No dia 25 de janeiro de 2020 se celebrou em Brumadinho-MG um ato de recordação do trágico desastre criminoso do rompimento da barreira da Vale S.A. Ferem-nos os olhos e rompem os nossos corações aquelas imagens mostradas pela TV: a liberação de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, o sepultamento sob ondas de lama e morte de 272 pessoas, os danos à economia de milhares de famílias camponeses, indígenas e quilombolas, os impactos químicos dos metais que vão se sedimentar no fundo dos rios, a contaminação dos ecossistemas, da flora, da fauna e das matas ciliares dos rios. A velocidade da onda assassina era de 80 km por hora. È o maior desastre de mineradoras do mundo, com mais vítimas do que aquele de Stava na Itáli em 1985 que dizimou 267 pessoas. Aqui foram 272.
A celebração foi minuciosamente preparada, com uma grande romaria, acorrendo pessoas de todas as partes do Brasil e de diversas igrejas.O lema era:”Porque a vida Vale mais”. Ou:”A vida Vale mais do que o lucro”. O momento talvez mais comovedor ocorreu na “mística” feita pelos parentes das vítimas, com testemunhos, poesias e cânticos e a soltura de 272 balões (número das vítimas) com a inscriação:”Dói demais o jeito que vocês foram embora”. Eles subiram para o alto, rumo ao céu, onde as vítimas, chamadas de “nossas jóias”, estarão no seio de Deus Pai e Mãe de infinita bondade.
Para todas as instâncias até oficiais houve descaso culposo da Vale, mesmo ciente na insegurança da barragem e dos riscos para as populações circunvizinhas. Por isso não ocorreu um acidente mas um tragédiacriminosa cujos responsáveis estão sendo indiciados por vários tipos de crime.
Estabeleceu-se, desde então, um confronto entre duas leituras/narrativas: a da mineradora Vale que insiste no fato do acidente e de sua relutância em reparar adequadamente os danos e de fazer as compensações necessárias aos parentes dos vitimados. Orgulhosamente se auto-apresenta “como uma mineradora global que transforma recursos naturais em prosperidade e desenvolvimento sustentável. Com sede no Brasil e atuação em cerca de 30 países, a empresa emprega aproximadamente cerca de 125 mil empregados, entre próprios e terceiros permanentes”. Esquece que em 2012 foi eleita pelo Public Eye People’s” a pior empresa do mundo, o “Oscar da Vergonha”. Dentro da lógica do capital, visa apenas o lucro mesmo à custa de vidas humanas. Paranovembro de 2019 estavam previstos (mas ainda sub judice) 7.25 bilhões de reais como dividendos para os acionistas. Mas nas negociações com os parentes dasvítimas e face aos danos a toda uma região, se mostra dura e chantageia a população, caso não aderir a suas propostas: não haverá empregos e prosperidade para a região. É um engodo, pois, pela nefasta Lei Kandir a Vale não paga nenhum imposto sobre a exportação e apenas 2% como Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais. Portanto,o lucro principal não vai para o Brasil e para a população.
A outra leitura/narrativa é levada avante pela Arquidiocese, especialmente pelo bispo local Dom Vicente Ferreira e por suas duas exímiasauxiliares, Marina Oliveira e Marcela Rodrigues que largaram seus afazeres e estudos para liderarem as lições a serem tiradas do fato criminoso. Trata-se de mostrar para a população que este modo de organizar a mineração e buscar o lucro é própria do sistema do capital. Ele produz uma dupla injustiça: uma, social, explorando a mão de obra e outra, ecológica, devastando a natureza circundante. Ele se mostra inimigo da vida da natureza e da vida humana, como bem o mostra o Papa Francisco em sua encíclica de ecologia integral”sobre o cuidado da Casa Comum”. As mudanças devem começar com cada um, como cuidar da casa, da água, do lixo,de cada árvore e dos animais. Importa não ficar refém de uma empresa que apenas promete emprego mas a preço de contaminar a atmosfera e afetar a vida especialmente das crianças. Devemos ser inventivos e buscarformas alternativas de garantir a vida de todos, mais sã e melhor compartilhada.
O bispo Dom Vicente usa suas habilidades pessoais para suscitar este novo nível de consciência na população, pois é poeta, cantador e tocador de violão. Encontra dura oposição de católicos carismáticos e outros apoiados pela Vale, que não veem nisso o cumprimento do mandato divino de “cuidar e proteger”o jardim do Éden, mas como mera política. Assim se mostram sem empatia para com os parentes das vítimas. Conservadores,querem reduzir à fé apenas ao espaço do religioso, sem ter aprendido a lição do Concílio Vaticano II que fazer política “e o mais alto ato de amor”, não política partidária, mas política como bem comum, como solidariedade com aqueles que mais sofrem e política como defesa dos direitos de cada pessoa humana e da natureza. Sua fé é estéril, pois não leva à salvação. O que salva não são prédicas mas práticas, de amor, de compaixão e de solidariedade como vem sendo feitas pelo “Comité de Apoio e Solidariedade aos Atingidos pelos Crimes da Vale” e pela pastoral de Dom Vicente Ferreira e de seus auxiliares.
Nós que lá estivemos nas celebrações, damos estetestemunho. E o nosso testemunho é verdadeiro.
Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu “Como cuidar da Casa Comum”, Vozes 2018.