O perdão parece, em nossos tempos, ser um ato muito distante da realidade de muitos. Em uma sociedade competitiva e individualista, o caminho mais frequente que as pessoas escolhem é aquele da reciprocidade, que muito se aproxima ao da vingança. Nesse trajeto, há sempre um acréscimo gradual de ódio, violência e discórdia.
No intuito de frear esse círculo vicioso e propor um novo rumo, surgiram as Escolas de Perdão e Reconciliação (EsPeRe).
As “EsPeRe” tiveram inspiração inicial na experiência do Padre Leonel Narváez, Doutor em Sociologia pela Universidade de Cambridge, a partir de sua pesquisa acerca da prevenção da violência. Como resultado, foi criada a “Fundación para la Reconciliación”, com sede em Bogotá/Colômbia. Ao longo dos anos foi disseminada por diversos países. Padre Leonel viu a necessidade do tema devido às feridas expostas pelo conflito generalizado na sociedade colombiana das FARCs e Paramilitares. O resultado de décadas de violência foi o ressentimento, o ódio, a discórdia e a dor. Nesses 20 anos de trabalho, as “EsPeRe” atingiram 2.200.000 pessoas em 20 países. Elas receberam vários prêmios, incluindo o Prêmio da UNESCO de 2006 para a Educação para a Paz.
A prática do perdão e reconciliação, no horizonte das “EsPeRe”, é tratada sob viés sociopolítico, inspirada na fala do sul-africano Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz: “Sem perdão não há futuro”. Com as oficinas propostas, são criados espaços de encontro, acolhimento e humanidade.
Na cidade de Belo Horizonte, as “EsPeRe” veem se desenvolvendo mediante trabalho voluntário, a partir da mesma metodologia, orientação e objetivo geral da Escola original. Maria Luiza Brugger, coordenadora do núcleo da “EsPeRe” em BH, afirma:
“A motivação inicial de criação do projeto em BH foi a partir da constatação de que a violência era um problema endêmico em nossa sociedade. Em 2002, o Padre Leonel Narváez esteve em Belo Horizonte a convite do Centro Loyola para expor a proposta da EsPeRe e foi então que vi a oportunidade de inserir esse belíssimo projeto em nosso país, que também possui muito conflito e memórias a serem apaziguadas. A proposta do Padre Leonel Narváez se traduz na promoção da cultura política de Perdão e reconciliação para o desenvolvimento do capital social. Fundamenta-se na reflexão e compreensão do perdão e reconciliação como práticas de prevenção à violência, de relações intrapessoal, interpessoal e de legado social. Práticas que são assumidas a partir do esquema metodológico nas oficinas de formação no âmbito: cognitivo, emocional, comportamental, espiritual, histórico, ético e comunicativo.”
Interessante notar que, mesmo se tratando de uma metodologia, há uma flexibilidade e um olhar atento às demandas existenciais de cada grupo, interativas através de exposições teóricas, reflexões individuais, rodas de conversa, dança, música, artes plásticas!
“Os participantes são pessoas que decidem viver uma forte experiência de cura de feridas – raiva, ressentimento, dor, vingança, tristeza – causadas pela violência e pelos conflitos do cotidiano. O olhar que a EsPeRe tem de saúde mental refere-se não só a um indivíduo saudável (na ausência de traumas) mas a um indivíduo com relações que contribuem para a geração de equidade, justiça, cuidado, empatia, compaixão e validação permanente. Os processos de perdão e reconciliação têm efeitos diretos na melhoria do bem-estar físico e psicológico”, afirma Maria Luiza.
Dalka Capanema, membro das “EsPeRe” em BH desde 2007, acrescenta: “No ano de 2007 senti o chamado a fazer parte desse importante projeto. Foram duas as motivações iniciais: a primeira se deu a partir da minha experiência de trabalho no campo da Justiça. Em anos que trabalhei no TJMG, na assessoria jurídica de desembargadores, (2ª instância), sempre pude perceber na prática o limite do Direito. Os conflitos prevaleciam devido ao hiato existente entre a abstração da lei e sua aplicabilidade. O limite da lei e da punição esbarra na realidade social. Dessa forma, via a necessidade de pensar a Justiça a partir de um novo paradigma, qual seja o paradigma da Justiça Restaurativa, em cujos fundamentos estão o perdão e a reconciliação, entendidos como virtudes sociopolíticas. Somente por esse caminho alcançaríamos uma ´cura da memória´ e poderíamos ressignificar histórias”. Nessa direção, a EsPeRe BH já ofereceu cursos para juízes e promotores, no intuito de mostrar que outro caminho da Justiça é possível.
Dalka diz ainda que, no seu caso, a segunda motivação foi ancorada em experiência pessoal do perdão, através da filosofia e metodologia “EsPeRe”. Nessa formação, segundo ela, vivencia-se o perdão genuíno, num processo que se inicia com o reconhecimento e a expressão de sentimentos legítimos causados pelas ofensas sofridas (como, por ex., dor, medo, tristeza). Reprimidos, esses sentimentos geram raiva, ressentimento, mágoa e desejo de vingança crônicos, fazendo do reprimido uma pessoa violenta justificada. Mas, se acolhidos, trazidos à luz da consciência e trabalhados, permitem a elaboração do luto, a autorresponsabilidade pelo que se sente e o consequente deslocamento, do lugar de vítima para o da autonomia, resgatando-se a segurança em si mesmo, a sociabilidade e o sentido da vida. Esse giro é que possibilita a ressignificação dos fatos ofensivos, mediante um novo olhar, mais empático, compassivo e misericordioso sobre eles e, principalmente, sobre o ofensor. Assim é que se pode optar pelo perdão, mediante reconstrução da humanidade do ofensor em conexão com a comum humanidade de quem perdoa. Trata-se de um processo libertador.
A “EsPeRe” entende que é necessário instaurar uma cultura da paz, por meio de uma proposta de justiça restaurativa. Isso só é possível com a criação de espaços de diálogo, cuidado, teorização, vivência, partilha, compreensão e construção, onde os participantes, sob a orientação de facilitadores, se envolvem em dinâmicas e reflexões e aprendem a superar conflitos íntimos, curar feridas e memórias desagradáveis (raiva, rancor, ódio, desejo de vingança) causados pela violência e demais desafios da convivência humana.
Segundo Dalka, o primeiro passo é reconhecer, tomar a consciência de que somos violentos. É preciso sair do dualismo “bem e mal” e sim entender verdadeiramente que estamos inseridos em uma cultura violenta. Assim, é necessário fazer uma “viagem interior”, entrando em contato com a dor.
Maria Luiza complementa dizendo que através dessa viagem interior, a perspectiva é resgatar o que nos desestrutura diante uma violência, os chamados 3S: Segurança em si, Sentido da vida e Sociabilidade.
Em uma perspectiva da construção da paz entre a vítima e o ofensor são apresentados três níveis de reconciliação: o de coexistência, o de convivência e o de comunhão. Percebemos que as pessoas nem sempre estão no momento para alcançar o último nível da reconciliação, o da comunhão, sendo um primeiro passo a reconciliação no nível da coexistência.
O caminho percorrido pelo participante das oficinas “EsPeRe” na dimensão da reconciliação é pela construção da Verdade – “A verdade não é minha, nem sua: é nossa” (Sto Agostinho) – pela Justiça Restaurativa, tendo como fundo a Comunicação Não Violenta, a Ética do cuidado, as relações de poder e desconstrução de práticas punitivas.
Ao final das oficinas o participante é levado à importância de fazer a memória do processo. Se a ofensa gera “memória ingrata”, o Perdão gera “memória agradável”. Se o relacionamento com o ofensor gera narrativas destrutivas, a Reconciliação gera “narrativas ou comunicação construtiva”. Tudo isso produz novas ressignificações da vida ou atitudes éticas mais elevadas que são livres da escravidão do passado e projetam um novo futuro. Em conjunto, produz alegria profunda e progresso imprevisto em vários níveis de existência.
Por fim, a espiritualidade por trás da “EsPeRe” está em sintonia com a do Papa Francisco, que diz: “Deus está presente no mais íntimo das criaturas, sua presença divina garante a permanência e o desenvolvimento de cada ser, é a continuação da ação criadora. O Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo novo” (LS 80). E na carta Apostólica Misericordia et Misera onde o perdão suscita alegria, porque o coração se abre à esperança duma vida nova.
Dalka conclui: “A proposta da ‘EsPeRe’ passa por despertar a humanidade dentro de nós e as pessoas para a humanidade”.
Saiba mais sobre as EsPeRe: https://esperebh.wordpress.com/apresentacao/
/*! elementor – v3.5.6 – 03-03-2022 */.elementor-widget-image{text-align:center}.elementor-widget-image a{display:inline-block;width:var(–img-width)}.elementor-widget-image a img{width:100%}.elementor-widget-image a img[src$=”.svg”]{width:48px}.elementor-widget-image img{vertical-align:middle;display:inline-block;width:var(–img-width)}
René Dentz
É católico leigo, professor do departamento de Filosofia e do curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 7 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.
Eu não conhecia a escola, Foi indicada pela minha medica que fez alguns cursos com voces. Achei bem atractivo e oportuno. Quero participara das 10 oficinas.