“A Igreja pode dar esse salto de qualidade na sua relação com as formas de poder, quando é perceptível que elas não estão a serviço do povo de Deus. A Igreja é servidora do povo. Ainda mais, Ela é o próprio povo. Não é uma instituição a mais. É sacramento de Jesus Cristo no Mundo e para o Mundo. Eis a razão de ser da sua sacramentalidade: Jesus Cristo, a verdadeira Luz do Mundo (LG,1). A crise de identidade da Igreja e daqueles que a constituem pelo Batismo, e dos demais que são servidores do único povo de Deus, acontece quando há o esquecimento da conversão ao Evangelho.”
“Essa convicção de discípulos missionários é uma das grandes questões da espiritualidade eclesial. Quando não há essa percepção, por causa da nossa corrupção interior e espiritual, saímos do itinerário que pode nos levar à Verdade. Tornamo-nos presas fáceis da vaidade e tantas outras vontades, como o poder e o dinheiro.”
Pe. Matias Soares
Em tempos idos de primícias sacerdotais, certa vez, em conversa cordial com um político, fui interpelado com o seguinte imperativo: “Padre, o senhor e o prefeito do município têm que caminhar juntos!”. Ninguém, imediatamente, seja ingênuo a pensar que a propositiva era de traçar “parcerias em função do bem comum”. Nada disso! A ideia era mesmo de subserviência e relação de poder. Em outras palavras, a questão era: o senhor faz o meu nome politicamente e eu faço algo pela Igreja, “ou pelo senhor”, quando for necessário. Fiquei teso a observar e ouvir a proposta que, para mim, parecia algo estranho, já que eu não estava acostumado a determinados tipos de conversas politiqueiras. Acontecimentos como este, e tantos outros, das minhas experiências paroquiais, ajudaram-me a entender e defender-me de muitas gaiolas e armadilhas das relações Igreja e Política. A maioria dos políticos brasileiros, não todos, parte do princípio de que, como no jogo da política, todas as pessoas e instituições são manipuláveis e compráveis. O pior é que muitas o são, inclusive líderes religiosos. O político esperto tem muitos modos de envolver a quem ele quer manipular e aprisionar.
Há uma passagem de um dos documentos do Concílio Vaticano II, quiçá, o mais importante, dependendo da perspectiva hermenêutica, que trato como uma referência basilar da ação pastoral da Igreja na época pós-conciliar, a saber: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história” (GS,1). Esse trecho deve ser meditado por cada membro da Igreja, muito especialmente, por seus ministros ordenados. Há uma reclamação constante de que a Igreja está faltando com a sua dimensão profética. E atenção! Quando falamos em profetismo, não podemos mundanamente pensar em vínculos políticos partidários e ideológicos. Não! Ser profeta é ser fiel ao Evangelho, com a nossa vida e as nossas palavras. Como já testemunhei várias vezes, falo com convicção que o Papa Francisco é uma benção de Deus para a Igreja e para o Mundo, justamente porque acredito na sua fidelidade ao Evangelho que, segundo ele, “enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria” (EG,1). O profetismo, a coragem e a liberdade de Francisco têm no Evangelho a sua fonte.
A Igreja pode dar esse salto de qualidade na sua relação com as formas de poder, quando é perceptível que elas não estão a serviço do povo de Deus. A Igreja é servidora do povo. Ainda mais, Ela é o próprio povo. Não é uma instituição a mais. É sacramento de Jesus Cristo no Mundo e para o Mundo. Eis a razão de ser da sua sacramentalidade: Jesus Cristo, a verdadeira Luz do Mundo (LG,1). A crise de identidade da Igreja e daqueles que a constituem pelo Batismo, e dos demais que são servidores do único povo de Deus, acontece quando há o esquecimento da conversão ao Evangelho. Essa convicção de discípulos missionários é uma das grandes questões da espiritualidade eclesial. Quando não há essa percepção, por causa da nossa corrupção interior e espiritual, saímos do itinerário que pode nos levar à Verdade. Tornamo-nos presas fáceis da vaidade e tantas outras vontades, como o poder e o dinheiro. A Igreja vive sendo assediada constantemente, não porque alguns que a buscam queiram ser Cristãos, ser Igreja e viver dignamente a sua fé, mas porque querem tratá-la como uma via de promoção social e política, em detrimento do sofrimento do povo de Deus, a quem a Igreja, como Mãe e Mestra, tem a missão de amar e cuidar a exemplo do Mestre e Senhor, Jesus de Nazaré.
Motivado e com base neste ensinamento do Concilio, sempre afirmei o seguinte: “quem está com a Igreja, está com o povo, e quem está contra a Igreja, está contra o povo, que é de Deus”. O Concílio fala de sofrimentos e alegrias. Em cada contexto de nossos Municípios, Estados e País, quais são os sofrimentos e as alegrias do povo? Qual é o papel de protagonismo que a Igreja tem nos dias de hoje? Será que ela tem esse papel? Ou será que o perdeu? Mas, se perdeu, perdeu por quê? Será que há o discernimento acerca da nossa fidelidade ao Evangelho? Só uma Igreja livre pode ser sinal de libertação para si e para o povo. A causa da sua liberdade é o próprio Cristo, com a sua vida e a sua obra. Nada mais! Essa mesma convicção faz com que o servo deseje agradar só a Jesus Cristo (Gl 1,10).
A conversão pastoral, da qual tanto se fala, passa também por essa preocupação de saber a quem servimos. O que estamos realmente fazendo como testemunhas de Jesus Cristo? Como vivemos e qual o referencial do nosso apostolado? Como fazemos a experiência genuína da nossa Sequela Christi, na contemplação do mistério e da espiritualidade da Cruz (Edith Stein, Dietrich B.)? Está claro no Evangelho (Mt 16,24). Há um caminho a ser feito pela Igreja, que foi enfaticamente incentivado pelo Concílio. Mas até o momento ainda não vivido plenamente. A Igreja, através dos seus ministros mais especificamente, não pode titubear em estar ao lado do povo. Sem demagogia, e sim com amor de Mãe e convicta da ação do Espírito Santo, que desde os primórdios, foi e sempre será a sua força.
Por fim, lembremo-nos da orientação de Jesus, quando estava enviando os Apóstolos: “eis que vos envio como ovelhas entre lobos. Por isso, sede prudentes como as serpentes, e sem malícia como as pombas” (Mt 10,16). Jesus nos mostra que desafios encontramos e encontraremos na ação missionária. Ser cooptados por aqueles que querem nos usar como instrumentados de manipulação do povo é um dos mais sérios desafios. Atentos ao Evangelho e aos sinais dos tempos, prossigamos sem medo, com amor à Verdade e a Justiça. Assim o seja!
PADRE MATIAS SOARES PERTENCE À ARQUIDIOCESE DE NATAL-RN. ATUALMENTE MORA NO PIO BRASILEIRO, EM ROMA, E FAZ MESTRADO EM TEOLOGIA MORAL NA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE GREGORIANA. COLABORA COM O OE ENVIANDO-NOS ARTIGOS DE OPINIÃO.