Muitos governantes reagiram tarde à chegada do coronavírus. Passado o tempo, a maioria deles, forçados pelas terríveis consequências de seus erros, tem tentado, nem sempre com sucesso, enfrentar os graves efeitos devastadores da pandemia. Se existe alguém que não apenas não se esforçou, mas insistiu em menosprezar as consequências do vírus e em se opor a todos, esse foi o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.
Em uma carta enviada em 28 de março passado ao Presidente do Comitê Pan-Americano de Juízas e Juízes pelos Direitos Sociais, o Dr. Roberto Andrés Gallardo, o papa Francisco expressou sua preocupação com “o crescimento, em progressão geométrica, da pandemia”. Nessas circunstâncias, o Santo Padre elogiou “a reação de tantas pessoas, médicos, enfermeiras, enfermeiros, voluntários, religiosos, padres, arriscando suas vidas para curar e defender pessoas saudáveis do contágio”.
O papa Francisco, em suas palavras, reconheceu que “alguns governos adotaram medidas exemplares com prioridades bem definidas para defender a população”, algo que ele entende que muitas pessoas não gostam muito nos primeiros momentos, mas que mais tarde elas assumem bem, “a longo prazo, a maioria das pessoas as aceita e se move com uma atitude positiva”. O bispo de Roma é claro sobre isso, importa defender e preocupar-se com “o povo primeiro”, depois a economia, mesmo que isso trata graves consequências, ou seja, “um desastre econômico”.
Para o papa Francisco o mais triste e trágico é quando alguém opta ao contrário, primeiro procura salvar a economia e, com isso, colocando a vida do povo diante de grave risco. Ele define esta atitude como “um genocídio viral”, pois “isso levaria a morte muitas pessoas”. No entanto, até hoje, essa tem sido a posição defendida pelo presidente brasileiro. Embora também deva ser dito que ele tem encontrado forte oposição de grande parte da população, além de praticamente todos os governadores estaduais, a grande maioria de prefeitos e bispos, que, sem nomeá-lo, estão falando alto e claro.
Em recente entrevista, o arcebispo de Manaus, depois de aprovar que “os governadores e prefeitos, cientes da pandemia, orientaram a sociedade para ficar em casa”, afirmou que “infelizmente, temos autoridades que subestimam a seriedade do momento”. Afirmou que, do seu ponto de vista, “os pobres, os cidadãos fragilizados, não contam”, enfatizando que esses governantes “sentem-se tão seguros que desafiam a inteligência humana e o bom senso”. São políticos que, segundo dom Leonardo Steiner, colocam a economia como algo maior, o que levou à pergunta: “A economia existe para o homem ou é o homem que deve servir a economia?”
Na mesma linha, o Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e o Arcebispo de Belo Horizonte também falou. Em uma homilia, em 25 de março, dom Walmor Oliveira de Azevedo disse, de forma contundente, que “rejeitamos, criticamos fortemente, as autoridades do executivo nacional quando minimizam o que deve ser feito, com responsabilidade, por todos nós. A pandemia do Covid-19 não pode se juntar a mais uma pandemia de irresponsabilidade, inconsequência e falta de sentido humanístico e respeitoso para com a dignidade humana”.
Suas palavras fortes foram provocadas pelas atitudes de um presidente determinado a realizar o que muitos definem como um show dos horrores. Ele chamou o coronavírus de “gripezinha” ou “resfriadinho” e emitiu decretos para impedir as ações de governadores e prefeitos, ou para reabrir igrejas como bens de interesse essencial. Também saiu para a rua para cumprimentar as pessoas e conversar com elas, havendo inclusive a suspeita de que seu teste contra Covid-19 tenha dado positivo, algo que ele, ao se recusar a mostrar o resultado, não demonstrou o contraditório. O que se sabe é que boa parte de sua comitiva que viajou para os EUA, no início do mês de marco, apresentou resultados positivos.
O mesmo pode ser dito de seu apoio às carreatas contra o “ficar em casa”, nas quais empresários e comerciantes pedem a reabertura de seus negócios. Estes em suas chamadas para a manifestação, deixam claro que ninguém deve descer de seus carros, geralmente veículos importados. Esta atitude das elites econômicas coloca em dúvida se eles querem mesmo sair para trabalhar ou se apenas querem que seus funcionários sejam obrigados a fazê-lo. A mesma coisa pode ser dita da campanha institucional, proibida pela justiça, para retornar ao trabalho. Na mesma linha, está a sua tentativa de barrar a entrevista coletiva do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, considerado pela maioria como o único com certo bom senso entre os membros do governo, uma vez que sua posição é a favor do isolamento social. Nas últimas horas, o presidente vê como a maioria dos membros do governo, incluindo aqueles que seguiram seus slogans o tempo todo, estão dando as costas para ele.
Tudo isso e muito mais, já que seriam necessárias muitas páginas para narrar suas façanhas nas últimas semanas, é o que pode nos levar a pensar se Bolsonaro pode ser considerado um genocida viral. Em sua coluna no Dom Total, nesta segunda-feira, 30 de março, Afonso Barroso definiu o presidente brasileiro como alguém “esperto como o diabo. Muito ao contrário, é frio, calculista, raposa eleitoreira”. Segundo o jornalista, o que ele pretende é “manter a confiança e a fidelidade cega dos seus seguidores, que somam nada menos de 30 por cento do eleitorado, como mostram as pesquisas”. Ele continua dizendo que “o presidente sabe que mortes de gente não tiram votos tanto quanto o falecimento da economia”, uma análise que reforçaria a visão do papa Francisco.
Segundo Barroso, Bolsonaro acha que “é preciso manter as atividades produtivas ao invés de fechar o comércio e inibir a circulação de mercadorias, o que resultaria em caos econômico e desemprego em massa”. De fato, o presidente pensa que “os riscos de morrer pela Covid-19 estão restritos às pessoas idosas, grande parte delas não mais obrigadas a votar. Os jovens, ao contrário, ele garante, estão imunes aos efeitos do vírus e seguirão firmes e fortes, preparados para sufragar o nome e número dele nas próximas eleições presidenciais. O que não pode é deixar que ocorra uma recessão brutal, o que resultará na perda da sua popularidade e, em consequência, dos votos que considera cativos como candidato em 2022”.
Essa análise cai pelo chão quando gente vê que no Brasil, entre os falecidos, há um bom número de pessoas que não atingiram os 50 anos. Sem ir mais longe, no estado do Amazonas, onde moro, há oficialmente dois mortos, um com 49 e outro com 43 anos. Como o presidente poderá continuar apoiando seu argumento de que o que o jovem tem é que trabalhar, produzir, fazer a economia girar e assegurar o seu emprego?
Em sua carta a Roberto Andrés Gallardo, o papa Francisco diz estar ciente das consequências econômicas que estão por vir e que, para isso, já se encontrou com o Dicastério do desenvolvimento humano integral “para refletir sobre o agora e o depois”, pois o Santo Padre considera que “a preparação para as consequências é importante”. Ele se preocupa com a “fome, especialmente para pessoas sem trabalho permanente (gangues, etc.), violência, aparência de usurários (que são a verdadeira praga do futuro social, criminosos desumanizados) etc.”, uma preocupação que muitos governos ao redor do mundo compartilham.
Não é sobre escolher uma coisa ou outra, e sim fazer primeiro uma coisa e depois a outra. A questão fundamental é o que colocamos em primeiro lugar, a vida de todos ou a economia de alguns. A maneira como os outros nos veem depende da resposta, incluindo podermos ser chamados de “genocidas virais”. Vivemos um tempo de grande incerteza, aqueles que são cristãos podem dizer que essa Quaresma será longa, mas ao mesmo tempo que esperamos que um dia possamos celebrar a Páscoa, a festa da vida para todos. Ela virá mais cedo se conseguirmos viver a solidariedade e praticar a caridade, que, não devemos esquecer, é uma prática necessária para quem quer viver uma boa Quaresma.
Sobre o autor:
Luis Miguel Modino – Padre diocesano de Madri, missionário fidei donum na Amazônia, residindo atualmente em Manaus – AM. Faz parte da Equipe de Comunicação da REPAM. Correspondente no Brasil de Religión Digital e colaborador do Observatório da Evangelização e em diferentes sites e revistas.