“O messianismo é uma chave privilegiada para interpretar ideologias, movimentos políticos, científicos, sociais, econômicos e religiosos que sob uma liderança carismática convocam o povo a sair da prostração e transformar uma realidade histórica de pobreza e morte… A atual pandemia feriu mortalmente os modernos messianismos da ciência e do progresso, o estado de bem-estar neoliberal, a segurança e a afirmação de Fukuyama de que agora chegamos ao fim da história. Agora eles querem nos consolar que em breve voltaremos à normalidade de antes. Mas essa “normalidade” tem causado desigualdades sociais, venda de armas, guerras, violência e destruição da natureza, fome, machismo e feminicídios, migrações, morte de crianças, abusos sexuais, vítimas e caos. Não podemos voltar a essa “normalidade”... É preciso discernir os messianismos.”
Confira a reflexão do teólogo jesuíta Victor Codina:
A pandemia é um sinal dos tempos que nos leva a voltar ao ethos do Reino e à fraternidade
O messianismo é uma chave privilegiada para interpretar ideologias, movimentos políticos, científicos, sociais, econômicos e religiosos que sob uma liderança carismática convocam o povo a sair da prostração e transformar uma realidade histórica de pobreza e morte. Eles podem ser à esquerda ou à direita, eles oferecem a salvação completa, uma mudança total nas estruturas, embora muitas vezes levem à morte: Auschwitz, Gulag soviético, Hiroshima, ataques ao World Trade Center em Nova York etc.
Etimologicamente messianismo vem do hebraico “messias”, que significa “ungido” e em grego é traduzido como “cristo”. O messianismo tem raízes judaico-cristãs, embora se desenvolva por canais seculares ou ateus. Talvez esta origem religiosa explique porque muitos messianismos são vividos com um fervor semelhante ao fervor religioso. Mesmo em países democráticos, a propaganda eleitoral tem um sotaque messiânico: “Vote no nosso partido e tudo vai melhorar.”
É impossível neste breve espaço abordar o tema do messianismo, oferecemos apenas alguns elementos para reflexão e diálogo. Pertencem aos messianismos, a Revolução Francesa e a Revolução Russa de 1917, o Nacional Socialismo Hitlerista do Terceiro Reich (Terceiro Reino), o nacional-catolicismo franquista, os movimentos anticoloniais do terceiro mundo, a Primavera Árabe, a luta de Mandela contra o apartheid sul-africano, o movimento não violento de Gandhi, a luta de Luther King contra o racismo, os movimentos feministas, ambientalistas, indigenistas, sem-terra, LGBTQI+, anti-tortura e anti-tráfico, mas também o peronismo, o zapatismo, o sandinismo, o socialismo do século 21 dos países bolivarianos, o “América primeiro” de Trump, a réplica brasileira de uma política anti-ecológica e anti-indígena etc.
A atual pandemia feriu mortalmente os modernos messianismos da ciência e do progresso, o estado de bem-estar neoliberal, a segurança e a afirmação de Fukuyama de que agora chegamos ao fim da história. Agora eles querem nos consolar que em breve voltaremos à normalidade de antes. Mas essa “normalidade” tem causado desigualdades sociais, venda de armas, guerras, violência e destruição da natureza, fome, machismo e feminicídios, migrações, morte de crianças, abusos sexuais, vítimas e caos. Não podemos voltar a essa “normalidade”.
É preciso discernir os messianismos, para isso ajuda ir às origens bíblicas. Os profetas do Primeiro Testamento anunciaram um Messias da família de Davi. Os Evangelhos, principalmente o Evangelho de Mateus que se dirige aos cristãos de origem judaica, anuncia Jesus Cristo, filho David e Abraão, confessa que Jesus de Nazaré é o Messias ou Cristo, anunciado pelos profetas. Em seu batismo, Jesus é ungido pelo Espírito como o Messias e o Pai o proclama seu Filho amado. Jesus vai ao deserto para discernir como deve ser seu messianismo.
Seus contemporâneos, que viveram sob a opressão do Império Romano e da teocracia sacerdotal, esperavam um Messias davídico e político que os libertasse de Roma e da hipocrisia religiosa. Jesus não optou por um messianismo davídico de poder, riqueza e prestígio, mas por um messianismo nazareno de serviço humilde .
O teólogo biblista brasileiro Jaldemir Vitório, apresenta-nos características fundamentais da utopia do Reino de Deus segundo o Evangelho de Mateus: as bem-aventuranças, a fraternidade local e universal, o amor, o perdão sem vingança, a não violência, a predileção pelos marginalizados (crianças, mulheres , doentes, pecadores), o não servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro, o procurar fazer a vontade do Pai, o confiar em sua misericórdia e a certeza de que os pobres serão nossos juízes no julgamento final da história.
Jesus, para evitar confusão, afirma que seu messianismo passa pela cruz, consequência da rejeição da teocracia judaica e do Império Romano ao seu projeto do Reino de Deus: Jesus reina da cruz . É a luta entre o Reino e o anti-Reino, mas a última palavra não é a cruz ou o túmulo, mas a ressurreição, a Páscoa e o dom do Espírito à sua comunidade e ao mundo. Seu Reino é uma alternativa à sociedade mundana, um Reino que já começa na história como uma pequena semente, mas cuja plenitude é escatológica, apocalíptica. Esses critérios evangélicos nos ajudam a discernir messianismos na sociedade e na Igreja.
Lamentavelmente, os messianismos humanos frequentemente se desviam do ethos do Reino de Deus de Jesus e produzem muitas vítimas. Isso acontece também na Igreja, na qual o Reino muitas vezes é reduzido a doutrinas, normas e ritos, a utopia do Reino torna-se mundana, como se a Igreja já fosse o Reino definitivo, a missão muitas vezes tem se degenera em proselitismos, a unidade eclesial é quebrada, as elites eclesiais se distanciam do povo e muitos cristãos corrompem a mensagem do Reino: lucro, violência, destruição da natureza, vítimas.
Mas o Espírito prometido por Jesus à Igreja e à humanidade até o fim da história está presente e em ação, não está em greve, mas sempre desperta, na Igreja e na sociedade, profetas, movimentos e comunidades proféticas que atualizam o messianismo de Jesus. Hoje Francisco encoraja os cristãos a viverem a alegria do Evangelho, defende uma Igreja dos pobres e na saída, pirâmide invertida, poliedro, promove a fraternidade universal, o cuidado pela casa comum e o sonho de um mundo diferente e melhor. A pandemia é um sinal dos tempos que nos instiga a voltar ao ethos do Reino, à fraternidade, ao cuidado da criação e à confiança em um Deus Pai de todos.
O que podemos fazer agora? Aprendermos com o passado, discernirmos o momento presente, nos converter novamente ao Reino de Deus, caminhar humildemente na história diante de Deus, semear amor, direito e justiça e esperar, contra toda esperança, o dia em que o Senhor faça novas todas as coisas, enxugue todas as lágrimas e não permita haver mais morte ou choro (Apocalipse 21,4-5).
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