Após a catástrofe, qual é a boa notícia?, com a palavra a teóloga Maria Clara Bingemer

Maria Clara Lucchetti Bingemer, renomada teóloga e professora da PUC-Rio, ofereceu aos participantes de uma reunião promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no dia 25 de novembro de 2020, na qual participaram bispos, assessores das comissões episcopais e representantes de pastorais e organismos vinculados à CNBB, pistas interessantes para “um projeto de evangelização pós-pandemia, que inclua o aprendizado feito e projete para um futuro próximo o horizonte da missão que é pedida pelo Senhor a sua Igreja“. Confira o texto da teóloga brasileira:

Foto: Disponível no site da CNBB.

Após a catástrofe, qual é a boa notícia?

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Estamos aqui para refletir tendo como horizonte o tempo que se seguirá à pandemia.  Mas estamos bem conscientes que ainda nos encontramos dentro da mesma. A pandemia não acabou e vivemos nesse momento todo um conjunto de perplexidades com seu aparente recrudescimento que leva a falarem em segunda onda e toda a disputa – por vezes imoral – sobre vacinas que muitas vezes contraria o que o papa Francisco tem repetido, que se trata de um bem comum.

Em todo caso, já temos uma suficiente experiência de estar imersos nesta pandemia, lutando contra um vírus de 5 mm que nos pôs de joelhos.  Uma humanidade que ainda guardava muito da arrogância da modernidade e da razão potente, que pensava em robótica, na transhumanidade e na pós-humanidade, de repente se vê varrida e impotente por um minúsculo vírus.

Aqui levantarei alguns pontos que me parecem pistas interessantes para eventualmente incluir em um projeto de evangelização pós-pandemia, que inclua o aprendizado feito e projete para um futuro próximo o horizonte da missão que é pedida pelo Senhor a sua Igreja.

1. Retomar o luto com olhar pascal

A primeira coisa me parece a evidencia de que não podemos fazer de conta que nada ocorreu e tudo voltará a ser como ante. Houve luto demais, dor demais, sofrimento em excesso que não pode ser ignorado, mas deve ser escutado, refletido, rezado para gerar vida.  Há que transformar a dor em sofrimento e incluir nela a dimensão da redenção. 

Para isso há que fazer, pelo menos, duas coisas:

a) a primeira é escutar as vítimas. Escutar os que perderam seres queridos e não puderam sequer enterrá-los. Escutar as mães que perderam filhos, os filhos que perderam pais, os que se despediram do marido, da amada na porta do hospital e nunca mais os puderam ver, enterrados que foram em sepultamentos coletivos, sem rituais, sem orações comunitárias, sem cânticos. É uma experiência brutalmente dolorosa essa, porque, mais do que uma experiência de luto, é uma experiência de nostalgia do luto não feito, que deixa uma ferida sangrando e um buraco aberto sem possível preenchimento.

b) a segunda, é consolar as vítimas. Como Igreja, somos chamados a ser agentes da consolação do Espírito Santo. Trazer o Consolador para perto dessas pessoas que viveram essa experiência dilacerante, ouvir as histórias de sua dor, deixa-las abrir seu coração ferido.  E talvez não tanto falar, mas rezar com elas, fazer silencio com elas. 

O querido amigo Henrique Peregrino, da Igreja da Trindade em Salvador Bahia, tem feito ao longo desta pandemia uma campanha chamada Silêncio pela dor. Em um momento onde, em alguns setores importantes do país, havia uma espécie de negação da dor, da gravidade da situação, um descaso com as mortes e com os efeitos devastadores da pandemia, esse silêncio grávido de amor e de esperança era a única resposta possível.

Henrique Peregrino.
(Foto: domínio público.)

Somos e queremos ser guardiães da esperança e por isso somos igualmente responsáveis pela esperança do povo de Deus. Essa pandemia golpeou duramente a capacidade de esperar do povo brasileiro que sempre foi dita como traço constitutivo de sua identidade. Brasileiro profissão esperança, dizia o musical que narrava a vida e obra do compositor Antonio Maria. É preciso que o brasileiro não perca o que de mais precioso tem: essa capacidade de esperar. De esperar contra toda esperança. De esperar mesmo em meio a tempestades como esta, contra vento e mar rebeldes. A Igreja tem um papel imprescindível nesse reforço da esperança, nesse cuidar da mecha que ainda fumega para que não se apague. Mas só pode fazê-lo passando pela porta estreita da dor e do luto a fim de viver plenamente a luz pascal que vem ao seu encontro.

2. Uma parceria mais estreita com a ciência

O caos que se apossou do Brasil com a chegada do coronavírus apresentou várias dimensões: sanitária, política, ideológica, econômica. No entanto, há igualmente uma outra dimensão, que eu chamaria aqui de caos do discurso pseudocientífico – em boa parte artificialmente produzido.

Enquanto os cientistas – médicos, pesquisadores, sanitaristas, técnicos em saúde – explicavam à população como se porta a doença, quais as medidas necessárias para combatê-la, outras vozes parecem interferir no processo dessa comunicação adotando uma linguagem que instaura a confusão.

A ciência é um dos motores do desenvolvimento da humanidade e da vida. Seu progresso tem sido responsável por grandes melhorias na vida humana, sobretudo no decurso do último século, ainda que os frutos desse progresso não tenham sido repartidos equitativamente pelo mundo. Por outro lado, o mau uso que muitas vezes é feito dos conhecimentos científicos foi, no mesmo século passado, causa das piores provações pelas quais a humanidade teve que passar. Por isso, ainda que o progresso da ciência que a racionalidade moderna possibilitou seja altamente positivo; ainda que se considere correta a afirmação de que a ciência é o motor do desenvolvimento em todas as frentes; os esforços feitos por muitos países e regiões do globo no domínio científico ainda permanecem muito aquém de um mínimo julgado desejável. E boa parte das razões para tal é a manipulação que interesses econômicos, políticos e ideológicos fazem contra a objetividade e a excelência que deve caracterizar toda ciência.

No momento em que explodiu a pandemia viral, a ciência – a medicina, a biologia, a infectologia e todas as áreas científicas que tratam da vida – ocuparam a linha de frente das atenções. Buscaram-se orientações, explicações, argumentos lógicos que ajudassem a administrar a tragédia que vivíamos.

Junta médica durante a pandemia da COVID-19.
(Foto: Domínio público.)

Por outro lado, competições ideológicas e embates políticos, muitas vezes se atravessaram no caminho do trabalho científico. E isso aconteceu por diversas formas: seja a do obscurantismo, que ataca retoricamente a liberdade de pesquisa científica, seja com políticas públicas retrógradas que cortam verbas e esvaziam institutos e laboratórios de pesquisa. Em um momento em que a crise ecológica atinge proporções nunca antes vistas, os impactos climáticos são minimizados, e os alertas emitidos pela comunidade científica desprezados como se não fossem evidências objetivas e sim opiniões casuais e não fundamentadas.

Com o Covid-19, a ciência voltou a ocupar seu papel de baluarte da verdade objetiva e verificável. Tornou-se um refúgio firme para uma sociedade assustada e vulnerabilizada pelo avanço descontrolado da doença e a subida dos números de vítimas fatais. A ciência é, hoje, a linha de frente no combate à pandemia. Fornece à população números, informações, percentagens que permitem ter um quadro do que se passa. E podem ser vistos ao mesmo tempo inúmeros laboratórios empenhados em encontrar remédios que tratem a doença causada pelo vírus, sequenciando o genoma do vírus em tempo recorde, buscando pelos caminhos da pesquisa apaixonada e responsável uma vacina.

Houve e há, no entanto, tentativas de travar esse trabalho, muitas delas invocando o nome de Deus. Contestaram-se os dados fornecidos pela ciência, contradisseram-se  informações precisas e objetivas e se deram orientações conflitantes à população. Afirmou-se que Deus salvará a todos do vírus, que o que os cientistas diziam é um exagero, e que o que há que fazer é orar porque Deus nos salvará do vírus. Desde sempre, em todas as religiões, mas muito concretamente nas religiões monoteístas e mais especificamente no judeu-cristianismo, Deus não se imiscui nos negócios humanos para interferir na ação da própria humanidade na resolução de seus problemas. O Espírito de Deus inspira, anima, orienta, consola, mas não toma as ferramentas das mãos da humanidade para resolver, em um passe de mágica, as dores e os problemas que essa própria humanidade está passando.

Toda tentativa ao longo da história de converter Deus em árbitro da ciência, impedindo-a de avançar, já foi suficientemente desmascarada e situada em seu devido lugar: é falsidade e embuste. Assim, governantes despóticos e irresponsáveis que buscam desautorizar os cientistas que dizem a verdade em meio a um momento grave como o que estamos vivendo terão que responder diante do tribunal da história. E também diante do tribunal divino, que fará cair os véus, desvelando suas tentativas de vendar os olhos do povo com ilusões e falácias, na sua mais atualizada forma: as fake news.

Em meio à pandemia, a comunidade científica tem construído uma rede sólida de informações, colocando a ciência na vanguarda das políticas de combate à pandemia. Assim, se pode combater o obscurantismo institucionalmente, usando de transparência e honestidade, atualizando constantemente as medidas adotadas e procurando adequar as condições da saúde às reais necessidades decorrentes da própria pandemia. E a fé não pode estar ausente dessa rede e desse diálogo.

Falar de Deus em tempos de coronavírus e nos tempos posteriores à pandemia implica dialogar com a ciência e deixar-lhe plena autonomia no campo e competência que lhe são próprios. Não misturar epistemologias ou querer tratar o que releva do campo do biológico com instrumentos falsamente espirituais que matam em vez de curar e alimentam políticas genocidas, empurrando as pessoas para o contágio e muito provavelmente para a morte.

Creio que um dos principais desafios para uma evangelização pós-pandemia será intensificar o diálogo fé e ciência, a fim de que os fieis vejam na ciência uma amiga, uma parceira com quem se devem ter uma relação equilibrada e madura e não uma ameaça a uma fé vacilante e infantil.

3. Mais espaço para a beleza

A pandemia trouxe para o cotidiano das pessoas, confinadas devido à ameaça do contágio do vírus, uma volta à linha de frente das expressões estéticas da música, da literatura, da arte e de todas as expressões da estética.  Vimos artistas tocando ou cantando nos balcões e nas praças vazias a fim de trazer beleza a pessoas exaustas e doloridas pelo confinamento e pela solidão.  Vimos grandes artistas partirem vítimas da COVID-19. O Brasil perdeu grandes artistas e escritores nesse período: Aldir Blanc, Rubem Fonseca…  Mas seu legado ficou. Seus textos, suas canções, sua lírica. Creio que são elementos preciosos para reencantar os corações das pessoas tão combalidas por esse flagelo que vivemos.

Creio que hoje a literatura e a arte são uma nova e preciosa hermenêutica para a teologia e o pensar e falar sobre Deus. Às vezes, onde os textos propriamente religiosos e pastorais não encontram pista de aterrissagem, as artes e a literatura e a poesia sim o encontram. Numa evangelização pós-pandemia portanto, somos desafiados a, além de nossos recursos tão infinitamente ricos, litúrgicos, textuais, imagéticos, lançar mão dos poetas, dos escritores, dos artistas plásticos, dos músicos, dos artistas de todas as especialidades para redescobrir o caminho ao coração das pessoas e ajudá-las a reencontrar sua jornada rumo à vida plena e à esperança.

Teologia e espiritualidade não podem dissociar-se sob pena de desvertebrar a primeira e banalizar a segunda. A teologia deve ser uma aventura espiritual concreta. Não somente uma “teopoética”, mas uma “teo-práxis” .  Mais precisamente ainda, uma “teo-poiética”.

Há, portanto, momentos e situações em que para entrar em contato com o Mistério que o habita sob a forma de desejo e sede, o ser humano recorre a linguagem poética para fazê-lo.  Se ainda restam dúvidas, basta voltar-se para a Bíblia. Ali podem ser encontrados diversos gêneros literários e o poético, o estético, o hínico, a invocação, o louvor, nos vem ao encontro em cada linha e em cada letra. É Ricoeur que nos adverte que através de todos estes gêneros e estilos, que são como um bordado multicor e complexo, passa um fio mais espesso, que é como uma medula vertebral, carregando uma revelação misteriosa e próxima: a revelação do mistério divino, personagem central do texto, a “coisa” do texto. Por trás do texto e dos gêneros –  profético, narrativo, prescritivo, sapiencial ou hínico – palpita a experiência com Alguém que se esconde e se mostra através da palavra, da música, do canto. Alguém que é mais que palavra, que é pessoa que se deixa experimentar como Mistério de encontro e amor.

Paul Ricoeur
(Foto: Domínio público.)

Assim sucede no Novo Testamento, por exemplo. As parábolas de Jesus são consideradas poéticas por mais de um autor e comentador. Ao serem analisadas, estão sujeitas a discussão sobre se a estética deve ser considerada independente do autor. Mas no caso de Jesus, essa dissociação não procede. Suas parábolas são reflexo de seu mundo interior, de sua compreensão do Reino. Segundo J. D. Crossan, “a obra de arte é a objetivação final da intuição poética, o que a obra aspira, em última instância, transmitir a alma dos outros é essa intuição poética que estava na alma do poeta”. Assim acontece com Jesus que toma elementos de seu contexto vital, com sua visão inspirada pelo Espírito Santo e transmite sua experiência de Deus aos discípulos e aos que o seguem. Assim, sua sensibilidade e sua profunda ligação e compromisso com a experiência que faz ao lado de sua criatividade e observação da realidade o levam a compreender e transmitir o que considera como mais importante: seu amor ao Pai e seu projeto do Reino. Por isso, sua fantasia criadora, sua imaginação inspirada, as parábolas que narra são determinantes para o sentido que comunica.

John Dominic Crossan
(Foto: Domínio público.)

Pensando em uma teopoética da sede de Deus que possa falar diretamente a mente e ao coração de nossos contemporâneos, importa não apenas recorrer a textos, canções, obras de arte explicitamente religiosas. Mas também e não menos, lançar mão de autores e obras que não atuam somente ou mesmo principalmente no campo da teologia, mas sim na arte, na literatura, no cinema, na imagem entendidos em seu sentido secular. Em sua arte e poética têm em comum com a teologia a sede de sentido para a vida, a sede de justiça, liberdade e vida plena e a fé na humanidade.

Tal questão pode encontrar uma provocação inicial na pergunta evangélica que os contemporâneos de Jesus fizeram sobre sua pessoa, ao ouvirem-no falar com um conhecimento e um “saber” diferente do “saber” dos filósofos e teólogos da época:  os escribas e fariseus: “De onde lhe vem o saber?” (Mt 13,54). Ao ouvir Jesus que ensinava com autoridade e que, assim fazendo, dava mostras de ser possuidor de um “saber” até então desconhecido, os sábios e doutores da época, assim como todos os que o ouviam, se questionavam sobre a origem desse saber que não conseguiam identificar.

O teólogos e os pastores são aí poetas da Palavra de Deus, seus bardos, seus cantores, que “não escolhem seu cantar, mas cantam o mundo que vêem” [1], que “ louva o que e pra ser louvado” [2] e que se se calam, cala-se a vida mesma, porque a vida, a vida mesma e todo um canto.[3] E se o cantor – o teólogo e o pastor como cantores do Mistério –  silenciarem, morrem de espanto a esperança, a luz e a alegria.  Os pobres ficam sozinhos, pois já não têm quem fale por eles.

O desgaste das fórmulas, o envelhecimento das rubricas, a rigidez dos documentos, tudo isso conclama a novas formas, novos poemas, nova teopoética que seja ao mesmo tempo teopoiética. Agora trata-se de uma teopoiética que recupere o aprendizado feito com a pandemia e ajude a humanidade a se repensar e entrar em um novo momento de sua longa história.

4. Revalorizar o espaço doméstico

O cardeal José Tolentino propõe nova configuração para a Igreja: seu deslocamento em parte do templo para a casa. E tal êxodo, em lugar de ser um problema e um obstáculo para o pleno funcionamento da comunidade eclesial, representa uma fantástica oportunidade de reencontrar sua fonte mais pura e suas origens mais genuínas.

Cardeal José Tolentino de Mendonça
(Foto: Domínio público.)

Quando o Nazareno foi morto na cruz, uma imensa desolação se apoderou dos discípulos. Muitos entraram em dispersão, não encontrando alívio para sua dor e sua perda. No entanto, a boa nova da Ressurreição deu-lhes força de recomeçar a viver. E esse recomeço, que marca o nascimento dessa comunidade chamada Igreja, foi marcado pela união de todos em situação de extrema fragilidade. Sem conseguir abertura na sinagoga, perseguida pelo poder religioso e político, a comunidade viu-se convidada a abraçar sua própria vulnerabilidade.

E que espaço encontrou para celebrar, expressar, viver profundamente essa situação de ameaça e fraqueza? As casas. Não havia lugar para a recém-nascida comunidade no templo. As casas das famílias passaram a ser esses templos. Hoje, em tempos de igrejas fechadas, ou que vão se abrindo aos poucos, às vezes desafiando o perigo da doença e do contágio, os cristãos se viram levados a ter que celebrar em suas casas. Em lugar de ir ao templo celebrar com a assembleia reunida, são convidados a conectar seus computadores ou celulares e a partir dali unir-se sem restrições de fronteiras geográficas, mas ocupando o imenso espaço virtual que a tecnologia hoje abre.

Porém, mais que isso, estão convidados a valorizar o espaço de suas casas e residências e experimentar sua sacralidade. Esse espaço onde a família se reúne, cozinha, lava e passa, come e bebe, conversa, briga, chora, pede perdão, se arrepende, ri, ouve música, vê televisão, esse é o espaço da celebração da fé, da memória subversiva e perigosa de Jesus de Nazaré.

É também o espaço de se suportar mutuamente nas dores e fragilidades nossas de cada dia, que hoje são pão cotidiano de todo mundo, no mundo inteiro, mas especialmente em nosso golpeado e ferido Brasil. Espaço de ensinar às novas gerações de filhos e netos que seus pais e avós erraram muito construindo esse mundo que legamos a eles. E esperar que eles consigam introduzir as mudanças que possam ser realmente transformadoras.

Muitas casas passaram a ser verdadeiras igrejas domésticas. Por isso, não se pode dizer que as igrejas estavam fechadas, porque as casas faziam brilhar em si as notas características de toda comunidade eclesial, listadas no final do capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos: eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações.

A casa e a família sempre foram igrejas primeiras, domésticas, onde se mama o leite e a fé. Contudo, em tempos de secularização, muito dessas características se foi perdendo e o estilo de vida não contempla mais as possibilidades que havia antes. As pessoas estão tão apressadas, com tanto por fazer… Cada membro da família tem horários diferentes. Não existia quase a refeição em família; cada um com sua bandeja, comia o almoço ou o jantar esquentado no microondas, diante da televisão ou do computador.

O vírus nos trouxe de volta para casa e foi possível olhar nos olhos uns dos outros, ver que ali era nosso lugar eclesial, nossa igreja âncora e primeira. Como diz o cardeal Tolentino: “antes de ser templo, a Igreja foi casa. Jesus saiu do templo e entrou na casa. E aí começou a experiência cristã”.

A casa – oikia em grego – e a família são, hoje, uma grande oportunidade para que os cristãos leigos adquiram verdadeiro protagonismo pastoral no futuro que vem no horizonte pós-pandemia. No pós-pandemia haverá uma volta ao templo. Mas seria muito bom que essa não significasse um esquecimento da casa. Ambos os espaços, em fecunda e harmoniosa tensão podem se potenciar mutuamente e contribuir muito para a evangelização.

5. O cuidado da terra e a responsabilidade pela casa comum

Se algo a pandemia nos ensinou foi o fato de que somos terra e que se continuamos abusando dos recursos do planeta nós mesmos seremos destruídos. Somos terra e nosso destino está indestrutivelmente ligado ao dessa mãe terra que hoje é tão agredida. Ela respondeu com esse vírus que nos ameaçou e nos pôs de joelhos e nos confinou dentro de nossas casas, denunciando o estilo de vida mortal que estávamos vivendo. Creio que um dos pontos centrais nesta pós-pandemia é inserir de cheio na pastoral e na evangelização a consciência ecológica, inseparável  da consciência de solidariedade para com a humanidade. 

Desde o início, a Encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, relaciona terra e humanidade. Nós somos terra, pó, barro. Nossa corporeidade é formada pelos elementos que constituem o planeta: a argila, da qual Deus formou Adão, a água que mata a sede, o ar que enche nossos pulmões e nos mantém vivos. Somos terra, argila sobre a qual é soprado o espírito divino que anima e inspira. E somos chamados a maravilhar-nos por nossa vocação de habitantes da casa comum, que dividimos com todos os outros seres.

(Foto: Domínio público.)

Porém, inseparável desta visão maravilhada diante da criação que deve ser cuidada com desvelo e atenção, está o alerta contra a atitude consumista e predatória com que o planeta é tratado pelas grandes potências e governos irresponsáveis. A principal preocupação do Papa é não separar, sob pretexto algum, o compromisso em favor do meio ambiente e o engajamento em favor dos pobres. O documento enumera sofrimentos e desgraças que a depredação do meio ambiente traz aos pobres. Há uma minuciosa reflexão: desde a poluição da água, com a qual os pobres se desalteram, da qual extraem os peixes que lhes servem de alimento, que lhes possibilita viver da agricultura e do cultivo, até as doenças que as águas poluídas trazem, provocando epidemias e morte. Igualmente se seguem na reflexão papal a exposição dos mais vulneráveis do planeta aos poluentes atmosféricos que lhes causam sérios danos à saúde, e a degradação das condições de vida dessas populações que as forçam a emigrar, instituindo um círculo vicioso que leva à destruição das famílias e a perda fatal da qualidade de vida e da sobrevivência.

O documento pontifício propõe uma nova ideia de progresso, não centrado sobre uma arrogante onipotência do ser humano, que se atribui o direito de agredir o planeta que habita, esquecendo-se de que é a casa comum de todos. Mas um progresso com um desenvolvimento holístico e ecologicamente sustentável, que seja o ato fundante de uma nova civilização. Francisco, com seu olhar inspirado pela fé, vê a humanidade como uma família, “a única família humana”. Essa visão não permite isolamento, alienação ou a globalização da indiferença diante do imenso problema que a degradação do meio ambiente representa para as futuras gerações.

Apenas o olhar e a atitude “franciscanas” – de cuidado, responsabilidade e reverência – por este planeta, que é nossa casa comum, pode levar à exclamação de plenitude vital que é o louvor ao Senhor Criador de todos os seres. Só pode exclamar “Louvado seja” com os olhos voltados para o alto quem olhou ao seu redor e curvou-se para cuidar da mais humilde criatura saída das mãos de Deus.

Parece-me imprescindível neste momento em que emergimos de uma catástrofe que atingiu a todos os habitantes do planeta voltarmos nossos olhos para o fato de que temos que aprender a conviver. Não apenas entre seres humanos, mas entre todos os seres vivos. A vida é o outro nome de Deus e o respeito e o cuidado pela vida deve ser um princípio fundamental daquele que vive a fé cristã.

6. “Fratelli tutti”: revisitar a opção pelos pobres e vivê-la mais a fundo

Se algo ficou claro nessa pandemia foi a obscena desigualdade em que vive o povo de nosso país, o Brasil. E sobre isso o papa Francisco nos dá uma bússola para orientar nosso viver nos próximos tempos. Trata-se de um legado importante de seu pontificado e que vem acenar por algo que é próprio do rosto da Igreja latino-americana e por isso também brasileira. Em sua recente encíclica Fratelli Tutti Francisco nos propõe uma solidariedade nova e tão antiga, para com todos, mas sobretudo para com aqueles que são mais necessitados.

Nesta tão esperada encíclica, o papa Francisco resgata os principais documentos e pronunciamentos de seu pontificado para falar da fraternidade humana, um projeto tão adiado e ao mesmo tempo tão urgente. Faz uma nova e inspirada síntese, onde a figura de Francisco de Assis continua a ser um farol iluminador e inspirador. Trata-se de um documento escrito sob o incentivo da colaboração anterior com um irmão de outra religião, o Grande Imame Ahmad Al-Tayyeb, com quem já havia assinado o documento sobre a fraternidade humana em favor da paz mundial e da coexistência comum, em Abu Dhabi, em 2019. Portanto, é um documento em perspectiva de diálogo: com a melhor tradição da Igreja Católica (Francisco de Assis, padres da Igreja, papas antigos e recentes), com outra religião (Mahatma Mohandas Gandhi, o Grande Imam Ahmad Al-Tayyeb), líderes cristãos de outras denominações (Martin Luther King, Desmond Tutu), pensadores renomados (Gabriel Marcel, Karl Rahner), escritores (Eloi Leclerc), poetas e compositores (Vinicius de Moraes).

Papa Francisco e o grão imame de Al-Azhar, Ahmad AlTayyeb, assinam, em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019, histórico “documento sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, no qual reafirmam juntos que a cultura do diálogo é o caminho para viver em paz. (Foto. Domínio público.)

Francisco afirma que enquanto escrevia a encíclica, explodiu a pandemia. Segundo ele, esse fato expôs a falsa segurança em que nos encontramos, confiando em uma cultura tecnocrática que nos protegeria de qualquer ameaça. Evidenciou igualmente nossa incapacidade de agir em conjunto. Começa, assim, com a esperança de que os cristãos e todos os homens e mulheres de boa vontade redescubram a importância incontornável da fraternidade, sonho da humanidade tantas vezes adiado. Em seu diagnóstico, a Encíclica menciona os sonhos de integração que hoje fracassaram: da Europa, da América Latina etc.

 A globalização conectou os indivíduos, mas não conseguiu superar o individualismo e formar comunidade e fraternidade, impondo um modelo cultural único (n. 12) e atingindo a consciência histórica e a memória viva das culturas indígenas (n. 14). Nesse ambiente onde a única aspiração é consumir sem limites (n. 13), a política perdeu sua característica de discussão sadia sobre projetos de longo prazo para o bem comum e se tornou um conjunto de estratégias que visam a destruição do outro para obter posições que trarão benefícios ilegítimos para alguns. (n. 15) Enquanto na “Laudato Si’” o pontífice propunha uma conversão ecológica que levasse todos a se entenderem como seres vivos que vivem e cuidam de uma casa comum, agora se volta para a humanidade, desejando que ela compreenda que cuidar do mundo significa cuidar de si mesmo. É quando ele desenvolve seu triste diagnóstico de que nossa cultura é marcada pelo descarte.

Algumas categorias de pessoas surgem como grandes vítimas deste descarte: os idosos, os deficientes, os pobres, os migrantes. São descartados e eliminados de todas as previsões e mapas porque não são mais úteis, não lubrificam mais a roda de uma sociedade baseada no sucesso e no consumo e não na fecundidade (n. 193 ss). A partir do n. 56, o Papa parece deixar claro que o Evangelho tem algo a dizer nesta situação. É quando começa a expor e comentar a parábola do Bom Samaritano em Lucas 10,25-37. Anuncia a responsabilidade universal de uns para com os outros, única via para a fraternidade. A atitude do samaritano diante do estrangeiro ferido à beira da estrada é a verdadeira atitude humana. Não importa se o ferido é daqui ou dali. Está ferido, e isso é o que importa, o que obriga à compaixão (n. 62). Assim deve ser a humanidade, não composta de sócios que usam os relacionamentos para obter lucro, mas de irmãos que amam e servem livremente (n. 101-105).

Para isso, mudanças estruturais devem ser feitas, além da conversão pessoal, diz o Papa. E uma delas é voltar a propor a função social da propriedade. Isso se aplicaria igualmente aos povos. Se o destino dos bens da terra é comum a todos, deve valer igualmente para todos os países. Cada país é do estrangeiro, assim como do cidadão (n. 124). E o bispo de Roma reafirma continuamente a sua convicção de que os migrantes são uma bênção e uma riqueza que convida uma sociedade a crescer e, por isso, devem ser ajudados a integrar-se (n. 135). O texto não permanece em nível intersubjetivo, chega ao coletivo falando diretamente da política. E o faz denunciando tanto as “formas populistas”, como as “formas liberais”, que fazem uso do povo ou servem aos poderosos (n. 155). Defende a legitimidade da noção de “povo” e a aplica à fraternidade e à amizade social. A boa política é chamada a ser uma das formas mais preciosas de caridade, porque visa ao bem comum (n. 180). A caridade assim vista é mais do que um sentimento subjetivo. Trata-se de um compromisso com a verdade e com a construção de processos de desenvolvimento humano de alcance universal. (n.184). Implica sempre um amor preferencial pelo mais pobre, que envolve muito mais do que obras de caridade.

E aqui Francisco torna cada vez mais clara sua convicção de que só assim, num esforço que começa “por baixo”, pelos mais pobres, nas margens, é possível construir uma fraternidade verdadeiramente universal que não deixa ninguém de fora. “Se há que recomeçar, que seja sempre a partir dos últimos ” (n. 235). O consenso deve ser buscado em um ambiente de diálogo e escuta da diferença do outro, incluindo todos e garantindo os direitos de todos (n. 215-221). E para que isso aconteça, o ateu tem que estar junto com o crente e com os fiéis de outra religião; os segmentos da sociedade abertos à escuta mútua em um pacto social e cultural (n. 215-221); e a justiça e a misericórdia devem dar-se as mãos.

Com esta encíclica, o papa Francisco dá as pautas para uma evangelização após a pandemia do novo Coronavirus que é muito mais eloquente do que qualquer coisa que pudéssemos nós dizer. 

Nunca estivemos tão inseguros, portanto mais do que nunca devemos estar juntos e darmo-nos as mãos.  Ser solidários uns com os outros.  Passar de sócios a irmãos, na gratuidade, no serviço gratuito, na entrega solidária e sem preconceitos e obstáculos. 

E essa é a boa notícia depois de tanto luto e tanta dor.  Estamos vivos e temos um objetivo e um sentido em nossa vida: anunciar a Boa Notícia da salvação em Jesus Cristo.

(Os grifos são nossos)

Sobre a autora:

Profa. dra. Maria Clara Lucchetti Bingemer

Maria Clara Lucchetti Bingemer possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1975), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1985) e doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989). Atualmente é professora titular do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade. Durante quatro anos foi avaliadora de programas de pós-graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Durante seis anos foi decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: Deus, alteridade, mulher, violência, mística e espiritualidade. Tem pesquisado e publicado nos últimos anos sobre o pensamento da filósofa francesa Simone Weil. Atualmente seus estudos e pesquisas vão primordialmente na direção do pensamento e escritos de místicos contemporâneos e da interface entre Teologia e Literatura. Autora de muitos livros, dentre eles mencionamos as últimas publicações: BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; VILAS BOAS, Alex (Org.). Teopoética: mística e poesia. 1. ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio/ Paulinas, 2020; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Love of God and love of justice. The cases of Dorothy Day and Simone Weil. 1. ed. Los Angeles: Marymount Institute Press/Tsehai publishers, 2019; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Santidade: chamado à humanidade. 1. ed. São Paulo: Paulinas, 2019.


[1] Cf. a musica de Geraldo Vandre:  cantador, so sei cantar/ ai eu canto a dor/ canto a vida e a morte canto o amor;

[2] Louvação: louvando o que bem merece, deixando o ruim de lado;

[3] Mercedes Sosa: Si se calla el cantor, calla la vida/porque la vida, la vida misma es todo un canto.

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