O Centro Dom Bosco, uma associação neoconservadora de leigos católicos sediada no Rio de Janeiro, tem publicado vídeos em seu canal do YouTube, criminalizando o vereador Renato Freitas (PT) pelo encerramento de uma manifestação antirracista dentro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Curitiba.
O vice-presidente e youtuber do Centro Dom Bosco, Álvaro Mendes, no vídeo “Os petistas que invadiram a Igreja vão politizar a Missa deste sábado?” afirmou que se tratou de um episódio de profanação do templo e de demonstração de intolerância religiosa por parte do parlamentar. Também atacou, como é de costume em seus vídeos, o presidente da CNBB D. Walmor, o reitor da PUC Minas D. Joaquim Mol e o arcebispo de Curitiba D. Peruzzo, pelo que chamou de “timidez extrema na defesa da fé” (CENTRO DOM BOSCO, 2022)[1].
Já no vídeo “Padre Júlio Lancellotti humilha os católicos em discurso anti-igreja!”, Álvaro condenou a saudação do sacerdote aos movimentos de luta contra a discriminação racial, em especial, à Renato Freitas, na missa do 6º domingo do Tempo Comum[2]:
É triste meus amigos, que um sacerdote não veja problema na profanação cometida pelo petista em nome da luta racial ou do conflito de classes. As pessoas não se tornam más porque acenderam socialmente padre. Se nós temos juventude, ou acumulamos conhecimento e dinheiro, como católicos, somos chamados a pôr tudo isso a serviço do próximo visando cumprir as obras de misericórdia corporal e espiritual preceituadas pela Igreja (CENTRO DOM BOSCO, 2022)[3].
A suposta profanação apontada por Álvaro se trata, no entanto, de uma manifestação que ocorreu, em todo o Brasil, no sábado dia 05 de fevereiro, contra os assassinatos, de caráter racista, do jovem congolês Moïse Kabagambe em 24 de janeiro na praia da Barra da Tijuca e de Durval Teófilo Filho em 02 de fevereiro na cidade de São Gonçalo-RJ. Em Curitiba, a manifestação ocorreu em torno das 17:00 horas no Largo da Ordem, no centro antigo da cidade, terminando dentro da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos após o fim da missa.
Na live “Espiritualidade na Ação” o pensador Eduardo Marinho comentou que assassinatos como o de Moïse e de Durval não são incomuns, e que “[…] o que está acontecendo é que está havendo um movimento de inconformação e cada assassinato tem que ser protestado, tem que ter manifestação, tem que gerar inconformação […]” (EDUARDO MOREIRA, 2022)[4]. Destarte, o frei David da Educafro, explicou na mesma live que “[…] o vereador Renato, tentando compreender Jesus na vida do povo negro, fez um ato, fez um gesto, fez um símbolo e isso aí foi compreendido por muitos e aplaudido, e foi muito mal compreendido pelos poderosos e perseguido […]” (EDUARDO MOREIRA, 2022).
No dia 07 de fevereiro, D. José Antônio Peruzzo, arcebispo da Arquidiocese de Curitiba publicou, na página do FaceBook da arquidiocese, uma nota oficial sobre a manifestação antirracista na igreja do Rosário em que reconhece que “a questão racial no Brasil ainda requer muita reflexão e análise honesta, que promovam políticas públicas com vistas a contemplar a igualdade dos direitos de todos” (ARQUIDIOCESE DE CURITIBA, 2022)[5]. Não obstante, repudia o que classificou como uma profanação injuriosa que agrediu a lei e a livre cidadania. O tom condenatório de Dom Peruzzo na nota em questão não satisfez a ortodoxia de Álvaro Mendes, que a chamou de “nota sem vergonha e indigna do seu ofício de pastor das almas” (CENTRO DOM BOSCO, 2021)[6].
O escrito do arcebispo, porém, ajudou a impulsionar, na semana subsequente, ainda que sem a intenção, uma chuva de fake news conservadoras de condenação da participação de Renato Freitas na manifestação contra o racismo, e resultou na protocolização de três pedidos de cassação do mandato do vereador. Além disso, o parlamentar vem sofrendo constantes ameaças de morte por parte de grupos neoconservadores, o que o levou a pedir licença dos trabalhos na Câmara Municipal na última semana.
Renato Freitas é um jovem negro, advogado e mestre em Direito pela UFPR, ativista da luta antirracista e vereador eleito de Curitiba, em 2020, pelo PT. O parlamentar explicou, na live Espiritualidade na Ação, que a manifestação aconteceu na frente da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no centro antigo de Curitiba porque “[…] lá tem o procedimento da lavagem de escada, tem a missa da consciência negra, tem os ritos e sincretismo religioso do pessoal da Umbanda e dos terreiros […]” (EDUARDO MOREIRA, 2022).
Embora Álvaro Mendes não aborde sobre os rituais religiosos apontados por Renato Freitas, podemos intuir que, do ponto de vista da ortodoxia católica defendida pelo Centro Dom Bosco, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos não foi, propriamente, profanada pelo ato antirracista, uma vês que o local já era – em termos depreciativos recorrentemente utilizado por Álvaro em seus vídeos – um palco de abusos litúrgicos, de práticas heterodoxas pagãs e de ideologias revolucionárias. Não obstante, se voltarmos o olhar para a história da referida igreja, contada pelo vereador Renato Freitas na live Espiritualidade na Ação, constataremos que a princípio, o modelo de igreja defendida pelo Centro Dom Bosco, isto é, a chamada Igreja de Sempre, foi uma das grandes promovedoras do racismo e da desumanização de povos negros escravizados nos períodos colonial e imperial brasileiro.
Essa igreja é um símbolo pra nós porque ela é construída em cima de um cemitério de pessoas pretas, durante a escravidão, no centro antigo. E que para poder ter a sua própria igreja, tiveram que construir, porque não podiam entrar em nem uma das outras duas ou três igrejas grandes que tinham no centro de Curitiba. Não podia. Igreja de branco, para branco é! E os pretos construíram essa igreja e o único lugar que foi cedido, foi o cemitério. Então é uma igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de São Benedito, em cima de um cemitério, construída por pessoas pretas, para pessoas pretas, por conta do apartheid social que vigorava na época.” (EDUARDO MOREIRA, 2022).
O contexto sócio-histórico da origem da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos também é destacado por D. José Antônio Peruzzo na sua já citada nota oficial. O arcebispo de Curitiba ressalta que a igreja foi edificada pelo escravos e inaugurada em 1737. Proponho que é sobre esta realidade de opressão racial no interior da Igreja no século XVIII que todos, principalmente os membros do Centro Dom Bosco, deveriam se ater e refletir antes de julgar a participação do vereador Renato Freitas na manifestação contra os assassinatos, de caráter racista, de Moïse Kabagambe e de Durval Teófilo Filho em janeiro e fevereiro de 2022.
A chamada Igreja de Sempre, defendida por Álvaro Mendes, é reivindicada enquanto uma continuidade em relação ao passado. É preciso destacar que no passado, nos períodos colonial e imperial brasileiro, – como apontam os estudos do historiador Vitor Hugo Monteiro Franco, publicados no livro “Escravos da Religião” – a Igreja detinha “um número de escravos muito acima da média do que havia nas grandes propriedades rurais” (BBC NEWS BRASIL, 2022). Reivindicar a Igreja de Sempre, então, é também, tomar como pressuposto da realidade, por exemplo, a hierarquia sócio-racial-econômica, que no passado legitimou a escravidão negra e no presente legitima o racismo e a exploração étnico-racial de classe.
Por fim, tomo emprestadas as palavras proféticas da conhecida oração de Dom Helder Câmara na esperança de que a Igreja e a CNBB embarquem “em cheio na causa dos negros”:
[…] Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu Filho não fique em palavra, não fique em aplauso. Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem. Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão. É Evangelho de Cristo, Mariama. Claro que seremos intolerados. Mariama, Mãe querida, problema de negro acaba se ligando com todos os grandes problemas humanos. Com todos os absurdos contra a humanidade. Com todas as injustiças e opressões […] (FRANCISCANOS, SEM DATA)[7].
[1] In: https://www.youtube.com/watch?v=-gKvXRz4rkQ Acesso em: 26/02/2022.
[2] In: https://www.youtube.com/watch?v=_y6vRQb3fos&t=605s Acesso em: 26/02/2022.
[3] In: https://www.youtube.com/watch?v=-gKvXRz4rkQ&t=327s Acesso em: 26/02/2022.
[4] In: https://www.youtube.com/watch?v=i-zweDXyy1g Acesso em: 26/02/2022.
[5] In: https://www.facebook.com/arquidiocesedecuritiba/posts/4571886386256422 Acesso em: 26/02/2022.
[6] In: https://www.youtube.com/watch?v=kSjUDDaSVRY Acesso em: 26/02/2022.
[7] https://franciscanos.org.br/vidacrista/calendario/invocacao-a-mariama-por-d-helder-camara/#gsc.tab=0
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Glaucon Durães da Silva Santos
É católico leigo da paróquia Bom Jesus e Nossa Senhora Aparecida, Santa Luzia/MG, doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas, professor de Sociologia, membro da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais e colaborador jovem do Observatório da Evangelização da PUC Minas. Desenvolve pesquisa nas áreas da Sociologia da Religião e da Sociologia Política.