Alguns símbolos e palavras acabam perdendo seu sentido original e sendo cooptados por movimentos que lhes roubam o brilho, deixando sobre eles um ranço reacionário. As bandeiras e cores nacionais, por exemplo, frequentemente adquirem um sentido supremacista e xenófobo na ascensão dos fascismos (mesmo que com ares tropicais e futebolísticos, como é o caso brasileiro).
Nessa ordem, a palavra “conversão” não passou imune ao moralismo cristão. Soa-nos hoje como um enunciado de julgamento, mais do que uma possibilidade de libertação e de felicidade. O “convertido” é aquele que, ao repudiar seus comportamentos pregressos (em especial aqueles mais diretamente relacionados à dimensão do prazer) agora segue aos rígidos preceitos da cristandade, apresentada sempre em uma face austera, severa e, não poucas vezes, excludente.
Mas a verdade é que converter-se é uma necessidade humana e um movimento quase que espontâneo do amadurecimento ético e afetivo. Para além de qualquer moralismo, o exercício pessoal de autocrítica e reavaliação dos valores e atitudes que nos constituem, é um hábito não somente saudável, mas absolutamente imperativo para a realização pessoal. Um projeto de vida que não esteja aberto à conversão está fadado ao fracasso ou então, à inadequação atroz que os rígidos costumam experimentar diante da realidade mutável da vida.
Um projeto de vida que não esteja aberto à conversão está fadado ao fracasso ou então, à inadequação atroz que os rígidos costumam experimentar diante da realidade mutável da vida.
Frente aos desafios das nossas relações, dos limites do nosso temperamento e daquilo que não podemos mudar em nós e no outro, é preciso converter-se. Diante da crise ecológica, política e ética em que nossa sociedade se afunda, é preciso converter-se. Em oposição ao negacionismo, ao fundamentalismo e à desinformação intencional e perigosa que ameaça a integridade das consciências, é preciso converter-se.
Mas a crítica inicial a um cristianismo de preceitos não pretende fazer deste um texto de simples apologia de uma visão laica da conversão (embora esta seja também possível). Ao contrário, as tradições religiosas, quando bem vividas, podem nos oferecer caminhos valiosos para essa “mudança de rumo”. Afastando-nos de qualquer resquício negativo de uma religiosidade mais orientada por normas do que pela experiência iluminadora da fé, podemos encontrar nos ritos e orações seu sentido primeiro e mais profundo: um espaço frutífero para a transformação interior.
Na tradição judaico-cristã, o profeta Ezequiel coloca na boca de Deus a seguinte promessa: “Eu vos darei um coração novo e porei um espírito novo dentro de vós. Arrancarei do vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne” (Ez. 36, 26) A conversão, aqui, expressa-se como um dom de abertura à novidade e à humanização do coração, muitas vezes petrificado em preconceitos, rancores e concepções perversas de mundo e de ser humano, que nos prendem a uma cultura do descarte e da morte.
A conversão expressa-se como um dom de abertura à novidade e à humanização do coração, muitas vezes petrificado em preconceitos, rancores e concepções perversas de mundo e de ser humano.
Ter um coração de carne nos permite evitar o engessamento inflexível e, ao contrário, abrir-se à maleabilidade da vida em suas nuances e possibilidades diversas. Converter-se, então, deixa de ser uma formatação compulsória a um estilo pré-determinado de ser, para se tornar um exercício de liberdade interior que nos reposiciona diante do mundo, do outro, de nós mesmos e de Deus. O convertido, mais que “um homem novo”, é alguém aberto ao novo: livre, tolerante, compassivo e criativo, como só os grandes homens e mulheres conseguiram ser.
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Matheus Cedric Godinho
É professor de Filosofia e Ensino Religioso e autor e editor de material didático para Educação Básica nas mesmas áreas. Leigo católico, cofundador da Oficina de Nazaré e membro do Conselho Editorial da Revista de Pastoral da ANEC. Atualmente é estudante de Teologia na PUC Minas, onde também trabalha como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização.
Excelente reflexão. Realmente, conversão tem sido uma ideia muito mal compreendida e uma palavra muito mal empregada.
Obrigado, Alfredo. Ficamos felizes que tenha gostado da reflexão. Se possível, compartilhe-a com sua comunidade. Um abraço
Já partilhamos. Abraço.