Quarta-feira da 32ª semana do tempo comum. Neste ano, a liturgia católica nos propõe os textos do Ano B. Muitos até pensam que estes textos são escolhidos aleatoriamente, mas não é desta forma que as coisas acontecem. A liturgia é como se fosse um tesouro sagrado, uma vez que promove o encontro do Senhor com a comunidade que celebra. Através da liturgia, Deus mesmo vem visitar o seu povo para o alimentar e fortalecê-lo na caminhada pelas estradas da vida. Neste encontro de Deus com o seu povo, a comunidade responde com cânticos, preces e orações apropriadas para cada momento, sempre na perspectiva do Mistério Pascal de Jesus, com sua Paixão, Morte e Ressurreição para nos salvar.
Rezei nesta manhã contemplando a chuvinha que mansamente caia sobre o Araguaia. Chuva de molhar bobo, como as pessoas daqui comentam. Meus convidados que não são nada bobos, ficaram cada qual alojado em seu cantinho. Só se ouvia o barulho dos pingos da chuva molhando o chão. A natureza agradecida louvando a Deus, fazendo crescer o broto e germinar a semente. O mistério sagrado da vida se renovando, propiciando um ar mais respirável para todos. Uma sinfonia perfeita me fazendo lembrar de uma das frases do filosofo clássico grego Aristóteles (384-322a.C) que dizia: “A música é celeste, de natureza divina e de tal beleza que encanta a alma e a eleva acima da sua condição”.
Por falar em música, acordei com o refrão de uma delas em minha memória: “Dizei aos cativos: ‘saí!’ Aos que estão nas trevas: “vinde à luz!” Caminhemos para as fontes, é o Senhor quem nos conduz!” Esta foi uma das canções que marcou muito a nossa caminhada de Igreja, sobretudo na Campanha da Fraternidade de 2014, que tinha como tema: “Fraternidade e Tráfico Humano” e o lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1). Ou seja, apesar de termos sido libertados por Ele, é possível que voltemos a escravidão. Por esta razão é necessário estarmos sempre vigilantes para que mantenhamos a liberdade e nela crescer permanentemente.
Liberdade e escravidão, esta é a tônica de nossas vidas. Nossa sociedade nasceu de um processo cruel de escravização das pessoas. Somos frutos deste processo e não conseguimos nos libertar até os dias atuais. Nosso processo histórico de criação da sociedade brasileira, nasceu da relação que foi estabelecida entre a Casa Grande e a Senzala. Lembrando que o processo de escravização foi implantado no início do século XVI. Foi por volta de 1535 que chegou à cidade de Salvador (BA), o primeiro carregamento de navios, trazendo a bordo, negros escravizados. Este é o triste marco inicial da escravidão no Brasil, que ainda perdura até os nossos dias, apesar dos registros históricos dizerem que terminaria 353 anos depois em 13 de maio de 1888, com a famigerada “Lei Áurea”.
Somos um país de escravizados ainda em pleno século XXI. Se nos primórdios de nosso período colonial, ela foi cruel e desumana, trazemos ainda hoje no nosso DNA as consequências, mesmo passados mais de 130 anos da “abolição”. A pobreza, a violência e a discriminação racista que afetam os negros no Brasil, são um reflexo claro e direto de um país que institucionalizou e normalizou o preconceito contra esse grupo étnico, deixando-o a margem periférica da sociedade. É importante salientar que não somente os quase 7 milhões de negros que aqui chegaram traficados que foram vítimas deste processo. Também milhões de indígenas, agrupados em diversos povos, foram vítimas desta chaga ainda aberta, contra os quais ficou estigmatizado o preconceito e a marginalização social, reduzindo drasticamente a sua população de milhões de habitantes, no século XVI, para cerca de 800 mil, atualmente, segundo dados do IBGE 2010.
A fé é esta força transcendental e transformadora que trazemos dentro de nós. Todavia, não basta ter fé. É preciso acreditar de que somos capazes de fazer o diferente e transformar a realidade, a partir de nós, sendo em nós mesmos a mudança que queremos ver acontecer no mundo. A nossa fé pode nos salvar e instaurar o novo dentro de cada um de nós. “Tua fé te salvou”, disse Jesus àquele pobre homem, que soube voltar atrás e, num gesto de gratidão, agradecer ao Mestre por tê-lo libertado daquela terrível doença que o atormentava. Deus, na pessoa de Jesus, se fazendo amorosidade, misericórdia e compaixão, para que também nós possamos ser pessoas de Deus para com àqueles que convivemos nesta vida. Como nos dizia nosso bispo Pedro, resumindo a nossa atuação neste mundo: fé libertadora; esperança renovada pelo esperançar transformador; teimosia na resistência; na busca incessante da utopia do Reino de justiça e liberdade sem escravidão.
Sobre o autor:
Francisco Carlos Machado Alves é mineiro de Montes Claros, mas, desde 1992, a convite de Pedro Casaldáliga, vive e é agente de pastoral em São Félix do Araguaia. Fez das causas indígenas a grande causa de sua vida. Chico Machado, como é conhecido, trabalha com formação continuada de professores indígenas nas escolas das aldeias do Mato Grosso. Sua atividade pastoral é junto aos povos indígenas da região: Xavante, Kayabi, Iny (Karajá), dentre outros. Ele foi redentorista, tem mestrado em educação indígena, ele é graduado em filosofia, história e teologia. Chico Machado é colaborador do Observatório da Evangelização – PUC Minas.