O papa Francisco, desde que iniciou o seu pontificado, tem insistido em denunciar a existência e a combater frontalmente o clericalismo eclesiástico, pois, segundo ele, é uma espécie de câncer maligno, “é uma perversão na Igreja”. Para um maior alcance do que o sucessor de Pedro quer dizer com esta e tantas outras admoestações semelhantes, basta acompanhar as suas falas, os seus gestos e o projeto de reforma profunda da Igreja que vem animando em seu magistério nos últimos oito anos.
Quem conhece minimamente a teologia patrística e os documentos do Concílio Vaticano II, logo percebe o quanto o magistério do papa Francisco está enraizado no ensinamento dos primeiros padres da Igreja e no último grande Concílio. A Palavra de Deus e, de modo particular, os documentos do Concílio Vaticano II oferecem, na atualidade, importante parâmetro para quem estuda teologia. A teologia é o esforço de quem, movido pela fé, busca compreensão sistemática e crítica do que crê e experimenta, do conteúdo da Palavra de Deus, da Tradição vivida ao longo da história e da experiência que se dá no tempo presente. Ter acesso a uma boa teologia tornou-se um pressuposto importante e mesmo decisivo para quem deseja colocar-se a serviço nos ministérios de epíscopo, presbítero, diácono, religioso ou religiosa, leigo ou leiga na vida da Igreja.
Conhecer, internalizar e assumir a identidade e a autocompreensão da Igreja enquanto Povo de Deus (Cf. LG, cap. II), visão assumida e aprofundada no Concílio Vaticano II, faz a diferença na concretização do ser Igreja no mundo contemporâneo. Interessante que a metáfora utilizada para apresentar a nova autocompreensão da Igreja no Concílio é a de uma “pirâmide invertida”. Isso significa que a base comum nos irmana e faz, pela graça do Batismo, com que todos sejam reconhecidos, de fato, como membros do mesmo corpo místico de Cristo. Pelo Batismo somos todos enraizados em Jesus Cristo e participantes do projeto salvífico e do mistério pascal, como sacerdotes, profetas e reis.
Dentre tantos os ensinamentos ofertados aos fiéis acerca do que é a Igreja no Concílio, o destinado especificamente aos presbíteros como “colaboradores do bispo diocesano” é inovador. Numa passagem emblemática, assim ensina o Concílio:
“O Bispo, porém, considere os sacerdotes, seus colaboradores, como filhos e amigos, à imitação de Cristo que chamou seus discípulos não servos, mas amigos (Cf. Jo. 15,15). Todos os sacerdotes, tanto os diocesanos como os religiosos, em razão da Ordem e do ministério, estão unidos com o Corpo dos Bispos e segundo sua vocação e graça, devem servir ao bem de toda a Igreja. Em virtude da comum ordenação sacra e missão, todos os Presbíteros estão unidos entre si por íntima fraternidade, que espontânea e livremente se manifesta no mútuo auxílio, tanto espiritual como material, tanto pastoral como pessoal, em reuniões e na comunhão de vida, de trabalho e caridade.”
Lumen Gentium, 28
O que caracteriza a relação entre o bispo e os presbíteros e a que acontece entre estes não é a dominação ou a submissão de uns sobre os outros, mas o amor compartilhado, a comunhão no anúncio e testemunho do Evangelho, o serviço assumido para o bem da Igreja e da humanidade, a fraternidade solidária na mesma missão.
Importa, por isso, avaliarmos o modo de se concretizar a relação entre o bispo e os presbíteros e entre os próprios presbíteros. No entanto, importa igualmente avaliarmos a relação que os presbíteros estabelecem com os leigos e leigas. Isso porque bispos, presbíteros e diáconos encontram a sua razão de ser no serviço prestado ao Povo de Deus. Acontece que, muitas vezes, esta relação, tal como se concretiza, pode ser caracterizada como de subserviência e não de cooperação; de infantilismo e não de maturidade corresponsável fundada na igual dignidade batismal – afinal todos somos membros do Povo de Deus e chamados a ser discípulos e discípulas de Jesus. É lamentável, que as relações eclesiais sejam tão marcadas por interesses, vaidades, dominações e jogos de poder.
A estrutura e a hierarquia eclesiásticas são historicamente um bem e um serviço para a constituição da engrenagem eclesial; todavia é, infelizmente, também fonte de muitas perversões humanas: Jogos de interesses, carreirismos, desonestidades, mentiras, falta de transparência, falsidades, brigas pelo poder, pelo dinheiro e, mais recentemente, o ‘lobby gay’, tão disseminado e problemático dentro desta ordem sistêmica. Não precisa ir muito longe. Basta uma breve pesquisa e veremos como os fatos recentes da história da Igreja confirmam estes fatos. Os crimes de pedofilia são os mais recorrentes e hediondos que são noticiados.
O clericalismo favorece todos estes fenômenos humanos e pérfidos. Ele desqualifica o real sentido e o valor do poder dentro da Igreja, que deve ter na prática de Jesus Cristo o seu maior e mais belo exemplo (Cf. Jo 13,12-17). O poder quando não é para o serviço, ofusca a ação do Espírito de Deus no corpo eclesial e desfigura o rosto materno da Igreja. O Clericalismo é uma forma humana, mas demasiadamente desumanizante, de renegar e trair o ministério episcopal, presbiteral, diaconal e laical como serviços e ministérios eclesiais. Dentro da Igreja, infelizmente, há muitos clérigos que se tornam novos ‘Judas Iscariotes’ que fazem com que a Igreja de Jesus Cristo seja envergonhada. Há bispos, presbíteros, diáconos, religiosas/os e leigas/os profundamente clericalistas.
Nesta preparação para bem celebrarmos a Páscoa, peçamos ao Senhor a graça da conversão para todos nós. Sabemos que há bispos, presbíteros e diáconos que vivem mergulhados em situações adversas à natureza da vocação que um dia abraçou e que a Igreja confirmou, como Sacramento de Salvação. Criemos espaços de diálogo e busca de compreensão do sofrimento psíquico de tantos clérigos. Rezemos juntos para que tais situações se transformadas. No entanto, não podemos esquecer que o remédio purgativo do clericalismo na Igreja e, especificamente, na vida e no ministério de bispos, presbíteros, diáconos, religiosas e religiosos, leigas e leigos é o seguimento de Jesus e o anúncio-testemunho do Evangelho. Voltemos a Jesus! Recuperamos o frescor e a alegria do Evangelho do Reino! Importa trilharmos juntos o Caminho da Sinodalidade e da corresponsabilidade na Missão!
Não podemos desanimar. Não somos anjos, mas também não podemos ser discípulos do Promotor da divisão e da mentira. Quem entra por esse caminho, renega o amor de Deus e cancela a luz que é chamada a reluzir como presbítero do Senhor. Que Deus nos conceda a liberdade dos Filhos de Deus, para passar longe e dizer não à tentação do clericalismo.
Assim o seja!
(Os grifos sãos nossos)
Sobre o autor:
Pe. Matias Soares é pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório, em Mirassol, Natal e é colaborador do Observatório da Evangelização PUC Minas.