O Concílio Vaticano II consagrou o “princípio da pastoralidade” em teologia. Este princípio, mais que diminuir o caráter dogmático e doutrinal da reflexão teológica, é sua tradução viva em cada tempo e lugar. Segundo o papa João XXIII, no discurso de abertura do Concílio, “é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo” (João XXIII, 1962). Com esse intuito foram elaboradas as Constituições, Decretos e Declarações conciliares, num esforço impressionante de “aggiornamento”/atualização de alguns dos elementos constitutivos da fé da Igreja.
As repercussões da recepção do “princípio da pastoralidade” no corpo eclesial logo se fizeram notar:
- na reforma litúrgica (Sacrosanctum Concilium);
- na compreensão da Igreja (Lumen Gentium);
- no lugar da Sagrada Escritura na vida e na reflexão cristãs (Dei Verbum);
- na postura da Igreja diante do mundo moderno (Gaudium et spes);
- no diálogo ecumênico (Unitatis redintegratio; Orientalium ecclesiarum);
- no diálogo inter-religioso (Nostra aetate);
- no missionaridade (Ad gentes);
- na visão da hierarquia (Christus dominus);
- na visão do ministério ordenado (Presbyterorum ordinis);
- na visão da vida religiosa (Perfectae caritatis);
- na visão da vocação dos leigos (Apostolicam actuositatem);
- na visão da formação dos presbíteros (Optatam totius);
- na visão e uso dos meios de comunicação (Inter mirifica);
- na concepção e importância da educação (Gravissimum educationis);
- na compreensão da liberdade religiosa (Dignitatis humanae).
O “princípio da pastoralidade” fecundou profundamente a Igreja e a teologia do Brasil no período que se seguiu ao Concílio. Prova disso foram os diversos Planos de Pastoral da CNBB, que posteriormente se tornaram as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (DGAE) e que modificaram a maneira de se realizar a evangelização e a pastoral no país, dando origem, dentre muitas iniciativas, às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), às diferentes pastorais, que renovaram a catequese, a liturgia, a leitura da Bíblia, a pastoral juvenil, o engajamento dos fiéis nos movimentos sociais de cunho sociotransformador, como as pastorais da terra, operária, indígena, negra, da criança, do menor, dentre outras, o diálogo ecumênico e inter-religioso, sem contar o trabalho de reflexão que deu origem à teologia da libertação, nascida num diálogo fecundo com toda essa criatividade pastoral.
As conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), que neste ano de 2019 celebra 40 anos, foram fundamentais nesse processo, consagrando a opção preferencial pelos pobres.
O período de recepção do Concílio no Brasil coincidiu com o do regime militar, que eliminou vários direitos políticos, perseguiu, prendeu e torturou opositores, promoveu um processo de desenvolvimento marcado pela crescente desigualdade entre ricos e pobres. O país iniciou então um processo acelerado de urbanização, que não levou, porém, à melhoria de vida das populações mais pobres.
A ação da Igreja nesse período contribuiu para o processo de redemocratização, formando lideranças que atuaram em vários movimentos sociais e políticos na busca de maior cidadania, justiça e inclusão social. Além desta perspectiva, a pastoral da Igreja no Brasil favoreceu a socialização de muitos fiéis na vida urbana, que passou a ser predominante no país a partir dos anos 70, sem contar o anúncio explícito do Evangelho, através de celebrações, da catequese, dos círculos bíblicos e das diversas pastorais que atingiram milhões de crianças, adolescentes, jovens e adultos.
A partir dos anos 80, com o início do pontificado de João Paulo II, uma mudança importante começou a dar-se na compreensão da recepção do Concílio. O período de criatividade foi pouco a pouco substituído pelo que João Batista Libanio chamou de “volta à grande disciplina”, ou seja, um retorno ao doutrinal e ao dogmático. Para isso foram determinantes os novos movimentos eclesiais de carácter internacional, muitos deles com viés pentecostal.
Na mesma época as igrejas evangélicas conheceram um grande sucesso no país com a criação de novas denominações, muitas delas, chamadas de neopentecostais, movidas pela “teologia da prosperidade”, afinadas com a emergência de um indivíduo relegado à própria sorte e desejoso de ser incluído no mercado de consumo de bens materiais e simbólicos.
As mudanças nas nomeações do episcopado nacional, ocorridas no decorrer do longo pontificado de João Paulo II, pouco a pouco começaram a impactar a presença e a ação da Igreja no país, que passou a adotar métodos e estratégias de movimentos internacionais e de igrejas evangélicas. A preocupação com o indivíduo (visto na perspectiva da pessoa) foi também inserida nas DGAE, relacionada com a comunidade e a sociedade, sem, porém, oferecer um modelo pastoral que fidelizasse os fiéis à Igreja e impactasse a sociedade, já que os católicos continuaram deixando sua Igreja.
As primeiras, já quase, duas décadas do século XXI conheceram um aprofundamento na crise da atualização do “princípio da pastoralidade” inaugurado pelo Concílio Vaticano II.
Por um lado, as mudanças culturais desencadeadas pela sociedade pós-moderna, com a desconstrução das instituições que tradicionalmente organizavam o sentido na sociedade (família, estado, escola, igrejas), fazendo emergir um pluralismo de princípio (cognitivo, cultural e religioso), dificulta qualquer tentativa de unificar o conjunto da sociedade. Por outro, o esforço, no âmbito da Igreja católica, por retomar o caminho aberto pelo Concílio, com as provocações da Conferência de Aparecida (2007) e o magistério do Papa Francisco (2013-), não tem dado conta de responder à diversidade das demandas que emergem dos distintos grupos e interesses que irromperam nas últimas décadas.
No âmbito específico da pastoral, isso se traduz em visões diferentes e até antagônicas, como as que remontam à tradição inaugurada pelas CEBs e pelas pastorais nascidas sob o influxo da teologia da libertação, as que se inspiram nos diversos movimentos internacionais, muitas de caráter pentecostal, e as que, mais recentemente, de caráter fundamentalista e neotradicionalista, advogam um retorno ao modelo pré-conciliar, que atraem um número importante de jovens, que atuam de modo incisivo nas novas mídias.
Como pensar hoje a pastoral?
Motivados pela comemoração dos 40 anos da Conferência de Puebla, que buscou refletir sobre a Evangelização no presente e no futuro da América Latina, o VII Colóquio de Teologia e Pastoral, organizado pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, o Instituto Santo Tomás de Aquino, o Observatório da Evangelização PUC Minas, a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e o Centro Loyola de Fé e Cultura, através do grupo de pesquisa Teologia e Pastoral, vai debruçar-se sobre esta questão a partir do tema Caminhos da pastoral hoje.
Texto elaborado pela comissão organizadora do VII Colóquio de Teologia e Pastoral. Os grifos são nossos.
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