A divisão do cristianismo está fundada na falta de diálogo, escuta e entendimento de seus elementos humanos, bem como uma teologia atenta ao momento histórico. O diálogo inter-religioso se mostra como caminho urgente, mas pouco ainda desenvolvido em contextos iminentes ao conflito. A guerra na Ucrânia se torna o novo ponto de inflexão deste diálogo mais que necessário, urgente. Acompanhe a opinião de Andrea Riccardi, historiador italiano, fundador da comunidade de Santo Egídio, na entrevista originalmente publicada por Paolo Viana no portal Avvenire e traduzida para o portugês por Luisa Rabolini:
♦ Professor Riccardi, há seis dias, a comunidade de Santo Egídio propôs fazer de Kiev uma “cidade aberta” e, em vez disso, a capital ucraniana ainda está sob ameaça das bombas e tanques de Moscou. É realista imaginar esta solução?
Ainda é possível salvar Kiev da destruição – responde Andrea Riccardi, historiador, fundador da comunidade de Santo Egídio e ministro do governo Monti -, na luta casa por casa, rua por rua, e é preciso fazer isso para salvar vidas humanas, pelo valor da cidade – Kiev é a Jerusalém da ortodoxia da Rus’ e, portanto, para a ortodoxia bielorrussa russa e ucraniana -, e porque tirar Kiev da guerra significa tirar espaço do confronto armado. Kiev não deve se tornar Aleppo.
♦ O que você acha da proposta russa de abrir corredores humanitários?
Os corredores humanitários são sempre um objetivo de quem quer a paz, mas em geral são algo diferente das propostas russas de hoje. Sem falar que os corredores para fugir já existem e os ucranianos os estão usando.
♦ Os ucranianos, no entanto, gostariam de estar mais protegidos nesta fuga. A decisão da OTAN de não declarar a Zona de exclusão aérea é um ato de fraqueza e causará um massacre, como afirma Zelensky?
Entendo o presidente ucraniano, mas o Ocidente tem duas responsabilidades: com a Ucrânia e com o Ocidente. Li a decisão de não declarar a Zona de exclusão aérea, que também poderia levar a uma escalada do conflito com a Rússia, como um ato de responsabilidade e não de fraqueza.
♦ Como lê a resistência ucraniana?
É uma guerra estranha, que não esperávamos e que Putin também não esperava. No entanto, era evidente que o envio de jovens russos criados em tempos de paz e jovens ucranianos que eram irmãos dos russos há anos – estou pensando nos laços criados por viagens, comércio e especialmente mídias sociais – teria provocado diferenças. Surge a grande contradição dos laços globais que vão além das fronteiras. Cada um pertence ao seu próprio país e a muito mais, e cada um sente que a guerra está rompendo laços importantes. A leitura russa de que a Ucrânia teria caído facilmente se mostrou muito errada: vi personalidades pró-Rússia e de língua russa se posicionarem contra esse conflito. Li o metropolita chefe da Igreja Ortodoxa ucraniana dirigindo-se ao Patriarca Kirill e Putin defendendo os argumentos ucranianos.
♦ Há igrejas ortodoxas em guerra, há católicos russos e católicos ucranianos em guerra, sem falar nas diferenças entre católicos e ortodoxos nos países vizinhos. A teologia muda com base em onde a pessoa está?
O catolicismo é uma grande “internacional” e para a Igreja Católica a guerra é um terreno impossível porque os católicos estão sempre deste lado e do outro. Somos uma minoria nos dois países em guerra e o verdadeiro drama, quero lembrá-los, é precisamente aquele dos ortodoxos, para não falar da difícil situação dos greco-católicos. As igrejas ortodoxas têm um problema muito sério: a Ortodoxia de Moscou está dividida entre a Rússia e a Ucrânia e o Patriarcado de Moscou está na posição em que Pio XII estava quando foi criticado pelos “silêncios” diante da guerra mundial.
♦ A guerra silenciará o ecumenismo?
O ecumenismo significa paz e a guerra é a derrota das Igrejas. O Patriarca Atenágoras dizia “Igrejas irmãs, povos irmãos”. Esta guerra é objetivamente a derrota do ecumenismo cristão: a ortodoxia já está dividida e neste momento devemos acreditar que a paz será o desafio da Igreja para todo o século que vivemos.
A paz será o desafio da Igreja para todo o século que vivemos.
(Andrea Riccardi)
♦ O mundo católico está fazendo a sua parte?
Surpreende-me até a vitalidade da reflexão em curso no mundo católico, que redescobriu o tema da paz. Como todos os papas, Francisco falou claramente contra a guerra. É claro que, para ser honesto, eu esperava das Igrejas europeias uma resposta mais ativa às palavras do Pontífice. Assim como, da Igreja alemã, um debate sobre o rearmamento da Alemanha. Vejam bem, este não é o tema “usual” para uma discussão eclesial. Aqui não se trata de concordar com as palavras de um documento, mas de tomar partido entre a vida e a morte.
♦ Na Itália ainda haverá divisão sobre a guerra “justa”?
Estou muito angustiado ao ver pessoas fugir e morrer para me preocupar com a “guerra justa”.
♦ Putin é acusado de ser o novo Hitler: historicamente, qual é a diferença entre a Polônia de 1939 e a Ucrânia de 2022?
A história deve esclarecer-nos, mas a história não é aquela dos cartões postais, a história não julga, a história compreende. A Rússia foi humilhada e cercada pela OTAN e está se relançando através de uma presença imperial não apenas na Ucrânia. Não sou o defensor de Putin, mas existem dinâmicas e existe um cenário. A cada dia que passa fica mais difícil, mas devemos sair dessa guerra deixando uma rota de fuga não apenas para os refugiados, mas também para o líder russo.
♦ O que você acha dos diálogos de Brest?
Que está faltando um mediador.
♦ Quem poderia ser?
Angela Merkel. Os governos europeus deveriam procurá-la. E rápido.
♦ A famosa “diplomacia paralela” de Santo Egídio caminha nessa direção?
Santo Egídio está se movendo para oferecer solidariedade aos ucranianos, as nossas comunidades na Polônia, Hungria e Eslováquia estão trabalhando. E trabalhamos para Kiev ser uma cidade aberta.
♦ O senhor foi Ministro da Cooperação Internacional e Integração. Como avalia este tsunami humanitário que está assolando a Europa?
Nestas horas, lembro-me das divergências entre os países orientais e ocidentais sobre a gestão dos refugiados sírios. Agora não há mais divisões e isso é bom. Espero que a Polônia peça aos outros parceiros europeus que assumam quotas de refugiados e espero uma resposta rápida e positiva. Estamos falando de seis milhões de pessoas, uma maré difícil de administrar. Quando temos medo de tantas pessoasem fuga, precisamos lembrar que eles estão fugindo da morte e que são as cuidadoras que cuidam de nossas mães e os caminhoneiros que abastecem as nossas lojas… pessoas como nós. Também desta vez.
♦ Esta guerra mudará a Europa?
Espero que sim e acredito que seja inevitável. O rearmamento alemão deveria ocorrer no quadro de um instrumento de defesa europeu que se torna urgente e necessário, bem como de uma política externa comum. Acredito que a guerra ucraniana tenha compactado ainda mais os europeus, depois que a pandemia os convenceu de que só podemos nos salvar juntos. Mas, repito, agora devemos parar a guerra, porque as guerras do nosso século são intermináveis. Que o diga a Síria.
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Andrea Riccardi
É um historiador e acadêmico italiano. Graduado em História Contemporânea pela Universidade de Estudos de Roma III, é notável estudioso da Igreja na Idade Moderna e Contemporânea, bem como fundador da Comunidade de Santo Egídio.
Paolo Viana
É repórter enviado especial do portal italiano Avvenire. Graduado em Ciências Políticas pela Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão.
Luisa Rabolini
Possui graduação em Biologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduação em Letras – Tradutor e Intérprete pela mesma instituição. Atualmente é tradutora de italiano para o Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/616667-kiev-nao-pode-ser-a-nova-aleppo-a-guerra-derrotada-do-ecumenismo-entrevista-com-andrea-riccardi