Evangelizar implicar um despertar da consciência da própria dignidade e da importância do caminhar em busca da vida plena. Diante das graves ameaças à dignidade humana, qual o papel dos mitos em nossa caminhada de resistência?
“Os mitos nos inspiram grandes lições, especialmente nos dias atuais quando forças poderosas, nacionais e internacionais, nos querem submeter, limitar e até tirar nossa liberdade. Devemos ser como os guaicuru: saber defender o maior dom que temos, a liberdade. Devemos resistir, nos indignar e nos rebelar. Só assim fazemos o nosso próprio caminho como nação soberana e altiva. E jamais aceitaremos que nos imponham o medo e nem que nos roubem a liberdade”.
O autor nos apresenta uma significativa e provocante reflexão para estes tempos de travessia, tempos sombrios e cheios de ameaça e medo, a partir da grande sabedoria mítica dos Guaicuru, índigenas do Mato Grosso, cuja cultura forjou grande consciência do valor da liberdade humana. Confira:
As vantagens da imperfeição
Em tempos em risco de nossa liberdade, é importante pensarmos em seu valor. Nascemos completos, mas imperfeitos. Não possuímos nenhum órgão especializado, como a maioria dos animais. Para sobreviver, temos que trabalhar e intervir na natureza. Os mitos esclarecem esta situação.
Os indígenas guaicuru, do Mato Grosso do Sul, perguntaram-se o porquê da imperfeição e do alto significado da liberdade. Demoraram longo tempo para chegar a uma resposta. A explicação veio pelo seguinte mito, portador de verdade.
O Grande Espírito criou todos os seres. Colocou grande cuidado na criação dos humanos. Cada grupo recebeu uma habilidade especial para sobreviver sem maiores dificuldades. A alguns deu a arte de cultivar a mandioca e o algodão. Assim podiam se alimentar e se vestir. A outros deu a habilidade de fazer canoas leves e o timbó. Desta forma podiam se locomover rapidamente e pescar.
Assim fez com todo os grupos humanos na medida em que se distribuíam pelo mundo. Mas com os Guaicuru não aconteceu assim. Quando quiseram sair para as vastas terras, o Grande Espírito não lhe conferiu nenhuma habilidade. Esperaram, suplicando, por muito tempo e nada lhes foi comunicado. Mesmo assim resolveram partir. Sentiram logo muita dificuldade em sobreviver. Resolveram procurar intermediários do Grande Espírito para receber também uma habilidade.
Primeiro, dirigiram-se ao vento, sempre soprando e rápido: “Tio vento, tu que sopras pelas campinas, sacodes as matas e passas por cima das montanhas, venha-nos socorrer”. Mas o vento que sacudiu as folhas, sequer ouviu o pedido dos guaicuru. Em seguida, se voltaram para o relâmpago que estremece toda a terra. “Tio relâmpago, você que é parecido com o Grande Espírito, ajude-nos”. Mas o relâmpago passou tão rápido que sequer escutou o pedido deles.
Assim os guaicuru suplicaram às árvores mais altas, aos cumes das montanhas, às águas correntes dos rios, sempre suplicando: “Meus irmãos, intercedam por nós junto ao Grande Espírito para não morrermos de fome”. Mas nada acontecia.
Meio desesperados vagavam por várias paragens. Até que pararam debaixo do ninho de um gavião-real. Este ouvindo seus lamentos resolveu intervir e disse: “Vocês, guaicuru, estão todos errados e são uns grandes bobos”. “Como assim?”, responderam juntos, “O Grande Espírito se esqueceu de nós. Você que é feliz, recebeu o dom de um olhar penetrante e perceber um ratinho na boca da toca e caçá-lo”.
“Vocês não entenderam nada da lição do Grande Espírito”, retrucou o gavião-real. “A habilidade que ele lhes deu está acima de todas as outras. Ele vos deu a liberdade. Com ela vocês podem fazer o que desejarem fazer.”
Os guaicuru ficaram perplexos e cheios de curiosidade. Pediram ao gavião-real que lhes explicasse melhor esta curiosa habilidade. Ele, cheio de garbo, lhes falou: “Vocês podem caçar, pescar, construir malocas, fazer belas flechas, pintar os corpos, os potes, viajar para outros lugares e até decidirem o que vocês querem de bom para vocês e para a própria natureza”.
Os guaicuru se encheram de alegria e diziam uns aos outros: “Que bobos nós fomos, pois nunca discutimos juntos a vantagem de sermos imperfeitos. O Grande Espírito nunca se esqueceu de nós. Deu-nos a melhor habilidade, de não estarmos presos a nada, mas de podermos inventar coisas novas, sabendo das vantagens de nossa imperfeição”.
O cacique guaicuru perguntou ao gavião-real: “Posso experimentar a liberdade?”. Ele respondeu: “Pode”. O cacique tomou uma flecha e derrubou do alto de uma jaqueira uma grande fruta de jaca. E todos se deliciaram.
Desde aquele momento, os guaicuru exerceram a liberdade. Tornaram-se grandes cavaleiros e nunca puderam ser submetidos por nenhum outro povo. A liberdade lhes inspirava novas formas de se defender e garantir a melhor habilidade dada pelo Grande Espírito.
Os mitos nos inspiram grandes lições, especialmente nos dias atuais quando forças poderosas, nacionais e internacionais, nos querem submeter, limitar e até tirar nossa liberdade. Devemos ser como os guaicuru: saber defender o maior dom que temos, a liberdade. Devemos resistir, nos indignar e nos rebelar. Só assim fazemos o nosso próprio caminho como nação soberana e altiva. E jamais aceitaremos que nos imponham o medo e nem que nos roubem a liberdade.
Sobre o autor:
Leonardo Boff é teólogo, pesquisador, professor emérito universitário, escritor renomado, conferencista e assessor das CEBs e dos movimentos populares. Dentre suas muitas obras uma merece destaque sobre esta temática refletida neste artigo: Casamento do Céu com a Terra: contos dos povos indígenas brasileiros, Ed. Mar de Ideias, Rio de Janeiro, 2014.