Quem abraça a ética de Jesus se volta necessariamente para o outro
Jesus é fonte da ética cristã. Seus ensinamentos são referências para se pensar as grandes questões sociais da atualidade.
A chave de leitura para compreender a ética de Cristo é a encarnação. Tudo o que conhecemos e sabemos de Deus encontramos no homem Jesus de Nazaré. Deus se fez “carne” (Jo 1,14), se fez vulnerável, loucura e escândalo, como afirma Paulo (1Cor 1,23). A ética de Cristo se apresenta como uma ética da humanização que evidencia a superioridade do amor em relação ao cumprimento de deveres religiosos e submissão a sistemas políticos.
O Sermão da Montanha (Mt 5-7) é o programa ético de Jesus. É a passagem da moral das obrigações para a ética da felicidade. As bem-aventuranças são apresentadas no plural, indicando que se trata de uma felicidade a ser vivida em comunidade. A lei maior: “Tudo que desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles” (Mt 7, 12). Portanto, amai vossos inimigos e rezai pelos que vos perseguem (Mt 5, 44).
Na ética de Jesus os últimos são os primeiros (Mc 10,31). E a situação dos últimos para esta sociedade é desesperadora. Jesus dedicava especial atenção aos pequeninos, aos discriminados, aos que não tinham vez na sociedade. Era sinal de contradição: felizes são os pobres e os que agora têm fome; os que agora choram; os que são odiados, insultados e amaldiçoados por causa de mim (Lc 6,21s). Jesus dedicou atenção especial aos preteridos de sua época.
Pelos relatos bíblicos, constata-se que a ética de Jesus se pautava na defesa da dignidade de todos os seres humanos. Jesus não inaugurou um código moral para condenar os impuros e pecadores. Ao acolher os discriminados e excluídos da sociedade (pessoas mal afamadas, estrangeiros, crianças, mulheres) Jesus deixava desconcertadas as pessoas mais religiosas. Sua ética questiona a moral vivida dos que não se misturam e só sabem apontar o dedo. O amor era sua norma: “ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelo irmão” (Jo 15,13).
O “espelho” do comportamento ético é o rosto daqueles com quem se convive. A ética de Cristo tem seu fundamento no cuidado com a vida, com a humanização. Não é uma ética de cumprimento de normas, mas da busca da felicidade dos outros. A diferença entre a ética religiosa de cumprimento de deveres e a ética de Cristo é ilustrada no relato da cura do homem da mão paralisada na sinagoga em dia de sábado (Mc 3,1-6). A religião muitas vezes se torna uma “armadilha” quando coloca o cumprimento dos deveres acima da satisfação das necessidades mais elementares. A ética de Cristo coloca o bem do outro acima de tudo. Muitas vezes a fidelidade às obrigações religiosas serve de falsa justificativa para legitimar a indiferença diante do sofrimento dos irmãos.
“Se vocês tivessem compreendido o que significa: misericórdia é o que eu quero, não o sacrifício, não condenariam inocentes” (Mt 12,7). Eis o pilar que sustenta toda a ética de Jesus: a compaixão. Quem abraça a ética de Jesus se volta necessariamente para o outro, para os de fora: “Quando foi que te vimos com fome e sede?” (Mt 25,38s). Enquanto o cristão estiver voltado para si mesmo e suas normas religiosas, será como o sacerdote e o levita da parábola do bom samaritano, no máximo, um cumpridor de deveres que passa longe dos necessitados – identificado com Cristo (Lc 10,29-37). A misericórdia, mais do que “sentir pena”, é uma “reação visceral” ao sofrimento alheio. Para Jesus a indiferença é tão grave quanto a violência. As parábolas do rico epulão e do pobre Lázaro (Lc 16,19-31), do bom samaritano (Lc 10,25-37) e do “juízo final” (Mt 25,31-46) atestam a misericórdia como pilar da vida cristã. Na ética de Jesus se retribui o mal com o bem: “Quando somos ofendidos, abençoamos; quando perseguidos, suportamos” (1 Cor 4, 12-13).
Porquê é tão difícil praticar a ética de Jesus? Em nome da “moral e dos bons costumes”, subterfúgios têm sido praticados para impor atitudes discriminatórias de contingentes enormes da população. No Reino de Deus há lugar para todos – a começar pelos mais discriminados. A condição para fazer parte desse Reino é acolher a todos na sua diversidade.
A falta de ética soma-se ao fingimento oportunista e hipócrita de muitos cristãos. Como diz papa Francisco: “Quando as pessoas se tornam autorreferenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade” (Laudato Si’, 204). As atitudes de alguns cristãos estão, muitas vezes, vinculadas a interesses que nada têm a ver com a ética. Porque é tão difícil aceitar que Deus ama tanto os justos quanto os pecadores? (Mt 5,45-48). Quem realmente são os justos? E quem são os pecadores?
A partir da ética de Cristo, o que seria inviolável? “O ser humano” ou “a doutrina”? O cristianismo não pode ser uma religião de acusadores enraivecidos, mas de homens e mulheres de misericórdia e de justiça. A justiça do cristão precisa ultrapassar a dos escribas e fariseus (Mt 5,20). Quem consegue viver esse tipo de ética proposta por Jesus?
Sobre o autor:
Élio Gasda é jesuíta, doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia – FAJE. Dentre suas obras encontramos: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
Fonte:
Excelente texto, Professor Gasda. Tive o prazer de ler o seu livro “Economia e Bem Comum” e tenho-o como uma referência. Parabéns ´pelo seu trabalho.