Neste artigo, mostramos como a opção Francisco foi o resultado de um sofisticado discernimento dos sinais da época da Igreja latino-americana, parte do qual foi um diagnóstico de onde a Igreja ocidental errara em sua resposta temerosa ao secularismo. Uma vez apreendido esse discernimento, fica mais claro por que o pontificado de Francisco coloca tal ênfase no encontro com a misericórdia de Deus, e por que ele está convencido de que a Igreja deve ser “próxima e concreta” para proclamar o Deus vivo em uma era de tecnocracia e secularização.
(Cadernos Teologia Pública Ano XV – Vol. 15 – No 139 – 2018, p. 03-08)
Introdução
No ano passado, foi lançado nos Estados Unidos um livro amplamente discutido cujo título é The Benedict Option: A Strategy for Christians in a Post-Christian Nation [A opção de Bento: uma estratégia para os cristãos em uma nação pós-cristã]. Embora seja citado com frequência nesse livro, o Bento do título não é Bento XVI, e sim São Bento de Núrsia, o fundador do monasticismo ocidental. O argumento de seu autor, Rod Dreher, é que entramos em uma nova era pagã de trevas caracterizada por liquidez e dissolução, em que o capitalismo de consumo massivo e o individualismo liberal alcançaram uma vitória decisiva. As tentativas de conquistar a praça pública foram perdidas, e, em vez de investir energias em batalhas políticas que não podem ser vencidas, o que as pessoas cristãs devem fazer agora é bater em retirada estratégica para o que Dreher chama de “comunidades de fé estáveis”, onde, à semelhança dos monastérios da Idade Média incipiente, elas possam “construir um estilo de vida cristão que represente uma ilha de santidade e estabilidade em meio à maré alta da modernidade líquida” (1).
Só um americano cuja visão de mundo esteja moldada por uma leitura calvinista de Santo Agostinho poderia ver a relação do cristianismo com o mundo em termos tão dualistas e fazer uma leitura tão equivocada do monasticismo. E parece que Dreher nunca ouviu falar do Concílio Vaticano II, que há muito preparou a Igreja para o colapso da cristandade lamentado por ele. Mas menciono o livro de Dreher porque em um aspecto importante ele e o papa Francisco compartilham de uma concepção comum. Ambos têm uma concepção severa, apocalíptica até, da modernidade contemporânea como triunfo da tecnocracia globalizada que está desintegrando instituições e desfazendo vínculos de pertença. Ambos veem o crescente desligamento da cultura e do direito ocidentais do ethos cristão. E ambos creem que é miopia investir energia e recursos no apego a espaços de poder e privilégio.
Francisco é, quando muito, até mais apocalíptico do que Dreher. Pensemos em sua avaliação sombria da tecnocracia globalizada em Laudato Si’, ou no documento preparatório para o Sínodo de outubro, ou no discurso que fez na Universidade Católica de Santiago do Chile em janeiro. Naquele discurso ele falou, em uma linguagem normalmente associada a uma perspectiva conservadora, do colapso cultural pós-1968 e da perda da percepção de povo, família e nação, além de advertir que a vida se tornaria cada vez mais fragmentada, conflituosa e violenta (2). Francisco pode ser jovial e energizado pela esperança, mas não é um papa liberal com uma visão otimista do mundo.
Ainda assim, a opção de Francisco é quase exatamente o oposto da opção de Bento proposta por Dreher. Ela é uma conclamação a não bater em retirada para bunkers, trancar as portas e criar cidadelas jansenistas, e sim justamente o contrário: evangelizar, sair em missão e escancarar as portas. A liquidez que se encontra lá fora não é uma razão para erguer a ponte levadiça, e sim para construir pontes e lançar balsas de salvamento, bem como para reconstruir a partir de baixo.
A “Opção de Francisco” é essencialmente a resposta dada no grande encontro do CELAM em Aparecida, em 2007, desenvolvida para a Igreja universal em Evangelii Gaudium. A evangelização do mundo atual em fluxo exige uma conversão pastoral, enraizada em uma experiência individual e eclesial da misericórdia de Cristo, que gera discípulos missionários. Mas por que era necessário que a Igreja latino-americana conclamasse para uma conversão pastoral e missionária? O que estava falhando no modelo de evangelização da Igreja eurocêntrica para o qual a Conferência de Aparecida e o papado de Francisco foram a resposta do Espírito Santo? E qual é essa resposta?
Apresento isso em três partes. 1. Começo com o discernimento dos sinais dos tempos na América Latina antes e depois de Aparecida. 2. Depois explico por que uma parte desse discernimento era que a Igreja universal tinha sucumbido às tentações da desolação e estava deixando de evangelizar. 3. A terceira parte explica a tentativa de Francisco de refocalizar a Igreja e por que a misericórdia e as beatitudes são a pedra angular de sua evangelização.
1. A mudança de era: tribulação e conversão
Aparecida foi fruto do mais sofisticado discernimento dos sinais dos tempos já acontecido na Igreja em qualquer parte do mundo. Carlos Aguiar Retes, na época secretário-geral do CELAM, a quem Francisco nomeou primaz do México recentemente, cotejou as percepções em um texto importante de 2003 intitulado “Globalização e nova evangelização na América Latina e no Caribe”, que mostra como as forças da tecnocracia e globalização – o “principal detonador e acelerador da pós-modernidade” – estavam acabando com a pertença débil do cristianismo cultural, ao mesmo tempo que traziam um novo pluralismo junto com novas formas de exclusão social e econômica acompanhadas de concentração da riqueza. Como se sabe, a Conferência de Aparecida não falou de uma era de mudança, e sim de uma mudança de era – un cambio de época, e não una época de cambio – em que uma nova turbulência engendrada por uma nova fase da modernidade marcada pela informação e não pela indústria, pelo digital e não pelo mecânico, estava apresentando desafios inteiramente novos.
Essa mudança de era exigia uma nova evangelização. Ela não poderia ser primordialmente intelectual, porque a racionalidade ocidental estava em crise. Tampouco poderia se basear em estruturas e alianças de poder que mantinham a Igreja distante das pessoas comuns. A tarefa consistia em ajudar as pessoas fiéis a ter um encontro pessoal com Jesus Cristo e a vivenciar a misericórdia transformadora de Deus, em “novos círculos de discipulado em que nossos corações possam encontrar as respostas a nossas mais profundas ansiedades”, de oração e leitura do Evangelho. Ao mesmo tempo, a mudança de era exigia que a Igreja se colocasse junto às pessoas crucificadas pela nova economia global, acolhendo não apenas aquelas que eram pobres em sentido material, mas vítimas de exclusão e solidão em suas muitas formas novas. Em um novo contexto de pluralismo cultural e religioso, os católicos precisavam estar arraigados e ter clareza em sua pertença, ao mesmo tempo que trabalhavam ativamente para forjar a unidade a partir de uma diversidade reconciliada construída por meio do diálogo e do testemunho compartilhado (3).
A Conferência de Aparecida pressupôs que o cristianismo está sendo arrancado para fora do direito e da cultura sob a pressão do individualismo secular trazido pela tecnocracia globalizada. “Não resistiria aos embates do tempo uma fé católica reduzida a uma bagagem, a um elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos, à repetição de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou crispados que não convertem a vida dos batizados”, advertiu Aparecida, acrescentando que a passagem de uma pastoral de conservação para um ministério pastoral missionário exigiria “reformas espirituais, pastorais e também institucionais”, para fazer “com que a Igreja se manifeste como mãe que vai ao encontro, uma casa acolhedora, uma escola permanente de comunhão missionária” (4). A Conferência conclamou a “repensar profundamente” a missão e presença da Igreja com base em um “encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo, que desperta discípulos e missionários”.
Um ano depois de Aparecida, o Cardeal Bergoglio falou dessa mudança a seu conselho de presbíteros, observando que “o elemento próprio da ‘mudança de época’ é que as coisas não estão mais em seu lugar […] A maneira de nos situarmos na história mudou […] Provavelmente o que nos parecia normal na família, na Igreja, na sociedade e no mundo parece que não voltará a ser desse modo”. Continuou afirmando que, “longe de lamentar ou condenar a situação, Aparecida reconhece que não tem as respostas aos problemas e, por isso, é um convite para discernir, à luz do Espírito Santo, de que maneira devemos nos pôr a serviço do Reino nessa realidade (DA, 33). O reconhecimento público de que não se sabe exatamente o que se deve fazer é um ato de profunda humildade”. A reação à mudança rápida não deveria consistir em lamentação ou raiva, mas em discernimento: o que o Espírito Santo está pedindo de nós desta época de mudança rápida e liquidez?
Bergoglio continuou falando de uma série de critérios oferecidos por Aparecida, em cujo cerne se encontra uma conversão pastoral que implica uma mudança de mentalidade, de atitudes e comportamentos. O cambio de época era um convite para recolocar Cristo no centro. Ele citou o Documento de Aparecida: “Para nos converter em uma Igreja cheia de ímpeto e audácia evangelizadora, temos que ser de novo evangelizados e discípulos fiéis […] somos chamados a ‘recomeçar a partir de Cristo’, a reconhecer e seguir sua Presença com a mesma realidade e novidade, o mesmo poder de afeto, persuasão e esperança, que teve seu encontro com os primeiros discípulos […]”. E resumiu isso na seguinte afirmação: “Uma Igreja de orientação missionária vive uma constante conversão pastoral que leva a assumir novas atitudes e formas de evangelização”. Passou, então, a listar uma série de características dessa nova postura, que, mais tarde, desenvolveria em Evangelii Gaudium (5).
Uma dessas características era a “ação pastoral com coração samaritano”, que vá ao encontro das pessoas em suas necessidades e sofrimentos concretos. Ele via o “desarraigamento” (“dessocialização”) de três formas principais: em termos afetivos, no sentido de que a dissolução dos vínculos de pertença das famílias, comunidades e instituições está produzindo uma profunda angústia emocional e psicológica; em termos existenciais, no sentido de que é mais difícil ter uma identidade e autopercepção clara, fazer planos e construir um futuro; e em termos espirituais, na perda da transcendência, de sinais e símbolos que conectem o presente com o eterno, que a secularização está trazendo. Como Bom Samaritano, a resposta da Igreja a essa vulnerabilidade também era tríplice: ajudar as pessoas a se reconectar com a criação e o mundo como criaturas de Deus, a conhecer diretamente Seu amor e misericórdia; a vivenciar na família e na comunidade, os vínculos de confiança e amor incondicional que construam resiliência, caráter e autoestima; e ajudar as pessoas a encontrar refúgio – lugares de paz, privacidade e oração seguros das pressões incessantes do paradigma tecnocrático, lugares a partir dos quais se possam discernir os espíritos e abrir canais da graça de Deus.
Francisco tem falado com frequência da necessidade de que a Igreja seja próxima e concreta. Em uma sociedade líquida, tecnocrática, a Igreja precisa mostrar um Deus que atenta ao particular, à pessoa, às realidades e não às ideias. Proximidade e concretude são os sinais da encarnação. É assim que Deus salva. Bergoglio vem insistindo nisso ao menos desde 1997, quando, como bispo auxiliar, falou no sínodo sobre as Américas sobre o “desencantamento” do mundo contemporâneo. Ante uma falta de esperança, disse ele, “o Senhor fica tocado, desce e se aproxima […] Precisamos redescobrir Sua maneira de aproximar-se a fim de evangelizar. A palavra-chave é ‘proximidade’. Encontro, conversão, comunhão e solidariedade são as categorias que expressam a proximidade […] que abre o caminho para a esperança”.
Notas:
- 1. DREHER, Rod. The Benedict Option: A Strategy for Christians in a post-Christian Nation. New York: Random House, 2017, p. 54.
- 2. Francisco, Visita à Pontifícia Universidade Católica do Chile, 17 de janeiro de 2018.
- 3. AGUIAR RETES, Carlos. Globalización y nueva evangelización en América Latina y el Caribe: Reflexiones del CELAM 1999-2003. Bogotá: Secretaría General, 3 de março de 2003. (Doc. CELAM, 165).
- 4. CELAM, Documento de Aparecida [DA], n. 367, 370.
- 5. BERGOGLIO, Jorge Mario. Volver a las raíces de la fe: la misión como propuesta y desafío. In: SPADARO, A. (ed.). En tus ojos está mi palabra: homilías y discursos de Buenos Aires, 1999-2013. Madrid: Claretianas, 2018, p. 747.
Austen Ivereigh. Escritor e jornalista britânico especializado na Igreja Católica e no papa- do de Francisco. Possui doutorado pela Universidade de Oxford sobre o tema da Igreja e da política na Argentina, no qual ele se baseou para escrever sua biografia autorizada do Papa Francisco, Francisco, o grande reformador: os caminhos de um papa radical.
clamava por ser evangelizada. O efeito do Espírito San- to, afirmou ele naquela ocasião, era libertar a Igreja da “suficiência de nosso próprio conhecimento que leva à gnose” e, ao impeli-la a evangelizar, “liberta-nos de nos tornarmos uma Igreja autorreferencial, como a mulher encurvada no Evangelho que não faz outra coisa a não ser olhar para si mesma, enquanto o povo de Deus está em outro lugar”13.