizadora, se entende melhor de onde vieram as mudanças no “texto original” de Aparecida e as razões que moveram seus censores.
Felizmente se, por um lado, tal ingerência minimizou o profetismo da Conferência de Aparecida, por outro, mostra o papa Francisco fazendo-se porta-voz da rica trajetória da Igreja na América Latina à Igreja inteira, ainda que isso incomode ou pareça inoportuno para determinados segmentos da Igreja, alguns deles muito perto do Papa ou até em sua casa, como provavelmente alguns dos censores do Documento de Aparecida.
1. A renovação do Vaticano II
Uma das questões sensíveis colocadas em relevo pelos censores do Documento de Aparecida é a renovação do Concílio Vaticano II, em grande medida, um processo pendente, sobretudo com a “involução eclesial” das últimas décadas. A batalha em torno da hermenêutica dos documentos do Concílio é a expressão de um mal-estar criado por setores mais conservadores da Igreja, arraigados a uma postura apologética frente ao mundo moderno, nostálgicos de um passado sem retorno. Com posturas ainda mais fechadas, segmentos tradicionalistas têm fundamentado sua eclesiologia numa cristologia docetista3, divinizando a Igreja, quando o Vaticano II resgatou também seu caráter histórico e humano, estabelecendo uma distinção ou permanente tensão entre carisma e instituição. Como diz Mircea Eliade (1980), a religião é uma instituição hierofânica, na medida em que seu objetivo é transparecer o divino através do humano, sem que jamais o humano pretenda tomar o lugar do divino, sob pena de eclipsá-lo. Além do divino, o humano é constitutivo da Igreja e, portanto, como afirma a Lumen gentium, além de santa, a Igreja é também pecadora. H. de Lubac (cf. 1988, p. 99-102), resgatando os Santos Padres, fala da Igreja como uma casta meretrix. Por isso, o lema de Calvino — ecclesia semper reformanda, que o Vaticano II assume em Unitatis redintegratio (UR 6).
Nesta perspectiva, a Conferência de Santo Domingo irá falar de “conversão pastoral” da Igreja e, Aparecida, além desta, também de “conversão eclesial” ou de reforma das estruturas da Igreja, que segundo os Bispos, muitas delas caducas. Por ocasião do Jubileu do ano 2000, o papa João Paulo II, tal como expressou em Ut unum sint (2005), Tertio millennio adveniente (1994) e Novo millennio ineunte (2001), quis fazer um solene pedido de perdão pelos pecados da Igreja, cometidos no decorrer dos séculos. Entretanto, o Papa encontrou a oposição de seus mais próximos, restringido o pedido de perdão pelos pecados cometidos “por filhos da Igreja”.
A autocrítica de Aparecida: sair da Igreja para encontrar Deus
O “texto original” do Documento de Aparecida, em várias passagens, registrava uma autocrítica da Igreja em relação a vários assuntos relativos à sua trajetória histórica. Com relação ao êxodo de católicos, especialmente para movimentos religiosos autônomos de caráter neopentecostal, o “texto original” reconhecia: “Na verdade, muita gente que passa para outros grupos religiosos não está buscando sair de nossa Igreja, mas está buscando sinceramente a Deus”. Sem dúvida, é uma frase forte, uma profunda autocrítica com relação às causas do crescimento das Igrejas pentecostais. Os censores, entretanto, matizaram a crueza da análise, dando à frase a seguinte redação: “… esperam encontrar respostas a suas inquietações. Procuram, não sem sérios perigos, responder a algumas aspirações que, quem sabe, não têm encontrado, como deveria ser, na Igreja” (DAp 225). Na mesma perspectiva, rompendo com uma postura apologética e proselitista em relação aos pentecostais, foi supresso do “texto original”: “Um passo nesta direção é o encontro com interlocutores pentecostais responsáveis e fraternos que partilham a estima, a oração e o estudo” (DAp 233).
Outro aspecto pelo qual os censores revelam dificuldade em assimilar a renovação do Vaticano II, também em relação à instituição eclesial, é a questão de pecados “da Igreja” ou de “filhos da Igreja”. Dizia o “texto original”: “A Igreja Católica na América Latina e no Caribe, apesar de suas deficiências e ambiguidades…”. Diz o “texto oficial”: “A Igreja Católica na América Latina e Caribe, apesar das deficiências e ambiguidades de alguns de seus membros…” (DAp 98). Mais adiante, aparecia: “Reconhecemos que, muitas vezes, nós os católicos temos nos afastado do Evangelho…”. Agora, aparece: “Reconhecemos que, em ocasiões, alguns católicos têm se afastado do Evangelho…” (DAp 100). O próprio papa Bento XVI, no Discurso Inaugural de Aparecida, expressou um posicionamento que provocou pronta reação, sobretudo nos meios indígenas e afro-americanos. Falando do processo de evangelização na América Latina, disse: “Com efeito, o anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha” (DAp Discurso Inaugural).
A autocrítica papa Francisco: uma Igreja auto-referencial
Ter que sair da Igreja para encontrar a Deus, dialogar com os pentecostais e uma Igreja que se reconhece pecadora e pede perdão pelos seus pecados acometidos em seu itinerário histórico, é inconcebível para os censores do Documento de Aparecida, mas não para o papa Francisco. Tal como fazia menção o “texto original” do Documento de Aparecida, também para o Papa, na Igreja não há apenas pecados pessoais, de alguns de seus membros. Há também pecados estruturais, que requerem permanente conversão da instituição, mudanças em suas estruturas, muitas delas caducas ou ultrapassadas. Desde a primeira-hora de seu pontificado, o Papa tem se referido aos limites de uma Igreja auto-referencial (cf. EG 95), centrada em si mesma, aprisionando o próprio Cristo entre seus muros. Uma Igreja pautada pelo eclesiocentrismo de uma instituição que crê em um único meio de salvação, regida por princípios ideais e integrada por fiéis que se enquadrariam nos inúmeros requisitos pré-estabelecidos pelas leis canônicas. Na realidade, sobram e se toma distância: dos irregulares, em situações que ferem códigos legais; dos que estão nas “periferias do pecado”, considerados perdidos porque impedidos de acesso aos sacramentos; dos que estão “nas periferias da ignorância e da prescindência religiosa”, excluídos como interlocutores dignos de serem levados a sério; dos que estão “nas periferias do pensamento”, desafio aos sistemas teológicos de contornos nítidos e certezas incontestáveis; enfim, dos que estão “nas periferias da injustiça, da dor e de toda miséria”, clamando não pelo julgamento de um juiz, mas pelo regaço de uma mãe (BRIGHENTI, 2014, p. 15). Para o papa Francisco, “a posição do discípulo missionário não é uma posição de centro, mas de periferia” (apud IRMÃS PAULINAS, 2013, p. 143)4. Ainda como Bispo em Buenos Aires, ele criticava “as pastorais distantes”, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais, sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se, dizia ele, a “revolução da ternura”, que provocou a encarnação do Verbo (EG 88).
Na Evangelii gaudium, o papa Francisco, ao comparar a “imagem ideal da Igreja” com seu “rosto real”, advoga por uma renovação profunda por meio de uma “conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo” (EG 26). Certas cristalizações de estruturas eclesiais estorvam o dinamismo da evangelização. Para o Papa, este processo de conversão e transformação deve acontecer em todos os níveis eclesiais, principalmente nas dioceses (EG 31) e na Cúria Romana (EG 32).
Um compromisso pendente em relação à trajetória da Igreja na América Latina, era um pedido de perdão pelos seus pecados, cometidos durante a época colonial. Entretanto, durante a Conferência de Aparecida, por mais que os Bispos insistissem, não se permitiu que este ato de contrição fosse registrado no texto conclusivo. Agradável surpresa é ver o papa Francisco, em sua recente visita à Bolívia, dizer com todas as letras: “Alguns podem dizer que quando o Papa fala de colonialismo, ele se esquece de algumas ações da Igreja. Mas eu digo isso a vocês com lamento: muitos pecados foram cometidos contra os povos latinos em nome de Deus. Eu humildemente peço perdão, não apenas pelas ofensas da Igreja em si, mas também pelos crimes cometidos contra povos nativos durante a chamada conquista da América”5. Ainda na Bolívia, no discurso pronunciado durante um encontro de líderes indígenas e com a presença do primeiro presidente indígena do país, Evo Morales, Francisco destacou que, no passado, líderes latino-americanos da Igreja Católica já reconheceram que “graves pecados foram cometidos contra os povos nativos da América em nome de Deus”. E continuou: “Também quero que nos lembremos dos milhares de padres que, com o poder da cruz, se opuseram fortemente à lógica da espada. Houve pecado, e muitos. Mas nunca pedimos desculpas, então, agora peço perdão”, disse, fugindo do roteiro preparado para o discurso.
Com relação às Igrejas pentecostais, que os censores do “texto original” do Documento de Aparecida tenderam a menosprezar, desclassificando-as como interlocutoras e depositárias de valores que questionam a Igreja Católica, o papa Francisco também fez um gesto desconcertante. Por ocasião de sua visita ao Brasil e da Jornada Mundial da Juventude, caminhando pela comunidade de Varginha (Complexo de Manguinhos, zona norte da capital do Rio de Janeiro), o papa Francisco entrou em uma igreja evangélica da Assembleia de Deus, falou com o pastor e demais pessoas ali presentes, os convidando a rezar juntos um Pai Nosso. Na Itália tem feito visita “oficial” a Igrejas pentecostais.
Notas:
- Trata-se do trabalho esmeradamente elaborado pelo biblista argentino Eduardo de la Serna e amplamente divulgado nos meios eclesiais, mobilizados em torno às mudanças no “texto original” do Documento de Aparecida.
- Neste particular, diz expressamente a carta do papa Bento XVI: “Ao mesmo tempo que expresso meu reconhecimento pelo amor a Cristo e à Igreja, e pelo espírito de comunhão que caracterizou a Conferência Geral, autorizo a publicação do Documento Conclusivo, pedindo ao Senhor que, em comunhão com a Santa Sé e com o devido respeito pela responsabilidade de cada Bispo em sua própria Igreja local, ele seja luz e alento para um rico trabalho pastoral e evangelizador nos anos vindouros”.
- Sobre o docetismo. O termo vem do grego “dokéo”, que significa parecer. Daí o verbo grego “dokein”, que significa “parecer”. O docetismo é o termo que designa uma mentalidade religiosa que deturpa a fé cristão. Para afirmar a divindade de Jesus, os docetistas negava a sua humanidade e, portanto, a seriedade do mistério da encarnação. Ou seja, o Verbo não se fez humano, mas apenas parecia um ser humano; o corpo de Jesus, então, não era, de fato, um corpo humano, mas apenas “parecia” humano aos nossos olhos. Uma “eclesiologia docetista” é aquela que nega a dimensão humana da Igreja. Sendo toda divina, a Igreja é perfeita e, portanto, sem qualquer caráter histórico situado ou com necessidade de conversão.
- Alocução no Encontro com a Comissão de Coordenação do CELAM, por ocasião de sua visita ao Brasil, no Centro de Estudos do Sumaré, Rio de Janeiro, dia 28 de julho de 2013.
- Pronunciamento feito no dia 09 de julho de 2015, em Santa Cruz de La Sierra, recebendo aplausos dos presentes.
Fonte:
Revista Pistis & Praxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 8, n. 3, 673-713, set./dez. 2016.