“Tratar de assuntos incômodos falando com o Papa significa para mim expressar corresponsabilidade”
Sempre dissemos que Pedro Casaldáliga foi um bispo do povo, dos pobres e dos oprimidos. Que sua vida sempre esteve cheia de vida para os outros e por isso agora sua vida estará cheia da vida de Deus para sempre na plenitude do seu Reino.
Anunciamos o envio pelo correio de uma carta que escreveu ao papa João Paulo II, na qual exprime de forma primorosamente delicada e respeitosa, mas clara e comprometida, o seu imenso desejo de contribuir para uma renovação profunda da Igreja, que a torne muito mais coerente com o Evangelho e facilite assim a aceitação e recepção da mensagem do Evangelho pela sociedade, como caminho de libertação integral para o ser humano e para a criação.
Atualmente o papa Francisco reconhece o magnífico trabalho e contribuição de dom Pedro Casaldáliga à sociedade e à Igreja em coerência com a melhor mensagem que a história da humanidade conheceu, a de Jesus de Nazaré.
Confira o texto completo da memorável Carta de dom Pedro ao papa João Paulo II antes de sua viagem a Roma
São Félix do Araguaia, 22 de fevereiro de 1986
Festa da Cátedra de Pedro.
Querido papa João Paulo II,
irmão em Jesus Cristo e pastor da nossa Igreja:
Faz muito tempo que queria escrever-lhe esta carta, e faz muito tempo que a venho pensando e a medito na oração. Gostaria que fosse um colóquio fraterno – em sinceridade humana e com a liberdade do Espírito – assim como um gesto de serviço de um bispo para com o bispo de Roma, que é Pedro para a minha fé, para a minha corresponsabilidade eclesial e para a minha colegialidade apostólica.
Faz dezoito anos que estou no Brasil, para onde vim voluntariamente como missionário. Nunca regressei ao meu país natal, a Espanha, nem por ocasião da morte da minha mãe. Nunca tirei férias durante todo este tempo. Não saí do Brasil durante dezessete anos. Nestes dezoito anos vivi e trabalhei no nordeste do Estado de Mato Grosso, sendo o primeiro sacerdote que se instalou de maneira permanente região. Há quinze anos sou bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia.
A região da Prelazia está localizada na Amazônia Legal brasileira e abarca uma área de 150.000 km2. Até hoje não tem um só palmo de estrada asfaltada. Só recentemente foi instalado o serviço telefônico. A região fica frequentemente isolada ou com comunicação muito precária por causa das chuvas e inundações que interrompem as estradas.
É uma área de grandes latifúndios nacionais e multinacionais, com fazendas agropecuárias de centenas de milhares de hectares, com empregados que vivem frequentemente em regime de violência e de semi-escravidão. Acompanho desde há tempos a dramática vida dos indígenas, dos “posseiros” (lavradores sem título da terra) e dos peões (trabalhadores braçais do latifúndio). Toda a população em geral, dentro da Prelazia, tem sido forçada a viver precariamente, sem serviços adequados de educação, saúde, transporte, moradia, segurança jurídica e, sobretudo, sem terra garantida para trabalhar.
Durante a ditadura militar, o governo tentou, por cinco vezes, expulsar-me do país. Por quatro vezes toda a Prelazia foi cercada por operações militares de controle e de pressão. A minha vida e a de vários sacerdotes e agentes da pastoral da Prelazia foi ameaçada e posta a prémio publicamente. Em várias ocasiões, estes sacerdotes, agentes da pastoral e eu fomos presos; vários deles inclusive torturados. O padre Francisco Jentel foi preso, maltratado, condenado a dez anos de prisão, expulso posteriormente do Brasil, morrendo finalmente no exílio, longe do seu país de missão.
O arquivo da Prelazia foi violado e saqueado pelo Exército e pela Polícia. O boletim da Prelazia foi editado de forma falsificada pelos órgãos de repressão do regime e, publicado dessa forma na grande imprensa, para servir de acusação contra a própria Prelazia.
Neste momento, três agentes pastorais ainda estão sendo submetidos a processos judiciais sob falsas acusações. Tive de presenciar pessoalmente mortes violentas, como a do padre jesuíta João Bosco Penido Burnier, assassinado ao meu lado pela polícia quando nós dois nos apresentámos na Delegacia-Prisão de Ribeirão Bonito para protestar oficialmente contra as torturas a que estavam sendo submetidas duas mulheres, trabalhadoras agrícolas, mães de famílias, injustamente detidas.
Ao longo de todos esses anos, multiplicaram-se os mal-entendidos e as calúnias dos grandes proprietários de terras – nenhum dos quais vive na região – e de outros poderosos do país e do exterior. Também dentro da Igreja surgiram algumas incompreensões de irmãos que desconhecem a realidade do povo e da pastoral nestas regiões afastadas e violentas onde o povo, com frequência, conta apenas com a voz da Igreja que procura colocar-se a seu serviço.
Além destes sofrimentos vividos no âmbito da Prelazia, coube-me, como responsável nacional pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) e membro do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), acompanhar de perto as tribulações e até a morte de muitos indígenas, camponeses, agentes da pastoral e de pessoas comprometidas com a causa desses irmãos, a que a ganância do capital não permite sequer sobreviver. Entre eles, o índio Marçal, um guarani, que o saudou pessoalmente em Manaus, em nome dos povos indígenas do Brasil.
O Deus vivo, Pai de Jesus, é quem nos vai julgar. Permita-me, no entanto, abrir o meu coração ao seu coração de irmão e de Pastor. Viver nestas circunstâncias extremas, ser poeta e escrever, manter contato com pessoas e ambientes de comunicação ou de fronteira (devido à idade, ideologia, alteridade cultural, situação social ou devido aos serviços de emergência que prestam) pode levar a gestos e posturas menos comuns e às vezes incômodos para a sociedade estabelecida.
Como irmão e como Papa que é para mim, rogo-lhe que aceite a intenção sincera e a vontade apaixonadamente cristã e eclesial tanto desta carta como das minhas atitudes. O Pai concedeu-me a graça de nunca abandonar a oração, ao longo desta vida mais ou menos agitada. Preservou-me de tentações maiores contra a fé e a vida consagrada e possibilitou-me contar sempre com a força dos irmãos através de uma comunhão eclesial rica em encontros, estudos, ajudas. Certamente por isso, creio que não me desviei do caminho de Jesus, e espero, também por isso, continuar até ao fim neste Caminho que é Verdade e Vida.
Lamento incomodá-lo com a leitura desta longa carta, quando tantos serviços e preocupações já pesam sobre os seus ombros. Duas cartas do cardeal Gantin, Prefeito da Congregação para os Bispos e uma comunicação da Nunciatura que recebi recentemente, levaram-me, finalmente, a escrever-lhe esta carta.
Estas três comunicações urgiam a minha visita ad limina, questionavam aspectos da pastoral da Prelazia e censuravam a minha ida à América Central. Sinto-me um pouco pequeno e como que distante nesta Amazônia brasileira tão diferente, e nesta América Latina, tão convulsionada e frequentemente incompreendida. Achei necessário fazer-me preceder por esta carta. Pareceu-me que apenas um contato serenamente pessoal entre nós dois, por meio de um escrito ponderado e claro, me daria a possibilidade de me aproximar verdadeiramente de ti. A outra forma maior de nos encontrarmos já está garantida: rezo pelo senhor todos os dias, querido irmão João Paulo.
Não tome como impertinência a alusão que farei a temas, situações e práticas secularmente controversas na Igreja ou mesmo contestadas sobretudo hoje, quando o espírito crítico e o pluralismo também atravessam fortemente a vida eclesiástica.
Abordar novamente estas questões incômodas, falando com o Papa, significa para mim expressar a corresponsabilidade em relação à voz de milhões de irmãos católicos – de muitos bispos também – e de irmãos não católicos, evangélicos, de outras religiões, humanos. Como bispo da Igreja Católica, posso e devo dar à nossa Igreja esta contribuição: pensar em voz alta a minha fé e exercer, com liberdade de família, o serviço da colegialidade corresponsável. Calar, deixar correr, com certo fatalismo, a força das estruturas seculares, seria muito mais cômodo. Não penso porém que fosse mais cristão, nem sequer mais humano.
Assim como falando, exigindo reformas, assumindo novas posições, se pode causar “escândalo” aos irmãos que vivem em situações mais calmas ou menos críticas, assim também podemos acusar de “escândalo” muitos irmãos, situados em outros contextos sociais ou culturais, mais abertos à crítica e desejosos de renovação da Igreja – sempre una e “semper renovanda“ – quando nos calamos ou aceitamos a rotina ou tomamos medidas unívocas indiscriminadamente.
Sem “se conformar com este mundo”, a Igreja de Jesus, para ser fiel ao Evangelho do Reino, deve estar atenta “aos sinais dos Tempos” e dos lugares e anunciar a Palavra, num tom cultural ou histórico e com um testemunho de vida e de prática tais que os homens e as mulheres de cada tempo e lugar possam entender esta Palavra e se vejam estimulados a aceitá-la.
No que diz respeito ao campo social concretamente, não podemos dizer com muita verdade que já fizemos a opção pelos pobres. Em primeiro lugar, porque não compartilhamos nas nossas vidas e nas nossas instituições a pobreza real que elas experimentam. E, em segundo lugar, porque não agimos, diante da “riqueza da iniquidade”, com aquela liberdade e firmeza adotadas pelo Senhor. A opção pelos pobres, que nunca excluirá a pessoa dos ricos – já que a salvação é oferecida a todos e a todos se deve ao ministério da Igreja – exclui sim o modo de vida dos ricos, “insulto à miséria dos pobres”, e o seu sistema de acumulação e de privilégio, que necessariamente espolia e marginaliza a grande maioria da família humana, povos e continentes inteiros.
Não fiz a visita ad limina, mesmo depois de receber, como outros, um convite da Congregação para os Bispos que nos lembrava esta prática. Eu queria e quero ajudar a Sé Apostólica a rever a forma dessa visita. Ouço críticas de muitos bispos que a fazem, pois mesmo reconhecendo que promove um contato com os Dicastérios romanos e um encontro cordial com o Papa, revela-se incapaz de produzir um verdadeiro intercâmbio de colegialidade apostólica dos Pastores das Igrejas Particulares com o Pastor da Igreja universal.
Faz-se um grande gasto, estabelecem-se contatos, cumpre-se uma tradição. Mas cumpre-se a Tradição de “videre Petrum“ e de ajudar Pedro a ver a Igreja toda? Não teria hoje a Igreja outros modos mais eficazes de fazer intercâmbio, de estabelecer contatos, de avaliar, de expressar a comunhão dos Pastores e das suas Igrejas com a Igreja Universal e mais concretamente com o bispo de Roma?
Eu jamais pretenderia supor no Papa um conhecimento detalhado das Igrejas Particulares ou pedir-lhe soluções concretas para a Pastoral delas. Para isto estamos nós, os respectivos Pastores, ministros e conselhos pastorais de cada Igreja. Para isso existem também as Conferências Episcopais que, no meu entender e no de muitos outros, não estão sendo devidamente valorizadas e até estão sendo preteridas ou injustamente assinaladas por certas atitudes de algumas instâncias da Cúria Romana.
Se as Conferências Episcopais não são “teológicas” ou “apostólicas”, como tais – poderiam não existir, a Igreja caminhou sem elas – também não são, em si mesmas, “apostólicas” ou “teológicas”, as cúrias, nem mesmo a Cúria Romana: Pedro presidiu e governou a Igreja, de forma diferente, em épocas diferentes.
O Papa tem necessidade de um corpo de auxiliares, como também necessitam dele todos os bispos da Igreja, embora devesse ser sempre mais simples e participativo. Mas para muitos de nós, Irmão João Paulo, certas estruturas da Cúria não respondem ao testemunho de simplicidade evangélica e de comunhão fraterna que o Senhor e o mundo exigem de nós; nem traduzem nas suas atitudes, às vezes centralizadoras e impositivas, uma catolicidade verdadeiramente universal, nem respeitam sempre as exigências de uma corresponsabilidade adulta; nem sequer, às vezes, os direitos básicos da pessoa humana ou dos diferentes povos. E não faltam, com frequência, em setores da Cúria Romana preconceitos, atenção unilateral às informações, ou até posturas, mais ou menos inconscientes, do etnocentrismo cultural europeu em relação à América Latina, África e Ásia.
Com ânimo objetivo e sereno, não se pode negar que a mulher continua fortemente marginalizada na Igreja: na legislação canônica, na liturgia, nos ministérios, na estrutura eclesiástica. Por uma fé e uma comunidade daquela Boa Nova que já não discrimina “judeu e grego, livre e escravo, homem e mulher”, esta discriminação da mulher na Igreja nunca poderá ser justificada. Tradições culturais masculinizadas que não podem anular a novidade do Evangelho talvez expliquem o passado; não podem justificar o presente, nem menos ainda o futuro imediato.
Outro ponto delicado em si mesmo e muito sensível para o seu coração, irmão João Paulo, é o celibato. Eu, pessoalmente, nunca duvidei do seu valor evangélico e da sua necessidade para a plenitude da vida eclesial, como carisma de serviço ao Reino e como testemunho da gloriosa condição futura. Penso, no entanto, que não estamos sendo compreensivos ou justos com estes milhares de padres, muitos deles em situação dramática, que aceitaram o celibato compulsoriamente, como exigência, atualmente vinculante, para o ministério sacerdotal na Igreja latina. Posteriormente, por causa desta exigência não vitalmente assumida, tiveram que deixar o ministério, e já não puderam regularizar a sua vida, seja dentro da Igreja seja, às vezes, perante a sociedade.
O Colégio Cardinalício é privilegiado, às vezes, com poderes e funções que dificilmente se compatibilizam com os direitos anteriores e com as funções eclesialmente conaturais do Colégio Apostólico dos Bispos como tal. Das Nunciaturas tenho, eu pessoalmente, uma triste experiência. O senhor conhece melhor do que eu a persistente reclamação de Conferências Episcopais, de presbitérios, de grandes setores da Igreja, diante de uma instituição tão marcadamente diplomática na sociedade e, frequentemente, com uma ação paralela à atuação dos episcopados.
João Paulo, irmão, permita-me ainda uma palavra de crítica fraterna ao próprio Papa. Por mais tradicionais que sejam os títulos de ‘Santíssimo Padre’, ‘Sua Santidade’… – assim como outros títulos eclesiásticos como ”Eminentíssimo”, ”Excelentíssimo” – são evidentemente pouco evangélicos e até extravagantes, humanamente falando. “Não queirais ser chamados pais ou mestres”, diz o Senhor. Da mesma forma, seria mais evangélico – e também mais acessível para as sensibilidades de hoje – simplificar o vestuário, os gestos, as distâncias, dentro da nossa Igreja.
Penso também que seria muito apostólico que o senhor fizesse uma avaliação suficientemente livre e participativa das suas viagens, tão generosas e mesmo heroicas em muitos aspectos, mas ainda assim tão contestadas e, a meu ver, nem sempre sem motivos: não são, essas viagens conflitantes para o Ecumenismo, testemunho de Jesus pedindo ao Pai que fôssemos um, e para a liberdade religiosa na vida pública pluralista? Não exigem essas viagens grandes dispêndios econômicos por parte das Igrejas e dos Estados, revestindo-se assim de certa prepotência e de certos privilégios cívico-políticos em relação à Igreja Católica, na pessoa do Papa, que se tornam irritantes para os outros?
Porque não reexaminar, à luz da fé, a favor do Ecumenismo e para dar testemunho ao mundo, a condição de Estado com que o Vaticano se apresenta, conferindo à pessoa do Papa uma dimensão explicitamente política, que prejudica a liberdade e a transparência do seu testemunho de Pastor universal da Igreja? Por que não decidir-se, com liberdade evangélica e também com realismo, por uma profunda renovação da Cúria Romana?
Eu sei da dor que lhe causou a sua viagem à Nicarágua. Mesmo assim, sinto-me no dever de lhe confiar a impressão – que muitos outros compartilham – de que os seus assessores e a sua própria atitude não contribuíram para que essa viagem extremamente crítica e, por outro lado, necessária, fosse mais feliz e, acima de tudo, mais evangelizadora. Abriu-se uma ferida no coração de muitos nicaraguenses e de muitos latino-americanos, do mesmo modo que se sentiu ferido no seu coração. No ano passado estive na Nicarágua. Foi a minha primeira saída do Brasil após dezessete anos de permanência neste país. Pela amizade que tenho, desde há muito tempo, com muitos nicaraguenses, por meio de contatos pessoais ou por carta, senti que deveria fazer-me presente, como pessoa humana e como bispo da Igreja, numa hora de gravíssima agressão político-militar e de profundo sofrimento interno. Não pretendi substituir o episcopado local nem subestimá-lo. Acreditei, no entanto, que podia e até mesmo devia ajudar aquele povo e aquela Igreja. Assim que cheguei, comuniquei isso por escrito aos bispos da Nicarágua. Tentei falar pessoalmente com alguns deles, mas não fui recebido. A hierarquia da Nicarágua está abertamente de um lado; do outro lado, há milhares de cristãos, para com os quais a Igreja também tem obrigações. Penso sinceramente que a nossa Igreja – sinto-me Igreja da Nicarágua também, como cristão e como bispo da Igreja – não está dando oficialmente, naquele sofrido país e com repercussões negativas por toda a América Central, Caribe e toda a América Latina, o testemunho que deveria dar: condenando a agressão, propugnando a autodeterminação daqueles povos, consolando as mães dos caídos e celebrando, na Esperança, a morte violenta de tantos irmãos, na maior parte católicos.
É só com Socialismo ou com o Sandinismo que a Igreja não pode dialogar, criticamente, sim, como criticamente deve dialogar com a realidade humana? Poderá a Igreja deixar de dialogar com a História? Ela dialogou com o Império Romano, com o feudalismo, e dialoga, de bom grado, com a burguesia e com o capitalismo, muitas vezes acriticamente, como teve de reconhecer uma avaliação histórica posterior. Não dialoga com a administração Reagan? O Império Norte-Americano merece mais consideração da Igreja do que o doloroso processo com que a pequena Nicarágua pretende ser ela mesma, por fim, arriscando e até errando, mas sendo ela mesma? O perigo do comunismo não justificará a nossa omissão ou conivência com o capitalismo. Essa omissão ou conivência pode um dia “justificar” dramaticamente a revolta, a indiferença religiosa ou mesmo o ateísmo de muitos, especialmente entre os militantes e nas novas gerações.
A credibilidade da Igreja – e do Evangelho e do próprio Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo – depende, em grande parte, do nosso ministério, crítico, sim, mas comprometido com a causa dos pobres e com os processos de libertação dos povos secularmente dominados por sucessivos impérios e oligarquias.
O senhor, como polonês, está em condições muito pessoais de entender esses processos. A sua Polônia natal, tão sofrida e forte, irmão João Paulo, tantas vezes invadida e ocupada, privada da sua autonomia e ameaçada na sua fé por impérios vizinhos (Prússia, Alemanha nazista, Rússia, Império Austro-Húngaro), é irmã gêmea da América Central e do Caribe, tantas vezes ocupados pelo Império do Norte.
Os Estados Unidos invadiram a Nicarágua em 1898 e tornaram a ocupá-la com seus marines de 1909 a 1933, deixando então uma ditadura que durou até 1979. O Haiti esteve sob ocupação de 1915 a 1934. Porto Rico continua ocupado hoje, desde 1902. Cuba sofreu várias vezes invasões e ocupações, assim como os demais países da região, especialmente o Panamá, Honduras e a República Dominicana. Mais recentemente, Granada sofreu o mesmo destino. Os mesmos Estados Unidos exportam para estes países as suas seitas, que dividem internamente o povo e ameaçam a fé católica e a fé de outras Igrejas evangélicas… ali estabelecidas.
Sei também das suas preocupações apostólicas a respeito da nossa Teologia da Libertação, das comunidades cristãs em ambientes populares, dos nossos teólogos, dos nossos encontros, publicações e outras manifestações da vitalidade da Igreja na América Latina, de outras Igrejas do Terceiro Mundo e de alguns setores da Igreja na Europa e na América do Norte. Seria ignorar a sua missão de Pastor universal fingir que não conhece e até se preocupa com todo esse movimento eclesial, especialmente quando a América Latina, especificamente, representa quase a metade dos membros da Igreja Católica.
De qualquer forma, peço desculpas, mais uma vez, por expressar uma palavra sentida a respeito da forma como são tratadas pela Cúria Romana, a nossa Teologia da Libertação e os seus teólogos, certas instituições eclesiásticas – como a própria CNBB, em certas ocasiões – iniciativas de nossas Igrejas e algumas sofridas comunidades deste Continente, bem como os seus animadores.
Diante de Deus, posso dar-lhe o testemunho dos agentes pastorais e das comunidades com as quais estabeleci contato na Nicarágua. Nunca pretenderam ser uma Igreja “paralela”. Não ignoram a Hierarquia nas suas funções legítimas e sabem que são Igreja, manifestando uma sincera vontade de permanecer nela. Por que não pensar que algumas causas deste tipo de conflitos na pastoral também podem provir da hierarquia?
Com frequência, nós, os membros da hierarquia, não reconhecemos de fato os leigos como adultos e corresponsáveis na Igreja, ou queremos impor ideologias e estilos pessoais, exigindo uniformidade ou entrincheirando-nos no centralismo.
Acabo de receber a última carta do cardeal Gantin, prefeito da Congregação para os Bispos. Nele o senhor Cardeal, entre outras admoestações, recorda-me agora a visita apostólica que recebi e recebeu a Prelazia de São Félix do Araguaia em 1977. Quero simplesmente informar ao senhor que esta visita foi provocada por denúncias ou calúnias de um irmão no episcopado; que o visitador apostólico passou apenas quatro dias em São Félix, sem visitar nenhuma comunidade, apenas concordando em conversar com pouquíssimas pessoas e ver o Arquivo da Prelazia, depois de termos insistido que o fizesse. Nem ele, nem a Nunciatura, nem a Santa Sé, me comunicaram jamais as conclusões da referida visita, embora eu o tivesse solicitado expressamente.
Quero, por fim, reafirmar, querido irmão em Cristo e Papa, a firmeza da minha comunhão e a vontade sincera de continuar com a Igreja de Jesus, a serviço do Reino. Deixo a seu critério de Pedro da nossa Igreja, tomar a decisão que julgar oportuno sobre mim, também bispo da Igreja. Não quero criar problemas desnecessários. Desejo ajudar, de forma responsável e colegiada, a levar adiante a missão evangelizadora da Igreja, particularmente aqui no Brasil e na América Latina. Porque acredito na perene atualidade do Evangelho e na presença sempre libertadora do Senhor Ressuscitado, quero acreditar também na juventude da sua Igreja.
Se o senhor considerar apropriado, pode indicar-me uma data apropriada para que eu vá visitá-lo pessoalmente. Confio na sua oração como irmão e de Pontífice. Deixo nas mãos de Maria, Mãe de Jesus, o desafio desta hora. Reitero-lhe a minha comunhão de irmão em Jesus Cristo e, reafirmo a minha condição de servidor da Igreja de Jesus.
Com sua bênção apostólica,
Pedro Casaldáliga,
Bispo de São Félix do Araguaia, MT, Brasil
Fonte: