Inicio o meu dia movido por um sentimento tristeza e profunda indignação. Apesar de apenas 50% da população brasileira já ter sido imunizada, com as duas doses da vacina, o vírus deixou de ameaçar a vida de nosso povo. Aqueles terráqueos terraplanistas negacionistas, que apostavam na ineficácia da vacina, quebraram as suas caras de pau. Tivéssemos acordado em tempo, não teríamos transformado o Brasil num cemitério a céu aberto, com mais 605 mil pessoas, que perderam as suas vidas, por pura negligencia e irresponsabilidade de nossos governantes de plantão. Resta-nos os anais da história para registrar tamanho obscurantismo. Missão que cabe aos historiadores.
A minha indignação tem nome e sobrenome: a fome e a pressa de viver. Nossa gente está passando fome. Uma fome federal. Fome de não ter o que comer e nem saber quando o terão, dado o desemprego crescente (14 milhões de pessoas), carestia, inflação, consignando uma situação caótica, onde uma parcela considerável de nosso povo vai dormir com fome todos os dias (19 milhões). Um cenário de guerra, levando as pessoas mais pobres a buscar alimentos, onde há somente lixo, no desespero de saciar a sua fome e a dos seus filhos. Sem falar em outro exército de pessoas que passaram a viver em situação de insegurança alimentar (95% da população).
Quem, em algum momento de sua vida, já passou fome, sabe muito bem o que isso significa. Não há coisa mais degradante na vida do que ver uma criança passar fome. Pais e mães tendo o coração transpassado por uma lança de dor, ao ver os seus pequenos pedindo algo para comer e eles sem ter o que fazer. “Que vá trabalhar”, vociferou uma senhora corada e bem vestida, pertencente à elite insensível deste pobre país chamado Brasil. Como se aquelas pessoas que estão passando fome estão nesta condição por causa exclusiva de sua não vontade de querer trabalhar.
Vivemos em um país configurado por uma extrema desigualdade social. Tudo por causa da alta concentração de renda e terras. Um abismo descomunal separa estas duas realidades. Um paraíso em que as suas terras, são as mais férteis e agricultáveis. Não é atoa que somos o segundo maior exportador de grãos do mundo. Um país que alimenta o mundo, mas deixa morrer de fome o seu povo. Além de não matar a fome dos que habitamos aqui, o agro, que não é nada pop, ainda fomenta a desigualdade, criada por este setor. Esta é a conclusão a que chegaram os autores Marco Antônio Mitidiero Júnior e Yamila Goldfarb, demonstrando que o agronegócio não só não traz alimentos para a população brasileira, ainda faz aumentar o alarmante nível da fome. Eles chegaram a esta conclusão, fundamentados num estudo publicado pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) em parceria com a FES Brasil.
Se de um lado o Agro é Fome, conforme constatam estes pesquisadores, de outro, temos os trabalhadores rurais do MST, que trabalham sob outra perspectiva. Além de produzirem organicamente, longe da égide destrutiva do “agro-veneno”, são eles que investem em alimentos que atende à necessidade do mercado interno, contribuindo assim com 70% da alimentação, proveniente da “sagrada” agricultura familiar. Lembrando que não nos alimentamos de comodities, prioridade do Agro, que vende seus produtos envenenados ao mercado externo em dólares. “O Agro não é tech, não é pop, muito menos é tudo. O Agro é fome”, afirmam tais pesquisadores. Esta dinâmica produtiva, adotada em nosso país, faz com que 55% da população brasileira, não tenha certeza se terá o suficiente para se alimentar no dia seguinte. Em quase dois anos de pandemia, ninguém sequer viu o Agro Pop distribuindo alimentos para famílias famintas. Enquanto isso o MST já contabiliza mais de 6 mil toneladas de distribuição de alimentos às famílias em situação de vulnerabilidade social.
“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo”. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”, exprimia assim o nosso profeta, arcebispo emérito de Recife, Dom Hélder Câmara (1909-1999). A fome não é consequente da pandemia. Já convivemos com ela de longa data. Apenas fez acirrar ainda mais este contraste, aumentando o número daqueles que convivem com ela. E as soluções buscadas, no intuito de debelar tal tragédia, são meros engodos para maquiar uma situação grave, como faz o mandatário maior, em baixa popularidade e, movido pelas eleições que se avizinham, como se um auxílio de 400 reais fosse suficiente para matar a fome de uma família. A fome é estrutural e crônica, consequência da sociedade estratificada e profundamente desigual, desde os primórdios das Capitanias Hereditárias (15 grandes faixas de terras – 1534). De saber, como já nos dizia Mahatma Gandhi, “cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome”. Que a nossa indignação nos faça ser construtores de outra realidade possível e que este mantra indígena fortaleça a nossa luta contra a fome: “A terra é santa! A terra é Mãe! A Terra é do índio! A Terra é de Deus! Com as bênçãos do guardião dos povos indígenas, nosso bispo Pedro.
(Os grifos são nossos)
Sobre o autor
Francisco Carlos Machado Alves é mineiro de Montes Claros, mas, desde 1992, a convite de Pedro Casaldáliga, vive e é agente de pastoral em São Félix do Araguaia. Fez das causas indígenas a grande causa de sua vida. Chico Machado, como é conhecido, trabalha com formação continuada de professores indígenas nas escolas das aldeias do Mato Grosso. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Iny (Karajá), dentre outros. Ele foi redentorista, tem mestrado em educação indígena, ele é graduado em filosofia, história e teologia.