Diálogo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com Fri, 31 May 2024 00:14:40 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.4 https://i0.wp.com/observatoriodaevangelizacao.com/wp-content/uploads/2024/04/cropped-logo.png?fit=32%2C32&ssl=1 Diálogo – Observatório de Evangelização https://observatoriodaevangelizacao.com 32 32 232225030 Corpus Christi: outra compreensão necessária a partir dos sinais dos tempos https://observatoriodaevangelizacao.com/corpus-christi-outra-compreensao-necessaria-a-partir-dos-sinais-dos-tempos/ https://observatoriodaevangelizacao.com/corpus-christi-outra-compreensao-necessaria-a-partir-dos-sinais-dos-tempos/#respond Thu, 30 May 2024 13:50:13 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.com/?p=49889 [Leia mais...]]]> A Eucaristia, na experiência cristã católica, é o sacramento do Corpo de Cristo. Jesus de Nazaré, o enviado no Pai, pela luz e força do Espírito Santo, revelou-nos o Amor de Deus por nós e abriu-nos um caminho de salvação, um caminho a ser trilhado: transformados pela força da experiência do amor gratuito de Deus por nós, somos chamados a cultivar o amar, cuidar e servir. Na Eucaristia celebramos este Mistério de Amor que vem até nós e, com claridade solar, nos revela que somos filhos e filhas, amados de Deus, que somos irmãos e irmãs e que o caminho da salvação é amar como Jesus nos amou. Os cristãos batizados, que enraizaram as suas vidas em Jesus, são chamados a uma missão: serem o “Corpo de Cristo” hoje. Continuarem, portanto, a missão de Jesus. Em pequenas comunidades de fé e partilha de vida, os cristãos são chamados a ser fermento, sal e luz de outra sociedade possível e necessária. Sociedade firmada na mesa da irmandade, na prática da justiça divina, da misericórdia e da compaixão pelos sofredores, pela partilha solidária com os pobres, pela defesa da dignidade da vida de quem está excluído.

Jesus, em sua última ceia, depois de lavar os pés de seus discípulos, na véspera de sua paixão-morte-ressurreição, sintetizou, num gesto profundamente simbólico, o sentido maior que deu à sua vida: uma entrega, com fidelidade ao Projeto salvífico de Deus! Jesus fez de sua vida um serviço a Deus, concretamente como serviço ao próximo. A práxis acolhedora-libertadora de Jesus, desde os desfigurados da dignidade humana: escravizados, explorados, empobrecidos, marginalizados, encarcerados, por serem considerados impuros desprezados, doentes, sofredores. Em nome de Deus, pela força da Ruah divina, Jesus, o Filho amado, libertou da cegueira, da surdez, da paralisia, da exclusão do amor social, das garras do mal… Após a sua traição, prisão, condenação, tortura e execução na cruz, Jesus, por sua fidelidade a missão, foi ressuscitado pelo Pai. A Ressurreicão de Jesus confirma, aos olhos da nossa fé, que o Caminho aberto por Jesus, é o nosso caminho de salvação. A vida de Jesus, para a fé cristã, é sim: o nosso caminho de salvação, a verdade do Projeto de Deus e a fonte geradora de vida, de vida nova com a consciência de nossa filiação divina e de compromisso fratersororal. Como nos diz o papa Francisco, “somos todos irmãos e irmãs” (Fratelli Tutti).

 

Um pouco da história da festa de Corpus Christi

Tapete de Corpus Christi 002Tapete para a festa de Corpus Christi

A festa de Corpus Christi, tradicionalmente, teve como objetivo maior o testemunho público da fé e da devoção católica na adoração ao Corpo de Cristo presente na hóstia consagrada. Segundo antiga tradição, a festa de Corpus Christi teve origem em torno do ano de 1243, em Liège, na Bélgica, quando uma freira, Ir. Juliana de Cornion, teve visões nas quais o próprio Jesus Cristo pede que o mistério celebrado na Eucaristia tivesse maior destaque e reconhecimento público. Ela compartilha as suas experiências espirituais com aquele que, mais tarde, viria a se tornar o papa Urbano IV. Este, no ano de 1264, decide instituir esta festa litúrgica para toda a Igreja.

Procissão de Corpus ChristiProcissão de Corpus Christi

O Papa pediu, então, que Tomás de Aquino preparasse textos litúrgicos específicos para esta data. A procissão com a hóstia consagrada, como um cortejo público de ação de graças a Deus, teve início no ano de 1274. No Brasil, como em Portugal, tornou-se popular a tradição de enfeitar as ruas com lindos tapetes com imagens e símbolos religiosos. Na liturgia, a celebração de Corpus Christi inclui missa, procissão e adoração ao Santíssimo Sacramento.

Tapete para a festa de Corpus Christi Confecção dos tapetes com símbolos cristãos para a festa de Corpus Christi

Um contexto cultural de insensibilidade ecumênica e de pouca atenção à necessidade de diálogo inter-religioso favoreceu deturpações e muitos conflitos religiosos. A festa de Corpus Christi, em muitos lugares, tornou-se mais que uma celebração da liturgia cristã católica. Passou a ser encarada ou utilizada, por muitos infelizmente, como momento oportuno para explicitar, publicamente, a supremacia do catolicismo, em relação às outras igrejas cristãs, bem como às outras tradições religiosas.

 

Outra compreensão se faz necessária a partir dos sinais dos tempos

Hoje, nós cristãos somos chamados a agir na Igreja e na sociedade, com a consciência de sermos desafiados a ser o Corpo de Cristo, ou seja, a continuar a missão de Jesus em nosso contexto. Somos interpelados pela vida de Jesus, a testemunhar o amor universal de Deus e o amor fratersororal entre nós. Pelo diálogo fraterno, somos chamados a melhor cuidar da Casa comum e defender, irmanando-se nas lutas dos movimentos populares, a igual dignidade de todos os filhos e filhas amados de Deus. O amor de Deus nos irmana e nos compromete com a unidade da família de Deus: a humanidade.

Para os cristãos, não deveria haver fronteiras culturais ou religiosas para irradiar, cultivar e praticar o amor, pois, pela vida de Jesus, todo ser humano, independente de qualquer critério, é acolhido como filho e filha amado de Deus. Ser cristão, portanto, é um desafio que se faz compromisso sociopolítico, econômico, ecológico e religioso – em todas as dimensões da vida – de testemunhar-anunciar a boa notícia da universalidade, gratuidade e incondicionalidade do Amor de Deus, desde os últimos, Amor que nos transforma em cuidadores da inclusão de todos na grande mesa da irmandade e da igual dignidade dos filhos e filhas amados de Deus.

Grito dos excluídos - 2014Caminhada ecumênica de 7 de setembro – Grito dos excluídos organizado pelas Igrejas cristãs em defesa da dignidade da vida.

Aconteceram muitas mudanças culturais em nosso meio que se tornam autênticos sinais dos tempos, como nos ensinou o papa João XXIII, nos albores do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Dentre outras, merecem destaque:

  • cresce a consciência planetária e que a humanidade compartilha uma mesma “aldeia global”;
  • cresce a percepção de dois gritos: dos pobres e da Terra. Nossos modelos de desenvolvimento e busca do progresso e da felicidade, nem inclui a todos – parcela significativa de irmãos e irmãs ficam de fora, é excluída da mesa -, nem cuida do equilibrio e do futuro da vida na Terra;
  • com as novas tecnologias de transporte e comunicação passamos a reconhecer a beleza enriquecedora do pluralismo cultural e religioso;
  • em muitos países, o Estado se tornou laico e democrático, defensor dos direitos fundamentais, entre estes o da liberdade de crença, de culto e também de convicções areligiosas;
  • em vista da paz entre os povos, nações, grupos, pessoas, cresceu a consciência da importância de desenvolvermos e cultivarmos o espírito ecumênico entre as igrejas cristãs e posturas de diálogo inter-religioso, diante, sobretudo, da conquista da legitimidade cultural da diversidade religiosa.

Tais sinais clamam por outras posturas sociopolíticas e religiosas possíveis e necessárias. A Igreja católica, há 60 anos, no Concílio Ecumênico Vaticano II, reconheceu essas mudanças culturais, legitimou e convocou os cristãos católicos, a  assumirem o movimento ecumênico com as outras igrejas cristãs e posturas dialógicas para com as outras tradições religiosas. Alguns passos já foram dados, mas ainda temos muito que aprender e caminhar.

Mutirão pela moradia para todos!Mutirão ecumênico por moradia para todos!

A festa de Corpus Christi – como todas as festas valorizadas pelo cristianismo católico, tais como Natal, Semana Santa, Páscoa, Pentecostes, festividades de Nossa Senhora e todos os santos e santas da devoção popular – é chamada a deixar-se fecundar e transformar pelos sinais dos tempos. Em toda ação evangelizadora da Igreja, por fidelidade a Jesus Cristo e a tradição apostólica, não deve conter qualquer resquício de espírito apologético agressivo ou mentalidade eclesiocêntrica ou religiocêntrica arrogante e que provoca beligerância religiosa em nome de Deus. Importa dizer não a qualquer compreensão de guerra santa!

Mutirão pelos desabrigadosMutirão pelos desabrigados promovido por iniciativa da Caritas.

A festa de Corpus Christi, balizada pelos valores do Evangelho do Reino, tem como objetivo favorecer aos fiéis oportunidades criativas de encontro com o Jesus Ressuscitado, de crescimento na vida cristã e aprofundamento da identidade cristã católica, mas sem qualquer pretensão de agredir ou diminuir outras igrejas cristãs e/ou tradições religiosas.

O fundamento bíblico deve prevalecer na ação evangelizadora: cada cristão, enquanto seguidor ou seguidora de Jesus e alguém que se alimenta da vida do Mestre do Caminho, do Verbo de Deus ressuscitado e sempre estradeiro conosco, é chamado pelo batismo a concretizar em suas ações, no contexto em que vive, a vontade de Deus. Ele se nutre da memória dos feitos de Jesus para, juntamente com seus irmãos e irmãs de fé, agir e atuar na Igreja e na sociedade, em vista do bem comum, com a consciência de ser membro vivo do Corpo de Cristo hoje.

Para refletirmos: que significa celebrar a festa de Corpus Christi no contexto em que vivemos?

Sobre o autor:

Edward  Guimarães é doutor em Ciências da Religião pela PUC Minas e mestre em Teologia pela FAJE.  Professor do Mestrado Profissional em Teologia Prática e de Cultura Religiosa da PUC Minas.
]]>
https://observatoriodaevangelizacao.com/corpus-christi-outra-compreensao-necessaria-a-partir-dos-sinais-dos-tempos/feed/ 0 49889
Diálogo intergeracional 3: Pois é, Frei Betto. Por Ruan de Oliveira Gomes https://observatoriodaevangelizacao.com/dialogo-intergeracional-3-pois-e-frei-betto-por-ruan-de-oliveira-gomes/ Wed, 24 Apr 2024 15:27:35 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.com/?p=49752 [Leia mais...]]]> Queria alargar nossas reflexões e sim, acredito que sim, muitas das ideias da sua geração, ideias que construímos para fazer pastoral e movimentos com propostas políticas já não tocam mais nossos corações e não dizem mais nada a nossos jovens. (…) ainda que jovens podemos ensinar, ocupar e ser. Precisamos construir juntos, rever nossas práticas, ter a coragem de abrir espaços às novas lutas e participarmos da construção do futuro. Nossos cabelos, brancos ou não, denunciam o inverno que nos acomete. Ainda estamos no inverno, mas pode ser primavera se construirmos juntos e eu com meus cabelos pretos ainda acredito nisso. Se a juventude não sonha, a culpa [se há culpa] não é da juventude.

Confira o artigo de Ruan de Oliveira Gomes (os grifos são nossos):

Pois é, Frei Betto.

Meus cabelos são pretos. Acho que isso já seja suficiente para uma apresentação e início de conversa.

Eu também estava no Fé e Política, ou ao menos em quase todo ele, e também me entristeci ao olhar para o lado e não me sentir representado em nenhuma mesa. Mas, não ser representado é o menor dos problemas e talvez seja somente o sintoma de um problema muito maior.

Eu sou apenas um jovem e ainda me atrevo a te responder do lado de cá das lutas populares em prol da libertação. Eu estou do mesmo lado da trincheira, mas sinto que estou mais sozinho que a sua geração.

Talvez o senhor saiba que quase não há nas nossas muitas juventudes projetos a serem abraçados, talvez alguém nos lembre o que Lyotard chamou de fim das metanarrativas e talvez alguém apressado venha dizer que esse é o motivo pelo qual você viu poucos jovens e muito cabelo branco naquele encontro e pode ser que alguém nos recorde que nossos jovens estão enveredados até o pescoço em um tradicionalismo ou reacionarismo ora comendo e bebendo a cotidianidade da vida comum, sem fazer história como nos recorda Samir Amin.

Isso tudo é verdade, mas queria alargar nossas reflexões e sim, acredito que sim, muitas das ideias da sua geração, ideias que construímos para fazer pastoral e movimentos com propostas políticas já não tocam mais nossos corações e não dizem mais nada a nossos jovens. Se não breguice e cacofonia.

Encontros dessa natureza são feitos com quem e para quem? Vejo o 12º Encontro nacional de Fé e Política como um encontro para demarcar um território, construir um caminho de organização e trazer a tona uma memória construída. Porque se ele quisesse fazer uma imersão na vida das juventudes não seria feito nesses moldes.

Se a esquerda está acuada, isto deve-se porque ela se acuou e achou suficiente estar em clubinhos dos iluminados tecnocratas que não conseguem sair de suas discussões entre pares. O movimento Fé e Política sediar seu 12º encontro num dos shoppings de Belo Horizonte é extremamente imagético e pouco acidental.

Do alto da Torre de Marfim, no símbolo do neoliberalismo, estávamos criticando o mesmo sistema enquanto muitos daqueles do encontro estavam indo embora em seus confortáveis assentos de uber e os outros que conseguiram estacionar seus automóveis pagaram em um dia o que muitos dos nossos jovens ganham em um mês.

Sim, Frei Betto, eu concordo. Se a esquerda acuou isso deve-se a ausência da coerência entre práxis e teoria.

Sim, Frei Betto. Eu também senti falta dos jovens e também me senti sozinho naquele e em muitos outros encontros (nada) populares que eu tenho participado. O fato de a esquerda “ainda ser a mesma” não me parece acidental, quando eu não vejo nenhum jovem dividindo a mesa e com a palavra falando das nossas lutas, esperanças e sonhos.

Não estamos porque não nos sentimos parte-com e esse sentimento se dá pela falta de protagonismo dado a jovens e a seus coletivos. Embora houvesse jovens em grupos temáticos, isso é marginal. Queremos mais que estar, queremos ser respeitados e ser aquilo que somos.

Parece-me que, muitos dos cabelos brancos até que querem falar com a gente, mas falar enquanto dinâmica própria dos cabelos brancos. Quer que os jovens entrem na dança e não querem entrar na dança deles

Tratar sobre juventudes não é um adereço e o senhor sabe. Seria como chamar mulher para falar sobre ser mulher e jovem para falar como é ser jovem. Não é isso, e isso é muito pouco; é ver a partir destes corpos como corre a utopia e o entusiasmo de construção de alternativas globais.

Embora tenha tido uma fala circunstancial para demarcar a presença rarefeita de jovens, eu vejo poucos deles sentados ao lado dos gigantes que nos precederam na luta. Naquele e em outros momentos, enquanto a extrema direita não somente dá esse espaço, como também o usa para chamar mais jovens para suas fileiras.

Sim, Frei Betto, respeitar a memória de vocês cabelos brancos é importante e esse respeito deveria comportar que fizéssemos e estivéssemos em muitos dos lugares que embora cerceados, são nossos. Não pedimos apenas falas circunstanciais, porque vocês também não estavam satisfeitos somente com falas circunstanciais quando os cabelos ainda não eram brancos.

Queremos falar das nossas utopias, que ainda trazem muitas das suas e dos outros cabelos brancos, mas que são as nossas e não uma extensão das gerações anteriores.

“Ainda há teólogos da libertação?” foi uma das perguntas que me fiz naquele e em muitos outros encontros que tenho participado.

Sim, Frei Betto. Nós somos poucos, mas ainda estamos aqui: as juventude libertadoras que ousam sonhar apesar e contrária a muitos, inclusive gente do nosso lado e se estamos aqui, isso se dá porque vocês nos inspiram.

Fiquei feliz de naquele encontro do Fé e Política encontrar muitos daqueles que são referências pastorais e de militância popular e queria mesmo ter contado para os meus amigos como foi interessante tudo aquilo, mas eles também não os conhecem. Já não há mais heróis a serem propagados e aqueles que se colocam para nós são tão estranhos que não os reconhecemos como referências, há um problema geracional, mas há também um problema de linguagem.

Sim, Frei Betto, ainda estamos aqui, naqueles lugares populares que muitos das gerações passadas abandonaram. Não vejo as mãos de muitos cabelos brancos sujas, embora vejo e acompanho todas as críticas de como a sujeira é de rapina. Os cabelos brancos tiveram medo de sujar e calejar suas mãos de intelectuais, mas ainda estamos aqui. Seja em cursinhos populares, em assentamentos de terra, em pastorais sociais, em movimentos e coletivos.

Queremos aprender, não de forma financeira, se é que ainda nos lembramos de Paulo Freire. Mas também, ainda que jovens podemos ensinar, ocupar e ser.

Precisamos construir juntos, rever nossas práticas, ter a coragem de abrir espaços às novas lutas e participarmos da construção do futuro. Nossos cabelos, brancos ou não, denunciam o inverno que nos acomete. Ainda estamos no inverno, mas pode ser primavera se construírmos juntos e eu com meus cabelos pretos ainda acredito nisso.

Se a juventude não sonha, a culpa [se há culpa] não é da juventude.

Ruan de Oliveira Gomes

Membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara e seminarista da Diocese de Luz – MG

]]>
49752
Diálogo intergeracional 2: Cabelos grisalhos, por Jorge Alexandre Alves https://observatoriodaevangelizacao.com/dialogo-intergeracional-2-cabelos-grisalhos-por-jorge-alexandre-alves/ Wed, 24 Apr 2024 14:34:54 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.com/?p=49742 [Leia mais...]]]> Diante dessa realidade, como sonhar com um amanhã melhor? Para muitos jovens de camada popular, o futuro inexiste. Sem futuro não há utopia. Resta matar um leão por dia para ter o que comer e o que vestir. Vemos poucos jovens nestes eventos em que estamos presentes porque a moçada tá “no corre da vida defendendo um qualquer”, como eles dizem. Não há mais uma comunidade de fé ou um movimento social que financie essas experiências. Quem o fará em um mundo social reduzido a duas instituições – família e Estado –pelo neoliberalismo? E um detalhe: a maioria destes jovens não são católicos. Não deveríamos pensar que estamos em uma bolha geracional formada por nós mesmos ao longo do tempo? Não estaríamos nós hermeticamente fechados em nossas verdades e metodologias a ponto de não conseguirmos mais escutar os mais novos? Queremos ceder o protagonismo às novas gerações?

Confira o artigo do Jorge Alexandre Alves (os grifos são nossos):

CABELOS GRISALHOS
(em resposta a “CABELOS BRANCOS”, de Frei Betto)

Caríssimo Frei Betto,

Acabei de ler seu mais recente texto, “CABELOS BRANCOS”, que traz uma série de reflexões importantes. Seu olhar aguçado e perspicaz nos interpela sobre um fenômeno que não é exatamente novo, mas que agora salta aos nossos olhos.

Provocado pelo artigo de sua autoria, tomo a ousadia de fazer essa resposta. Quem sabe não posso também dar alguma contribuição para a questão que você nos trouxe?

Estivemos juntos algumas vezes ao longo dos últimos anos, em encontros e palestras. Tive a honra de conversar longamente contigo em um carro, a caminho do bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, quando sua biografia foi lançada em uma comunidade no extremo da periferia da outrora Cidade Maravilhosa.

Frei Betto, entendo que sua indagação a respeito do envelhecimento das ideias é provocativa. Ora, somos discípulos de um prisioneiro político executado sumariamente pelas forças de um império há 2 mil anos. Se as ideias que levaram Jesus à cruz tivessem morrido no Calvário, não estaríamos aqui, não é mesmo?

Da mesma forma, as ideias de Marx não morreram com a derrubada do Muro de Berlim. Basta vermos nas redes digitais (que não são nada sociais, diga-se) o trabalho feito por jovens como Sabrina Fernandes ou o Chavoso da USP. Olhemos para a experiência de videocasts como o Podpah… A gente sequer consegue fazer algo semelhante ou mesmo ser convidado por esse pessoal que tem canal aberto com as juventudes.

Sou exatamente três gerações mais novo que o senhor. No meio do ano completo 50 anos e meus cabelos já estão grisalhos. Arrisco-me a dizer que minha geração pegou o finalzinho daquela época áurea das Comunidades Eclesiais de Base, da Teologia da Libertação, daquela grande geração de bispos comprometidos com as causas da vida, como dizia Pedro Casaldáliga.

Na Igreja, fui testemunha ocular do ponto de virada destes tempos de esperança primaveril para o deserto frio de uma Igreja autorreferencial. Pouco a pouco foi censurando, punindo que apoiava as lutas populares e se retirando ela mesma dessas lutas. As milícias da Zona Oeste agradeceram.

O catolicismo perdeu capilaridade social no Rio de Janeiro. Eu vivo aqui desde que nasci. A cidade, tão pujante em sua cultura, sempre foi um terreno muito degradado em termos eclesiais.

A arquidiocese carioca sediou a experiência-piloto da restauração romana, do clericalismo, do reacionarismo que caracterizou o projeto da “volta à grande disciplina”, como bem advertiu o saudoso João Batista Libânio. Quarenta anos mais tarde, o que era um experimento diocesano tornou-se a regra na maior parte do Brasil.

Tendo passado pela Pastoral da Juventude nos anos 1990, minha fé libertadora e meu corpo sentiram o peso da instituição eclesial quando o nosso modo de ser Igreja Jovem naquele tempo foi perseguido e proibido. Vivi algo semelhante na minha vida profissional, ao passar mais de duas décadas na educação católica. Neste caso até mais grave porque era perpetrado por gente de discurso progressista e libertador. Ou seja, o cancelamento e o assassinato de reputação não é monopólio do neofascismo nem coisa recente criada pelo fundamentalismo cristão no Brasil. Entre nós, ele sempre esteve presente de alguma forma, talvez não fosse tão agressivo e acintoso como é hoje.

Evidentemente que essa coisa fascistóide precisa ser denunciada e combatida, mas anda difícil dizer algumas verdades incômodas em certo círculos do campo progressista. Tem sido essa a experiência que nós, professores da rede federal, temos vivido porque resolvemos entrar em greve, quando somos acusados de querer prejudicar o governo.

Nossas disputas internas, nossos expurgos e fratricídios por vezes são tão ou mais dolorosos que os ataques da extrema-direita. Será que os mais jovens já não perceberam isso e o quanto é difícil ser escutado pelos “cabeças-brancas” a ponto de preferirem simplesmente não estar?

Em um tempo marcado pelas doenças da alma, para quê adoecer onde você deveria alimentar a esperança? Tem sido melhor ficar e lutar nos territórios. Ação local para pensar global. Talvez um primeiro exercício nosso de revisão de práxis fosse escutar mais do que ter algo a dizer.

Aqui no Rio tenho sido chamado para falar em alguns lugares também. Seja na Baixada Fluminense, ou em assessorias para o CEBI ou para o Movimento Fé e Política. Não falo para milhares de pessoas como o senhor, mas em grupos menores onde tenho falado a presença raramente é jovem.

Desde antes da pandemia observo o mesmo fenômeno indicado em seu texto. Onde estão nossos jovens? Eu me refiro à turma da PJ, das Comunidades de Base, catequistas, agentes de pastoral… Mas esse não é um problema isolado do catolicismo progressista.

Semana passada, fui ver o José Dirceu que fez uma fala no auditório do Sindicato dos Bancários, no Centro do Rio. Estava bem cheio, deveria ter umas 250 pessoas. Pois bem, eu com quase 50 anos deveria ser um dos vinte mais jovens no evento. Nos sindicatos, não é diferente. Talvez a exceção seja apenas o MST.

Essa parafernália digital que nos cerca também roubou a ideia de futuro, de amanhã. Tudo é aqui e agora. O que aconteceu há meia hora pode ter ficado envelhecido e ultrapassado. Soma-se a isso mudanças no mundo do trabalho que precarizam os raros empregos formais e a condição de abandono da escola básica.

Diante dessa realidade, como sonhar com um amanhã melhor? Para muitos jovens de camada popular, o futuro inexiste. Sem futuro não há utopia. Resta matar um leão por dia para ter o que comer e o que vestir.

Vemos poucos jovens nestes eventos em que estamos presentes porque a moçada tá “no corre da vida defendendo um qualquer”, como eles dizem. Não há mais uma comunidade de fé ou um movimento social que financie essas experiências. Quem o fará em um mundo social reduzido a duas instituições – família e Estado –pelo neoliberalismo? E um detalhe: a maioria destes jovens não são católicos.

Não deveríamos pensar que estamos em uma bolha geracional formada por nós mesmos ao longo do tempo? Não estaríamos nós hermeticamente fechados em nossas verdades e metodologias a ponto de não conseguirmos mais escutar os mais novos? Queremos ceder o protagonismo às novas gerações?

Para não dizer que tudo são espinhos, vejo alguns sinais de esperanças. Aqui no Rio de Janeiro, todas as vezes que evangélicos progressistas promovem debates e encontros, há uma grande quantidade de jovens muito envolvidos com a luta por uma sociedade justa.

Os dois últimos em que estive, organizados pelo ISER, tinham esse perfil. Não valeria a pena prestar atenção no que eles – os evangélicos progressistas – estão fazendo para entender onde estamos errando?

Vale também ressaltar o bonito diálogo feito Marcelo Barros e Rose Costa com jovens muito comprometidos na organização do Encontro de Juventudes e Espiritualidades Libertadoras (ENJEL). Na preparação de seu próximo evento, uma coisa me chamou a atenção: a programação é toda feita a partir de rodas de vivência e de conversa.

Diferentes de outros formatos a que estamos acostumados, onde apenas vamos ouvir muita coisa boa, mas de forma passiva. Ao contrário, este encontro propõe uma metodologia baseada no diálogo e na escuta e, sobretudo, oferece protagonismo aos jovens, algo que ainda se resiste muito em acontecer em certos ambientes.

Precisamos sair do planalto e descer para a planície das juventudes. Ou se preferir, sair dos centros e partir para as periferias, sair do asfalto e subir os morros, entrar nas favelas onde estão os jovens com quem queremos dialogar, se de fato desejamos esse diálogo e suas consequências.

Afinal, como bem o senhor lembra, a cabeça pensa onde os pés pisam. Será que estamos pisando os mesmos terrenos das juventudes?

Frei Betto, finalmente peço que me perdoe se lhe pareço impertinente ao responder seu artigo. Não foi minha intenção. Receba como um diálogo que alguém de cabelos grisalhos dirige a alguém de cabelos brancos.

Um grande abraço,

Jorge Alexandre Alves é professor do IFRJ e do Movimento Fé e Política.

Foto: Registro do 12º Encontro Nacional de Fé e Política

]]>
49742
Diálogo intergeracional 1: Cabelos Brancos, por Frei Betto https://observatoriodaevangelizacao.com/dialogo-intergeracional-1-cabelos-brancos-por-frei-betto/ Wed, 24 Apr 2024 13:09:10 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.com/?p=49739 [Leia mais...]]]> Participei em Belo Horizonte, no início de abril, do 12º encontro nacional do Movimento Fé e Política. Quase duas mil pessoas. Ao contrário dos encontros anteriores à pandemia, poucos jovens. A maioria de cabelos brancos ou tingidos. Minha geração envelhece. Chego este ano aos 80. Nossas ideias, propostas e utopias, também envelhecem? (…) Precisamos fazer autocrítica, rever nossas ideias, ter a coragem de abrir espaços às novas gerações e reinventar o futuro. Nossos cabelos brancos denunciam o inverno que nos acomete. É hora de uma nova e florida primavera!

Confira o artigo de Frei Betto na íntegra:

CABELOS BRANCOS

Participei em Belo Horizonte, no início de abril, do 12º encontro nacional do Movimento Fé e Política. Quase duas mil pessoas. Ao contrário dos encontros anteriores à pandemia, poucos jovens. A maioria de cabelos brancos ou tingidos.

Minha geração envelhece. Chego este ano aos 80. Nossas ideias, propostas e utopias, também envelhecem?

É muito preocupante constatar que as forças progressistas não logram renovar seus quadros. Para vice de Boulos, na disputa pela prefeitura de São Paulo, em outubro próximo, o PT precisou importar uma mulher filiada a outro partido: Marta Suplicy, que fará 80 anos em março de 2025. No Rio, o PT parece não ter quem indicar para possível vice na chapa do prefeito Eduardo Paes, candidato à reeleição. Tende a importar Anielle Franco, do PSOL.

Tenho proferido conferências pelo Brasil afora e assessorado movimentos populares. Os cabelos brancos predominam na plateia. As poucas manifestações públicas convocadas pela esquerda reúnem um número inexpressivo de pessoas e, em geral, a turma dos cabelos brancos.

Nós, da esquerda, estamos acuados. Como diz a canção de Belchior, “minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo, tudo, tudo, tudo que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos (…) como os nossos pais”. “Nossos ídolos ainda são os mesmos”. E não vemos que “o novo sempre vem”.

A queda do Muro de Berlim abalou as nossas esperanças em um mundo onde todos teriam a sua existência dignamente assegurada. E o capitalismo, gato de sete fôlegos, inovou-se pelos avanços da ciência e da tecnologia e, sobretudo, do neoliberalismo.

Primeiro, a privatização do patrimônio público; em seguida, das instituições sociais, reduzidas a duas por Margaret Tchatcher: o Estado e a família. E, por fim, o cidadão foi despido de seu manto aristotélico e condenado a ser mero consumista, inclusive de si mesmo ao passar horas a se mirar no espelho narcísico das redes digitais.

Há uma progressiva despolitização da sociedade.

A direita é como uma maré que sobe e ameaça afogar o que nos resta de democracia liberal. Basta dizer que um dos três programas de maior audiência da TV Globo e, portanto, de faturamento, é o BBB, que bem espelha os tempos em que vivemos: ali são explícitas as regras do sistema capitalista. O único objetivo é competir. Todos sabem que, ao final, apenas uma pessoa haverá de amealhar o pote de ouro. E a missão dos concorrentes é cada um fazer tudo para que seus pares sejam eliminados. É o que milhões de adolescentes aprendem ao perder horas assistindo àquele simulacro de “O anjo exterminador”, de Buñuel.

Na esquerda “ainda somos os mesmos”. Não semeamos a safra de novos militantes com medo de que eles se destacassem e ocupassem as nossas instâncias de poder. Abandonamos as favelas, as zonas rurais de pobreza, os movimentos de bairros. E não aprendemos a atuar nas trincheiras digitais, monopolizadas pela direita como armas virtuais da ascensão neofascista.

Não sabemos como reagir diante do fundamentalismo religioso que mobiliza multidões, abastece urnas, elege inclusive bandidos notórios. Fundamentalismo que apaga as desigualdades sociais e as contradições de classe e ressalta que tudo se reduz à disputa entre Deus e o diabo. Todo sofrimento decorre do pecado. Eliminado o pecado, irrompe a prosperidade, que empodera e favorece o domínio: a confessionalização das instituições públicas; a deslaicização do Estado; a neocristandade que condena à fogueira da difamação e do cancelamento todos que não abraçam “a moral e os bons costumes” dos que clamam contra o aborto e homenageiam torturadores e milicianos assassinos.

Precisamos fazer autocrítica, rever nossas ideias, ter a coragem de abrir espaços às novas gerações e reinventar o futuro. Nossos cabelos brancos denunciam o inverno que nos acomete. É hora de uma nova e florida primavera!

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Assine e receba todos os artigos do autor: mhgpal@gmail.com

]]>
49739
São Jorge e Ogum: o catolicismo carioca na encruzilhada entre o diálogo e o oportunismo https://observatoriodaevangelizacao.com/sao-jorge-e-ogum-o-catolicismo-carioca-na-encruzilhada-entre-o-dialogo-e-o-oportunismo/ Tue, 23 Apr 2024 21:38:10 +0000 https://observatoriodaevangelizacao.com/?p=49770 [Leia mais...]]]>
“Papa Bento XVI escreve as mais belas palavras que li sobre o Diálogo. Ele diz que no diálogo verdadeiro nenhuma parte fica da mesma forma. Nessa perspectiva, no diálogo Jorge-Ogum, Ogum sai jorjizado e Jorge ogunizado! E isso é magnífico!” Na data de hoje, a provocante e pertinente reflexão libertadora do padre Gegê Natalino, confira:

SÃO JORGE E OGUM: O CATOLICISMO CARIOCA NA ENCRUZILHADA ENTRE O DIÁLOGO E O OPORTUNISMO

(Salve Jorge – Ogunhê!)
O intelectual das ruas e da cultura popular, Luis Antônio Simas, é personalidade indispensável para se pensar sincretismos/cruzos/encruzilhadas na cidade encantada e macumbizada do Rio de janeiro. Pensar e viver São Jorge nesta cidade implica destronar quaisquer pretensões ou ilusões de um cristianismo (católico e evangélico) virgem, casto, puritano e isento das desconcertantes africanizações e empretecimentos. Já bem escreveu o intelectual Alberto da Costa Silva ser o Brasil um país “extraordinariamente africanizado”. E essa situação irremediável de encontro entre fés constituiu, em particular para o catolicismo (ou catolicismos), um inalienável desafio para o diálogo sério e sincero no horizonte de uma “Igreja em saída”, nos termos do papa Francisco, e da sinodalidade (=caminhar juntos). Parto da afirmação de que toda fé é sincrética, como o é todo fenômeno cultural. E isso fala sobre riquezas e potencialidades humanas.
Dessa feita, pensar e celebrar São Jorge, o mais macumbeiro dos santos do catolicismo, dispensa olhares ingênuos e/ou indesculpavelmente puritanos e mentirosos. Podemos sim dizer, do ponto de vista radical, que São Jorge não é Ogum e que Ogum não é São Jorge; e tudo bem! Mas essa afirmação que alegra os que obstinadamente defendem, com unhas, dentes e catecismos, uma fé “pura”, despreza, por vezes com cinismo, o nó de relações construídas no profundo do imaginário-Brasil entre o Santo e o Orixá, entre Jorge e Ogum.
Uma coisa é a fé pensada nos manuais e gabinetes, uma outra coisa é a fé vivida e sentida na pele de um povo perito em cruz e encruzilhada. E encruzilhada não é apenas lugar geográfico, mas perspectiva de mundo, forma de ser e estar no tempo. Ser de encruzilhada é uma das mais potentes contribuições cognitivas da população preta na diáspora.
É nesse sentido que é possível falar em “pedagogia da encruzilhada”, como na obra de Luis Rufino. Escreve sugestivamente Leda Maria Martins: “A cultura negra é uma cultura das encruzilhadas”.
O mundo católico oficial é o mundo da estrada reta. O pensar reto ocidental (que forma/deforma clérigos e laicato) é pobre demais para captar dribles, sutilezas, encontros, trocas e encantamentos próprios do pensar/ser em cruzo. É preciso levar a sério quando, em cruzo, Zeca Pagodinho confessa como voz coletiva: “Eu, sincretizado na fé, sou carregado de axé… Sim, vou na igreja festejar meu protetor… Sim, vou no terreiro pra bater o meu tambor. Bato cabeça, firmo ponto, sim senhor. Eu canto pra Ogum “.
Faz lembrar “Grande sertão: veredas” de Guimarães Rosa: “Não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo Rio… Uma só pra mim é pouca, talvez não me chegue”.
Está o catolicismo oficial disposto a dialogar de forma positiva e sincera com esse forma encantada de afirmar a vida?
Como pode um catolicismo oficial com mentalidade colonizadora se abrir a outras possibilidades de ser e está no mundo?
Em “A ciência encantada das macumbas”, escrevem Luis Simas e Rufino: “Os santos que por aqui baixam praticam o cruzo, são macumbeiros, arrastam multidões em suas companhias, vadeiam nos sambas de roda, nas capoeiras, riem nos versos improvisados, bebem cerveja…”. Como retirar ou desconsiderar dos festejos de São Jorge a cerveja e a feijoada, bebida e comida votivas do Orixá Ogum?
Uma paróquia que afirma São Jorge e rechaça Ogum mas, no dia do santo, faz feijoada, com ou sem consciência, afirma o santo e orixá. Afirma ou não afirma? Se não afirma na homilia, afirma no prato!
Dizem ainda os autores Simas e Rufino: “Nos cruzos transatlânticos, porém, a morte foi dobrada por perspectivas de mundo desconhecidas das limitadas pretensões do colonialismo europeu-ocidental”.
É fato que historicamente, no Brasil, São Jorge, por conta do sincretismo com Ogum, era visto, no mínimo, com suspeita pelo catolicismo oficial. Se aproximar do Santo significava abrir as portas aos macumbeiros. Ainda hoje verificamos em muitos espaços católicos o olhar de desconfiança e até de ojeriza a tudo que lembre a presença das religiões de matriz africana.
Mas , fato é que por conta da persistência dos macumbeiros, populares, e hoje, de artistas e celebridades, o Santo está na crista da onda. E seus festejos estão cada vez mais lucrativos, sobretudo a feijoada.
E é também fato que, com ou sem bispos, com ou sem padres, com ou sem missa, com ou sem hóstia, o santo guerreiro é festivamente celebrado. Salve, Jorge! Ogunhê!
Quem sempre foi privado da hóstia aprendeu a combater com a feijoada!
Na feijoada, todos e todas comem; na missa não!
E vale dizer que o lugar de destaque que São Jorge ocupa hoje no Rio de janeiro é fruto, sobretudo, da sapiência e persistência do povo do terreiro. E no cruzo, o cristianismo, quase sempre metido a puro e a besta, foi ogunizado, aceitemos ou não. O povo do terreiro se alterou com o cristianismo, mas também macumbizou a fé cristã. São Jorge macumbiza a cidade; e a igreja também! Quem se mistura com o santo, feijoada come!
Quem pode dizer que a oração de São Jorge feita nas paróquias e pelos devotos onde quer que estejam não reedita saberes e práticas pretas para fechar o corpo?
O vermelho que toma conta da cidade e dos corpos no dia de Jorge se dá por conta da cor litúrgico-católica referida aos mártires da fé cristã ou por razões outras que ultrapassam os limites dos cânones e pensares eclesiásticos eurocentrados?
Papa Bento XVI escreve as mais belas palavras que li sobre o Diálogo. Ele diz que no diálogo verdadeiro nenhuma parte fica da mesma forma.
Nessa perspectiva, no diálogo Jorge-Ogum, Ogum sai jorjizado e Jorge ogunizado!
E isso é magnífico!
Escreve, de forma desconcertante, Luis Antônio Simas: “O Rio de janeiro começa a comemorar São Jorge e Ogum! E para dar um garrinchamento nos puristas que encaram o sincretismo mecanicamente, aqui o buraco é mais embaixo: na nossa cidade, não foi Jorge que cristianizou Ogum. Segura, malandro. Foi Ogum que empreteceu Jorge”.
O cavalo corre mais que a Igreja. Desse modo, a “Igreja em saída” não tem saída: ou rompe o olhar puritano, preconceituoso e racista e anda mais depressa para o diálogo sincero e engajado com o mundo de Jorge ou vai perder o santo de vista.
O risco está na Igreja ceder a tentação oportunista de só falar em Jorge única e exclusivamente como chamaris para tentar ganhar o povo, multiplicar curtidas e encher os cofres. São Jorge, outrora persona non grata para muitos católicos puritanos, sobretudo clérigos, se tornou muitíssimo lucrativo!
Salve, Jorge! Ogunhê! Patacori, Ogum!
*Padre Gegê Natalino é Doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade de São Paulo.
]]>
49770