Nesta terceira e última parte do artigo, o autor, Austen Ivereigh, mostra que uma vez apreendido o discernimento do Papa, fica mais claro por que o pontificado de Francisco coloca tal ênfase no encontro com a misericórdia de Deus, e por que ele está convencido de que a Igreja deve ser “próxima e concreta” para proclamar o Deus vivo em uma era de tecnocracia e secularização. Desse modo, podemos entender o esforço do papa Francisco para refocalizar a Igreja, colocando a misericórdia e as bem-aventuranças como pedra angular de sua evangelização.
Recordamos que nas duas partes anteriores, já publicadas aqui no Observatório, o autor explicita o discernimento dos sinais dos tempos na América Latina feito por Bergoglio antes e depois de Aparecida e, logo depois, mostra por que uma parte desse discernimento era que a Igreja universal tinha sucumbido às tentações da desolação e estava deixando de evangelizar. Vale a pena conferir.
(Cadernos Teologia Pública Ano XV – Vol. 15 – No 139 – 2018, p. 15-19)
3. Evangelização através da misericórdia e das Beatitudes
Na missa celebrada em Assunção em julho de 2015, Francisco convidou as pessoas a não ver a missão e a evangelização em termos de planos e programas, de estratégias, táticas, manobras, técnicas, como se elas dependessem do poder de nossos argumentos. “Na lógica do Evangelho, não se convence [as pessoas] com os argumentos, as estratégias, as táticas, mas aprendendo a alojar, a hospedar.” (14). A evangelização tem a ver com a criação de espaço para a conversão – oportunidades para a graça de Deus alcançar as pessoas, o que significa aceitar e compreender as limitações e pressões sob as quais elas atuam. Ao descrever, em Santiago, uma Igreja consoladora que se coloca a serviço, Francisco disse que “o problema não está em dar de comer ao pobre, vestir o nu, assistir o doente, mas em considerar que o pobre, o nu, o doente, o preso e o sem-teto têm a dignidade de se sentar às nossas mesas, sentir-se ‘em casa’ entre nós, sentir-se família. Este é o sinal de que o Reino de Deus está no meio de nós. É o sinal duma Igreja que foi ferida pelo seu pecado, foi cumulada de misericórdia pelo seu Senhor, e foi tornada profética por vocação” (15).
Muitas das reformas e iniciativas de Francisco – os Sínodos, Amoris Laetitia, o Ano da Misericórdia – têm essa finalidade: incentivar a abertura para a graça. Como ele diz no capítulo 2 de Amoris Laetitia: “Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas”. Não se ajuda as pessoas a casar e a ficar casadas simplesmente opondo-se às leis sobre o divórcio ou defendendo o princípio da indissolubilidade, e sim compreendendo que os sistemas de apoio dos quais as famílias dependeram durante muito tempo estão se enfraquecendo. As pessoas precisam de ajuda, e elas também já estão recebendo essa ajuda – graças a Deus – em situações que talvez estejam longe de serem ideais. A palavra “graça” aparece quase 30 vezes em Amoris Laetitia, que não apenas ensina a verdade sobre o matrimônio, mas mostra como a graça de Deus nos possibilita viver vidas de amor que se doa.
No capítulo 8, Amoris Laetitia oferece um paradigma para a Igreja evangelizar as vítimas de um mundo em fluxo: um movimento tripartite de acompanhamento, discernimento e integração. Esses três passos refletem o movimento da misericórdia: perceber a necessidade (estar consciente de sofrimento e angústia), responder concretamente (as obras de misericórdia, que respondem a todos os tipos de necessidades) e um terceiro estágio que inclui integrar, incorporar, salvar, o que implica uma atenção cuidadosa à atuação da graça na vida fragmentada das pessoas. Nesses três passos da misericórdia nós vivenciamos, literalmente, o amor salvador de Deus. Ser salvo por Cristo é ser salvo dessa maneira, e evangelizar é oferecer essa experiência. Trata-se de uma oferta sempre acompanhada de alegria, porque surge da lembrança agradecida da ação de Deus em nós – razão pela qual Francisco insiste tanto que nos esforcemos para lembrar-nos dessa ação em nossa vida e na história de nossos países (16).
E essa é a razão pela qual, como Francisco descreve muito bem em Gaudete et Exsultate, a santidade significa ser misericordioso e agir misericordiosamente. Nós nos tornamos pessoas cristãs não por meio de nossa obediência à lei (ou a preceitos éticos), e sim sob o efeito da graça de Deus, da qual se segue a conversão ética. Uma comunidade evangelizadora, diz o Papa em Evangelii Gaudium, “vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva” (17). Ela acolhe a vida humana, aproxima-se, toca a carne sofredora de Cristo em outras pessoas e se coloca ao seu lado – ela encarna o Deus que representa. Sua linguagem é pastoral: acessível, humana, simples, linguagem de consolação e acompanhamento. Mas ela também é direta e destemida, sem medo de denunciar, com coragem profética, todas as condições que oprimem os mais pobres e vulneráveis e impedem o desenvolvimento humano.
Ao procurar afastar a Igreja de seu “desvio eticista” para voltar a se focalizar em Cristo e Sua graça, Francisco quer que peçamos a graça da consolação. Quando Santo Inácio falava de “consolação” nos Exercícios, ele se referia a “todo aumento na esperança, na fé e na caridade, a toda alegria interior” – o termo em espanhol é leticia – “que conclama e atrai para coisas celestiais”. Olhando-se os títulos de suas três exortações apostólicas – Evangelii Gaudium, Amoris Laetitiae Gaudete et Exsultate –, fica claro que ele acha que há algo faltando, algo que ele está tentando colocar de volta onde deveria estar. Em 2016, Francisco disse aos jesuítas – mas isso se aplica a todos os evangelizadores – que a “tarefa própria” deles era “consolar o povo fiel e ajudar com o discernimento a fim de que o inimigo da natureza humana não nos tire a alegria: a alegria de evangelizar, a alegria da família, a alegria da Igreja, a alegria da criação…” (18).
Discernimento significa entender as formas pelas quais a graça de Deus está tentando nos alcançar e o que nos impede de nos abrir para ela. O “desvio eticista” não pode oferecer alegria porque não consegue discernir, mas apenas repetir rigidamente a verdade em uma linguagem de condenação e lamentação. Em sua pior forma, essa proclamação é corrompida pelas heresias que Francisco tem salientado coerentemente como obstáculos à evangelização, mais recentemente em Gaudete et Exsultate (19). O gnosticismo e o pelagianismo são tristes porque eles dependem de nosso conhecimento e de nossa vontade, e não da graça de Deus. Eles são desprovidos de misericórdia, porque são ideologias ou códigos morais; e são inflexíveis, porque depositam sua esperança na perfeição da Igreja como instituição ou em programas e estruturas, que fracassarão inevitavelmente. Não são Boa Nova para os pobres, porque pressupõem uma prosperidade e moralidade de classe média e uma formação universitária. O que é Boa Nova, está nos dizendo Francisco em Evangelii Gaudium, é que precisamos aprender dos pobres que sabem pedir a ajuda de Deus. O que é Boa Nova é a descoberta de que a Igreja não se encontra fora de nossa sina, mas entra conosco em nossa noite escura, para caminhar conosco, como o faz Jesus. O que é Boa Nova é que aquilo que muda o mundo é a santidade paciente dos fiéis pobres, “que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus”, como ele diz em Gaudete et Exsultate (20).
O que é Boa Nova é um papado que coloca o compartilhamento da experiência do amor de Cristo no cerne de nossa evangelização. Um mundo em fluxo não necessita de mais conhecimento desencarnado, mas da experiência de um Deus amoroso cuja verdade cativa porque ela é, ao mesmo tempo, boa e bela. Daí a conclamação de Francisco para colocar o foco no amor misericordioso de Deus que precede qualquer obrigação moral ou religiosa de nossa parte – essencialmente, a mensagem da Primeira Semana dos Exercícios (21) – e para encarná-lo. O que melhor comunica “o cerne do Evangelho são obras de amor ao próximo” (22).
Isso significa discípulos missionários que não constroem cavernas para se esconder dentro delas, mas acendem fogos ao ar livre onde migrantes tiritantes em um mundo líquido possam encontrar segurança e acolhida. A instituição está a serviço da missão, razão pela qual Francisco pode conclamar para um novo paradigma eclesial de modo que “os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um meio proporcionando mais à evangelização do mundo atual do que à autopreservação [da Igreja]”. E significa uma nova abertura para o Espírito Santo. O “vento de Pentecostes” do Concílio Vaticano II é a energia que está por trás de Evangelii Gaudium, que faz quase 50 referências ao Espírito Santo e a suas características e seus frutos, como, por exemplo, liberdade, destemor e novidade.
Conclusão
A Opção de Francisco é o fruto de uma vida inteira de discernimento por parte de um papa jesuíta profundamente atento à sua época, e especificamente do discernimento da Igreja latino-americana na primeira década do novo milênio. Ele percebeu que, muitas vezes, a Igreja havia reagido mal à ameaça representada pela tecnocracia globalizada, retirando-se para uma postura defensiva e ética decorrente da desolação. Bento XVI compartilhava essa preocupação e, permitindo e incentivando a Conferência de Aparecida, criou espaço para que o Espírito Santo fizesse emergir, a partir da América Latina, uma visão renovada que podia ser percebida como um novo Pentecostes no Sínodo de 2012.
Francisco fez da visão de Aparecida a fonte da Igreja universal. Justamente porque é mais difícil viver a vida cristã em um contexto de um abismo cada vez maior entre a sociedade e a Igreja, tanto mais importante é facilitar a graça de que as pessoas necessitam para ser santas, e tanto mais importante é que nossa proclamação nasça da experiência vivida dessa graça. Daí o foco na misericórdia, no querigma, no encontro pessoal com Cristo.
A Opção de Francisco não é a “Opção de Bento”, mas foi, ao menos, a opção favorecida pelo Papa Bento e por São Bento de Núrsia. Ela significa colocar o encontro com a misericórdia de Cristo no centro de um mundo em fluxo, e começar de novo a partir daí.
Notas:
- 14. Homilia, Campo Grande de Ñu Guazú, Assunção, 12 de julho de 2015.
- 15. Discurso do Santo Padre, Catedral de Santiago, 16 de janeiro de 2018.
- 16. EG 13.
- 17. EG 24.
- 18. EE n. 316. Francisco, Discurso aos participantes na 36a Congregação Geral da Companhia de Jesus, Auditório da Cúria Geral da Companhia de Jesus, 24 de outubro de 2016 (www.gc36.org).
- 19. E, anteriormente, em seu discurso à liderança do CELAM no Rio de Janeiro em 28 de julho de 2013; em seu discurso à Igreja italiana em Florença em 25 de novembro de 2015; e na carta da CDFPlacuit Deo (“Sobre alguns aspectos da salvação cristã”), de 22 de fevereiro de 2018.
- 20. GE n. 7.
- 21. EG n. 15, 112, 115-116, 165.
- 22. EG n. 107, 37, 113.
Austen Ivereigh. Escritor e jornalista britânico especializado na Igreja Católica e no papa- do de Francisco. Possui doutorado pela Universidade de Oxford sobre o tema da Igreja e da política na Argentina, no qual ele se baseou para escrever sua biografia autorizada do Papa Francisco, Francisco, o grande reformador: os caminhos de um papa radical.
Fonte:
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