A graça de ser pai e o ser mãe hoje
Para compreender e refletir sobre o ser pai e o ser mãe atualmente precisamos ter presente e considerar, com seriedade, as profundas mudanças culturais dos últimos tempos. Uma das características mais marcantes das sociedades contemporâneas ocidentais é a centralidade crescente da subjetividade na vida das pessoas: é a emergência da cultura da individualidade. Isso significa concretamente que, cada vez mais cedo, as experiências de sermos indivíduos e sujeitos, os construtores de nossa vida e de nossa história, vão sendo favorecidas.
Com isso, no contexto atual a construção da identidade de cada pessoa – ainda que sempre marcada por nossas vivências e relações no seio da família, da comunidade e da sociedade – é impulsionada como busca e conquista crescente da autonomia, exercício do livre arbítrio e da individualidade nas diversas escolhas e tomadas de decisão cotidiana. Oferecer a cada criança um espaço de vivências na família, na escola, na comunidade, na religião… no qual ela se sinta amada, acolhida, cuidada e dialogicamente orientada é decisivo.
Vivemos em outro contexto sociocultural
Consideremos como marco histórico de mudança de época, as transformações que eclodiram a partir dos anos 60 do século passado. De lá para cá, houve um crescente despertar da consciência da individualidade. Desse modo, com o senso da individualidade passamos culturalmente a desejar intensamente, e cada vez mais cedo, assumir o controle e exercer o nosso poder interior: poder de tomar iniciativa, de decidir, de participar, de ser ouvido, respeitado e reconhecido em nossa singularidade. O ser humano, de certa forma, passou a não suportar que ninguém além de dele mesmo – nem os pais, nem professores, nem a Igreja, nem o Estado, nem qualquer outra autoridade –, decida, de forma coercitiva, os rumos de nossa própria vida. Sobre o que vamos pensar ou deixar de pensar, o que vamos fazer ou deixar de fazer é considerado como um âmbito que pertence exclusivamente a cada um de nós. Eis a conquista da autonomia!
No final dos anos 70, Belchior e José Luiz Penna, em contexto de ditadura militar, conseguiram expressar esta experiência subjetiva, de forma lapidar, na letra da canção Comentário a respeito de John:
“Saia do meu caminho
Eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida a minha vida
Não preciso que me digam
De que lado nasce o Sol
Porque bate lá meu coração.”
Sim, o coração do homem e da mulher que passaram pela revolução da subjetividade busca, quase que instintivamente, assumir o leme do barco da própria vida. Além de querer, tem a pretensão de saber encontrar sozinho a direção do Sol. Esta não é a experiência de alguns apenas, mas a condição humana predominante no contexto cultural urbano na família, na comunidade e na sociedade. Esta condição cultural foi intensificada com a revolução tecnológica das mídias digitais: Internet, smartphone e redes sociais virtuais. Uma definição popular de “digital”: tudo está ao alcance de minhas mãos. A geração que já nasceu neste contexto que dá poder ao indivíduo conectado demonstra ter outra percepção, e muito diferente, nos processos de ensino-aprendizagem. Embora sejamos seres de relação, que aprendem a ser uns com os outros, a relação social dialógica e de mútuo respeito e reconhecimento da dignidade de cada indivíduo será decisiva.
Mas atenção, junto com o senso da individualidade vem sempre a tentação do individualismo. Trata-se da ilusão de podermos ignorar a existência do outro como igual, de desprezar o que pensa diferente, de ignorar a necessidade de estabelecer limites para que possa haver a relação entre pessoas iguais em dignidade, de ignorar a necessidade de respeito ao pacto social. Por isso, mais do que nunca, como nos mostrou Paulo Freire, passa a ser decisiva uma “educação como prática de liberdade”, ou seja, uma educação que acontece em contexto de respeito e reconhecimento mútuo (ninguém suporta mais o autoritarismo: um querer impor ou mandar no outro), de diálogo entre iguais (nada de um querer ensinar para o outro sem ouvir e aprender junto) e de cultivo da consciência de que todos somos iguais em dignidade, humana e cidadã, direitos e deveres.
A pessoa que passou pela revolução da subjetividade – a partir do final dos anos 60 – ou já nasceu no novo contexto cultural por ela criado e transformado pelas mídias digitais, não suportará viver com tranquilidade ou não se sentirá feliz e realizado, sem ser tratado como indivíduo, ou seja, como uma pessoa humana com a dignidade de ser única, livre e capaz de contribuir, de participar e de decidir nos diversos âmbitos em que está inserida. Quer gostemos ou não, a subjetividade foi e ainda está sendo uma revolução cultural transformadora. Ela está a provocar bem mais que uma época de mudanças, mas uma mudança de época na história da humanidade. E já afetou, de forma irreversível, todos os âmbitos da vida: o da individualidade, da família, da escola, do trabalho, da sociedade em geral e, portanto, da religião, do ser Igreja.
O que mudou no modo de ser pai e de ser mãe no contexto atual?
Não é difícil perceber que o jeito de ser pai e de ser mãe de antigamente não funciona bem no contexto atual nem quando é imposto às pessoas. Isso acontece por múltiplas razões. E não é porque estamos perdendo os valores tradicionais de família ou por causa das influências diabólicas da TV e da Internet ou porque os filhos hoje são mais rebeldes do que no passado. Essas são explicações de quem está perdido. A nosso ver, a razão mais decisiva está na libertação da mulher da opressão da cultura patriarcal. Isso provocou e continua a provocar mudanças profundas não apenas na autocompreensão e percepção da mulher. Há um impacto que provocou e continua a provocar crises de identidade e de mentalidade, na autocompreensão e percepção da mulher e do homem. A libertação da mulher das garras do machismo está provocado a libertação do homem também. Não dá mais para ser mulher e mãe ou ser homem e pai como antigamente. Hoje visivelmente constatamos somos muito diferentes de nossos avós. Aqui não se trata de julgar como melhores ou piores, mas diferentes.
A principal mudança cultural visível é que a mentalidade patriarcal dominante passou a ser colocada em xeque pela mulher, bem como pela nova sensibilidade humana que emergiu da revolução da subjetividade. Atualmente criamos as condições culturais para concretizar a igual dignidade entre homens e mulheres. É claro que o machismo continua a existir, não dá para esconder isso debaixo do tapete, mas ele tem cada vez menor poder de convencimento. Aconteceu e continua a acontecer, não sem violência, a emancipação da mulher e a crescente conquista cultural da igual dignidade de gênero. Somos diferentes sim, mas não desiguais na dignidade, no valor, nos direitos e nos deveres.
O espaço da rua e da casa passam a ser divididos e compartilhados, de forma crescente, pelos dois. O homem não é mais o único “provedor”, pois a mulher foi para o mercado de trabalho e, às vezes, chega a conquistar maior salário do que o homem. A mulher não é mais a única “do lar”, pois em muitos lares o homem assume e divide as tarefas domésticas, como também participa mais de perto da criação, da lida diária e da educação dos filhos.
Atualmente, a tendência é que haja maior diálogo, flexibilidade, intercâmbio e corresponsabilidade entre os membros da família. As transformações culturais nos levam a crer que, cada vez mais, os lugares, as funções e os papeis de homem e de mulher, de pai e de mãe, com as devidas diferenças, precisarão ser discutidos, definidos e construídos em cada unidade familiar em clima de respeito mútuo, diálogo e adaptação a cada realidade. Não há mais um padrão cultural dominante como foi durante muito tempo o modelo patriarcal.
Hoje, é visível que os modelos e arranjos familiares se diversificaram muito. De modo que cada unidade familiar, por sua feição e situação específica, tende a ser única. As histórias de vida de quem forma cada família vem provocando mudanças. Embora não se possa generalizar, percebemos que a tendência geral é apostar na emergência de uma cultura do diálogo e do respeito mútuo, com divisão das tarefas familiares e definição conjunta dos papeis e funções de pai e de mãe. Observamos que quando isso não acontece, os vínculos familiares facilmente se desintegram.
Um objetivo que precisa ser abraçado por todos
Em um ponto todos precisamos estar de acordo e ficar atentos: o grande desafio da vida em família, infelizmente, foi e continua a ser, e de muitos modos, a violência doméstica. Todos precisamos assumir o compromisso ético sociopolítico de combater, e de forma contínua coibir não deixando impune, as várias facetas da violência doméstica. Esta é uma espécie de herança maldita da cultura patriarcal.
Esta cultura continua a se perpetuar por mentalidades e práticas. Há ditados e frases machistas que continuam profundamente enraizados em muitas cabeças entre nós. Tais como: “em briga de homem e mulher, ninguém pode meter a colher”; “ele é ciumento, porque me ama”; “homem que é homem não leva desaforo para casa”; “ela apanhou porque mereceu”; “aqui manda quem pode, obedece quem tem juízo”; “é de pequeno que se torce o pepino”; “eu bato, mas é para o bem, para corrigir, para educar, dói mais em mim do que nele” etc. Estas ideias e tantas outras, tão questionáveis, entranhadas nas mentes das pessoas, vem justificando e legitimando o uso da violência na família e tem feito muitas vítimas. Muitas mulheres são agredidas, violentadas e, muitas vezes, mortas, por aqueles que deveriam ser parceiros e companheiros na vida a dois. Muitos filhos e filhas, desde a mais tenra idade, igualmente, são vítimas de maus tratos, covardemente são agredidos e machucados pelos próprios pais, por aqueles que deveriam ser afetuosamente os guardiões, cuidadores e educadores para a vida adulta em sociedade. Infelizmente ainda há muita aceitação, tolerância e impunidade com a violência praticada no seio da família, da comunidade e da sociedade.
Tendências da dinâmica familiar hoje
Na prática, o ser pai e o ser mãe se tornam hoje tarefas cada vez mais próximas e com grande interação e intercâmbio nas lidas cotidianas. Cada vez mais, pais e mães trabalham fora e, de forma alternada, vão para a cozinha, fazem a comida, lavam a louça, arrumam a casa, dão banho nas crianças, trocam a roupa, levam para a escola, pegam no colo, brincam com os filhos etc.
O modo como se concretizam as relações de poder entre as pessoas – na família, na comunidade e na sociedade – precisa ser sempre refletido no contexto em que vivemos. O poder pode ser exercido de muitos modos, por exemplo, desde a forma dialógica e democrática até a forma autoritária e impositiva, com recurso ao uso da violência.
A relação entre pais e filhos também não pode ser mais vivida como antigamente. A autoridade de pai e mãe não é espontânea, nem inquestionável em sua concretização cotidiana. Em contexto de subjetividades afloradas, ela precisa ser construída com carinho, firmeza, coerência, limite e diálogo. Os filhos e filhas precisam ser respeitados como sujeitos, pessoas vocacionadas à autonomia e ao exercício da liberdade e da responsabilidade, mas também precisam aprender e internalizar valores e limites. Eles estão em processo crescente de formação e precisam ser envolvidos, de forma crescente, na prática do diálogo familiar, com respeito mútuo e escuta uns dos outros.
Os pais e mães precisam ser pais e mães para seus filhos e filhas, e não simplesmente colegas. Os filhos e as filhas precisam contemplar na pessoa de seus pais e mães – ou de substitutos na falta dos primeiros – uma boa referência de pessoas adultas, exemplos de caráter e de honestidade, do que significa ser homem e mulher. Isso é decisivo nos primeiros anos de vida, pois “criança vê, criança aprende”. Quando os filhos e as filhas crescem eles conquistarão outros referenciais, mas os pais e as mães funcionam como verdadeiras “plataforma de lançamento” para a vida.
Que tal refletirmos melhor sobre este assunto? Considere as seguintes questões:
- Uma coisa é certa: não dá mais para ser pai e ser mãe hoje do mesmo modo que antigamente. Quais as grandes diferenças entre o modo de exercer o dom de ser pai e de ser mãe antigamente e hoje?
- Como estamos lidando com a cruz da violência doméstica hoje? Em que precisamos melhorar para que não haja mais violência no seio da família?
- Que outras mudanças aconteceram na dinâmica da vida em família que o texto acima não explicita?
- Quais os maiores desafios para exercer bem hoje o dom de ser pai ou de ser mãe?
Sobre o autor:
Teólogo leigo pastoralista e professor. Nascido em 1968, casado há dezenove anos e pai de uma menina de seis anos. Ele é o secretário executivo do Observatório da Evangelização – PUC Minas