Que modelo de igreja? Uma proposta que vem de longe
Papa Francisco, desde que se tornou Papa, conclama para uma reforma interna da Igreja, uma Igreja que, com referência ao capítulo 2 da bela carta aos Filipenses, coloque-se no séquito de um Deus “esvaziado” de sua glória e poder divino, feito servo, humilhado e obediente até a morte, e se adéque para tal modelo, e não ao modelo do poder, da riqueza e do autoritarismo. É uma mensagem forte, mas, paradoxalmente, não é nova. É tão antiga como o Evangelho, só que era preciso este Papa para nos fazer redescobrir o verdadeiro significado das palavras e das mensagens já tão desgastadas pelo uso e, portanto, esvaziadas de sua força. Mas é antiga porque foi repetida ao longo dos séculos por vozes cheias de sabedoria e de paixão eclesial, muitas vezes sufocadas por outras vozes, mas que depois reapareceram e novamente sumiram. Um rio subterrâneo de espírito evangélico que felizmente anima desde sempre a Igreja.
O artigo é de Mariangela Regoliosi, professora de filologia medieval e humanista na Universidade de Florença e participante do Grupo de Reflexão e Proposta da Associação Viandanti, publicada por Viandanti, 20-02-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Hoje eu quero trazer à tona uma dessas vozes, distante no tempo, porém ainda incrivelmente eficaz.
A inovadora pesquisa do humanismo
O século XV italiano é um século de nossa história não tão conhecido e pior ainda interpretado.
Considerado por alguns como “o século sem poesia”, e por outros, como um período de pura erudição filológica. Estudos sérios alternativamente têm mostrado a intensa atividade literária de muitos humanistas e, especialmente, a reflexão inovadora filosófica e teológica dos melhores intelectuais, indispensável antecedente da grande e mais conhecida reflexão europeia que se seguiu. Um dos arautos dessa virada ideológica é certamente Lorenzo Valla (1407-1457) e a ele devemos a lição de eclesiologia da qual pretendo tratar.
O texto mais significativo nesse sentido é, certamente, o De falso credita et ementita Constantini donatione (Sobre a doação de Constantino, falsamente considerada verdadeira e inventada de forma mentirosa).
Foi composta em 1440 “encomendado” pelo rei junto ao qual Valla então vivia, Alfonso de Aragão, para minar as reivindicações feudais do papa Eugênio IV sobre o Reino de Nápoles, precisamente com base no pseudo-documento, por séculos considerado autêntico, da doação pelo imperador Constantino à igreja de Roma das posses de todo o Ocidente. Longe de ser um rancoroso panfleto político – como ainda alguns críticos atuais escrevem – o De donatione é, antes de tudo, um texto científico, porque demonstra com evidências inquestionáveis (históricas, lógicas, linguísticas, estilísticas e ideológicas) a falsificação do documento. Mas é também – o que mais interessa aqui – um texto religioso de renovação eclesial.
Uma denúncia contra o poder temporal da igreja
Em uma série de discursos fictícios, colocados na boca dos próprios protagonistas do evento pseudo-histórico (rei e príncipes detentores do poder civil, os filhos do imperador Constantino, o Senado e o povo de Roma e, finalmente, o destinatário da doação hipotética, o Papa Silvestre) Valla tende a demonstrar, além das evidências factuais, a improbabilidade, a incredibilidade, e, portanto, a impossibilidade histórica da alegada doação. Em especial, diante da essência espiritual da Igreja, como emerge das Escrituras Sagradas e do exemplo do Cristo fundador, é altamente improvável, se não mesmo impossível, que um papa tenha podido livremente aceitar um domínio terreno em contraste absoluto coma a sua autêntica vocação religiosa. Aliás, é precisamente tal contraposição entre a “lógica” do poder humano e a “lógica” de Deus, que gera a improbabilidade da doação. E assim a visão ideal, livre de mancha, da Igreja anima a própria demonstração filológica e transforma um texto aparentemente erudito em uma obra de denúncia contra o poder temporal da Igreja real e em um convite para a reforma: “Eu não escrevo porque desejo perseguir alguém […] mas para erradicar o erro da mente dos homens, a fim de afastá-los, advertindo ou censurando, dos vícios e das vilanias. […] Possa eu, possa um dia ver […] que o Papa seja apenas vigário de Cristo, e não também de César […]! Então, o Papa será chamado e será pai santo, pai de todos, pai da Igreja”.
Um modelo de igreja moderno
A oração colocada nas palavras do Papa Silvestre é um verdadeiro capítulo de teologia eclesial baseada na Sagrada Escritura, único ponto de referência, além dos preceitos da tradição eclesial, e interpretada com discernimento crítico, em algumas passagens mesmo contra a interpretação tendenciosa do lado hierocrático. Qual é a verdadeira igreja a que aspira Valla, na esperança de uma renovação, que anseia com coração sincero e confiante?
- A igreja deve ter um único fundamento, Cristo.
- No modelo de Cristo, o Papa deve ser o bom pastor, que desempenha em seu rebanho uma função de proteção amorosa, e não de comando nem de julgamento.
- Sempre no modelo de Cristo, o Papa e a Igreja devem ser pobres e generosamente desinteressados, distantes de toda cobiça terrena.
- Ainda no modelo de Cristo, o papa e toda a igreja devem conceber o poder apenas como um serviço, uma vez que, nas palavras de Jesus, o reino de Cristo “não é deste mundo”.
É gravemente absurda e perversa, até mesmo ímpia, a assimilação do regnum Dei ao regnum secular, da Igreja do poder temporal, tanto na substância como nas manifestações externas, com trajes luxuosos e a pompa dos ornamentos, dos quais a igreja foi aos poucos se adornando ao longo dos séculos, nisso também se afastando da humildade das origens.
Mas a igreja também deve ser livre. Este é um dos aspectos mais característicos da eclesiologia de Valla. Ele reivindica uma dupla libertas ecclesiae.
Certamente a liberdade diante de um poder político “amigo”, mas “condicionante”; certamente a liberdade de culto.
A liberdade de expressão e de crítica
Mas Valla também propõe outro tipo de liberdade: não a liberdade de inimigos externos, mas a liberdade interna da igreja. Seria um grave pecado contra a lei humana e divina se a Autoridade não respeitasse a “liberdade de expressão” e a “boa consciência”.
Fazendo apelo e referência para a igreja primitiva, em que a dialética interna, entre Paulo e Pedro, era animada e respeitada por todos, Valla exige da Autoridade, sem medo, o reconhecimento da liberdade de expressão e de crítica, quando alicerçada por uma consciência correta, quando baseada na verdade honestamente reconstruída e totalmente transparente, por obra de um historiador-filólogo competente, verdade esta que, como tal, para quem a conquistar, tem um valor sagrado: porque – Valla repete insistentemente – “a verdade vem de Deus” .
Autoridade e tradição da Igreja nunca estão livres de erros: como Pedro foi justamente repreendido sobre algumas questões por Paulo, assim também poderão ser justamente sujeitas a críticas as falsas crenças da tradição, mesmo que levadas adiante na convicção de “proteger” o povo de Deus de desvios ou de confirmá-lo na fé (o ataque de Valla contra as falsidades pseudo-hagiográficas e suas pseudo-justificativas é implacável), mas principalmente poderão e deverão ser submetidas à crítica, com livre contestação, verdades apresentadas como tais e, como tais, defendidas durante séculos pelas sumas autoridades curiais de forma obrigatória, quase como uma verdade de fé, se provas circunstanciais evidentes, trazidas à luz até mesmo por leigos preparados, demonstrarem a inconsistência e a contradição. Valla ressalta, em essência, como a autoridade eclesial não deva ser seguida como tal, mas apenas quando age com virtude e sabedoria, no respeito à veritas e na autêntica iustitia.
Filologia aplicada à Bíblia
Nesse âmbito de emancipação da autoridade eclesial também é incluída a revisão da tradução da Vulgata do Novo Testamento, conduzida por Valla ao longo de muitos anos e difundida, por obra de seu grande admirador Erasmo, depois de sua morte. Estamos, obviamente, um século antes da categórica absolutização da Vulgata pelo Concílio de Trento, mas também na época de Valla a tradução atribuída a Jerônimo era considerada o autêntico texto da Bíblia e como tal intocável; especialmente havia a ideia de que apenas o clero poderia tratar disso. Valla, prefere reivindicar a legalidade de sua obra em nome de suas próprias competências como filólogo, conhecedor de latim e de grego. Em uma passagem bastante importante, preliminar de outra obra, a De professione religiosorum, Valla, revertendo a objeção de que um leigo grammaticus não seria idôneo para lidar com realidades religiosas, declara que qualquer um pode escrever sobre teologia e religião, desde que tenha as competências linguísticas e intelectuais adequadas, competências que um leigo aguerrido como ele possuía a suficiência e que, ao contrário, justamente os homens da igreja muitas vezes não possuem, ignorantes de história, de latim, de capacidade expositiva e de atualizada competência teológica.
A igualdade de todos os cristãos
Resulta evidente desse conjunto de atitudes de Valla uma extraordinária (para aquele tempo! e para todos os tempos? …) valorização dos leigos na Igreja. Não encontramos nele declarações explícitas sobre o “sacerdócio universal”, que teria sido formulado como tal posteriormente, mas certamente identificamos a convicção da igualdade de todos os cristãos, clérigos e leigos, diante de Cristo. O tema emerge claramente no diálogo acima mencionado De professioone religiosorum. Valla observa que, de acordo com a tradição eclesial consolidada, mas que ele identifica como injusta, os monges acreditam serem os únicos autorizados a se chamarem de “religiosos” e, portanto, implicitamente, se consideram os “verdadeiros” religiosos. Mas religioso no sentido cristão significa fiel em Cristo e qualquer pessoa que tenha o dom dessa fé, e a encarne nas obras que realiza, é religioso.
“O que significa ser religioso se não ser um cristão e verdadeiramente cristão? […] a tal ponto que é a mesma coisa religião e fé e religiosos e fiel”. É o batismo que garante a união com Cristo, todo outro vínculo é acessório e inútil, e não cria nenhuma distinção nem de grau nem de qualidade. E é a fé o fundamento, sem a qual nada no ser humano é válido, e é a fé a fonte da salvação, salvação que vem de Cristo, para todos os homens, por gratuita misericórdia de Deus.
Poderíamos continuar destrinchando outros importantes elementos da teologia e da eclesiologia de Valla, espalhados em outras obras, filtrados mais tarde, tais como aqueles apresentados até agora, através de Erasmo e através de Lutero, na religiosidade europeia. Mas o que eu considero mais importante destacar é que nós modernos não podemos olhar para esses textos como algo que nos seja indiferente. O aviso que vem das palavras de Valla também é direcionado para a igreja de todos os tempos. Para que evite da tentação sempre latente nela: a tentação do poder, tanto dentro dela como para o exterior.
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