As CEBs e a grave situação do país

“Envolver-se na política é uma obrigação para um cristão. Nós, cristãos, não podemos nos fazer de Pilatos e lavar as mãos. Não podemos! Devemos nos envolver na política porque a política é uma das formas mais elevadas da caridade, porque ela procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. A política está muito suja, mas eu me pergunto: está suja por quê? Porque os cristãos não se envolveram nela com espírito evangélico? É uma pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros. Mas eu, o que eu faço? Isto é um dever! Trabalhar pelo bem comum é um dever do cristão.”

Papa Francisco

Quem poderia imaginar que a força dos que detém o poder econômico no Brasil, depois de quatro eleições vitoriosas do Partido dos Trabalhadores, daria uma guinada conservadora tão gigantesca e, o que é pior, com graves ameaças para os mais pobres? Como as Comunidades Eclesiais de Base, sempre tão irmanadas com os movimentos populares e a luta dos mais pobres por inclusão social e reconhecimento de sua dignidade humana, estão reagindo diante dessa trágica realidade?

Estão rasgando a nossa Constituição cidadã

A Constituição de 1988 foi um marco na caminhada política de nosso país. Depois da conquista do fim da ditadura, com muita pressão popular, luta e sangue derramado, os brasileiros e brasileiras conseguiram consolidar uma Lei Magna, de fato, democrática e cidadã. Ela não só garantia a igual dignidade de todos os brasileiros, mas também, dentre outras conquistas, assegurava uma série de direitos sociais fundamentais para o bem viver.

A Igreja dos pobres, católica e evangélica, de mãos dadas com os diversos movimentos populares e outras instituições democráticas, participou ativamente desse feito heroico de nossa jovem democracia. Esteve ativamente presente, de modo especial com as pastorais sociais e suas lideranças em associações, ligas, coletivos, cooperativas, partidos políticos, nas diversas caminhadas, manifestações, greves, abaixo-assinados, em sindicatos, grupos de mulheres, de defesa dos direitos humanos, de apoio aos povos originários e tradicionais quilombolas, pelo acesso de todos a moradia, terra, saúde, educação, trabalho, transporte, lazer, dentre outros.

Nas três décadas seguintes à aprovação da Constituição, aconteceram avanços significativos, dentre elas merece destaque: o crescimento da democratização do país, maior cidadania das mulheres, maior consciência dos direitos humanos e da questão ecológica, conquistas na concretização do acesso dos mais pobres aos direitos sociais à saúde, educação, moradia, dignidade no trabalho etc. e das minorias indígenas, quilombolas, grupos LGBTs, consolidação de movimentos populares e de ONGs comprometidas com a defesa da vida e da Casa comum. Mas aconteceram também muitos retrocessos, tais como alianças espúrias do governo do Partido dos Trabalhadores que o fez afastar-se de suas bases e trocar o projeto de “um outro país possível” pela sua busca de perpetuar-se no poder, com grave envolvimento em esquemas de corrupção; descaso com o investimento na politização dos mais pobres e das novas lideranças sociais; redução das conquistas cidadãs a uma mera inclusão no consumo; não concretização das reformas necessárias: tributária com maior taxação para os mais ricos, agrária com assentamento e políticas de inclusão dos sem-terra, dos “Meios de Comunicação Social” com ampla democratização, dentre outras.

Tudo isso fez alastrar uma onda de despolitização ou mesmo de aversão política de parte significativa da população que passou a não acreditar mais na utopia de uma nova sociedade pautada pela justiça, pela inclusão social de todos e pela cultura da paz.

Com o que está acontecendo, sem a mobilização popular, as coisas tendem a piorar: sem qualquer envolvimento da população em discussões o (des)governo Temer está promovendo (anti)reformas que rasgam a nossa Constituição cidadã. A título de exemplo, a (anti)reforma trabalhista é perversa para os trabalhadores; o mesmo pode ser dito da (anti-reforma da previdência) que praticamente destrói o direito à seguridade social dos mais pobres; a (anti)reforma da educação tem como alvo maior impedir a formação da consciência crítica dos educandos.

Cartaz do 14 atualizado

Como, então, as CEBs estão enfrentando essa trágica situação?

Uma das características mais marcantes da caminhada da CEBs, esse jeito novo de ser Igreja, é a consciência da dimensão social da evangelização. Dito de outra maneira, trata-se de perceber que não dá para acolher o Deus da vida, crer no projeto do Reino de Deus revelado na prática libertadora de Jesus e ficar indiferente diante das inúmeras situações que ameaçam a vida. Assim, os cristãos iam descobrindo o compromisso profético da fé cristã libertadora, a partir do cultivo, em pequenos grupos, da espiritualidade que brotava da leitura popular da Palavra de Deus e da discussão dos diversos problemas da vida. A Bíblia ilumina a caminhada da vida, a partir da compreensão da unidade “fé cristã-vida em sociedade”, “fé cristã-ação política em defesa do bem comum”. Tudo isso é possível quando constrói-se uma estrutura eclesial laical, participativa, formativa, ecumênica e aberta aos diversos grupos de defesa da vida e movimentos populares. Os membros das CEBs, geralmente, tornam-se cidadãos mais críticos, politizados e comprometidos com a defesa da vida e com a participação na construção diária da nova sociedade marcada pelos valores do Evangelho.

É preciso reconhecer que atravessamos tempos difíceis. Sem querer ser simplista, podemos perceber duas grandes posturas extremas e contrárias, e entre elas muitas outras com diversas nuances mais próximas da primeira ou da segunda.

Muitos membros desanimaram completamente com a caminhada diante dos desafios na vida urbana e das contradições humanas presentes na Igreja, nos movimentos populares e, sobretudo, na política. Formam o grupo mais numeroso. Perderam o chão, a motivação e a chama interior que os sustentavam na caminhada. Entre eles, há os que procuram se refugiam numa religião mais intimista.

Outros, porém, em menor número, formam o grupo dos que continuam teimosos, andando na contramão. Proféticos testemunham a práxis da justiça e a alegria do Reino e denunciam toda forma de violência e exploração; cultivam esperança contra todo desânimo; procuram ler e discernir os sinais do tempo; celebrar pequenas conquistas; cultivar a memória da caminhada dos profetas da Bíblia e da nossa América Latina. Esses continuam acreditando na retomada, na ressignificação da caminhada já trilhada, insistindo nos grupos de base, no encantamento das juventudes e no cuidado diário, pessoal e coletivo, com a espiritualidade libertadora do Reino. Em relação à política, continuam acreditando que não há outro caminho para a transformação da realidade social: recusam-se a ceder diante da ilusão do capitalismo neoliberal e acreditam que os que formam a esquerda vão abrir os olhos. Então, aprenderão com as desigualdades perversas e com os próprios erros cometidos e refletidos, que o socialismo democrático é o melhor caminho possível, mas que exige vigilância contínua de todos para não ceder diante do poder dos Impérios e nem voltar a cometer os mesmos erros do passado.

Que venha o 14º Intereclesial das CEBs para animar e revigora a caminhada. Para terminar, uma pergunta: e você, companheiro/a leitor/a, como se situa na caminhada?

Edward Guimarães é mineiro, casado com Andréa e pai de Maria Fernanda. É teólogo leigo, discípulo de Jesus, cultivador da utopia do Reino. É secretário executivo do Observatório da Evangelização. Em sua missão, atua como professor, formador de catequistas e assessor das CEBs e de outros grupos interessados em participar da construção de “um outro mundo possível”.

2 Comentários

  1. Muito bem.
    Somente uma correção, a Constituição Cidadã é de 1988 e não 1989.

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