A esperança em tempos de pandemia

Não podemos tratar a esperança como mero sinônimo de utopia, sonho ou quimera. Ela é uma dimensão concreta presente na vida humana. Tem seu lugar próprio em nosso existir. Se somos movidos por desejos, é o amor, a fé e a esperança que nos sustentam nas diversas travessias.

Confira a reflexão do pe. Matias Soares:

A esperança em tempos de pandemia

O mundo clama por uma resposta ao drama que o assola neste momento da história. A pandemia causada pelo Covid-19 é tida por muitos como o pior mal vivido pela humanidade, desde a II Guerra Mundial (1939-1945). É importante que essa relação com outro referencial que trouxe tantos malefícios aos seres humanos seja feita, para que, assim como existiram sinais de esperança, em meio a tantos sofrimentos e destroços, também os visualizemos no nosso cotidiano. Podemos falar de tempos sombrios, assim como foram qualificados aqueles passados; outrossim temos que recordar dos grandes protagonistas da bondade e da compaixão, que fizeram a diferença com suas atitudes e que, por isso, corroboram a existência do bem nas névoas do mal.

No fim da modernidade para o início da pós-modernidade, a esperança alçou voo em meio as intempéries e paradoxos das ações dos seres humanos. “Onde estava Deus?” quando determinados acontecimentos foram permitidos, assim provocou o então papa Bento XVI, quando visitou o campo de concentração de Auschwitz. Mas, numa outra linha de pensamento, outro grande da teologia contemporânea, João Batista Metz, questionou: “Onde estava o ser humano quando tudo aquilo aconteceu?” As inquietações destes dois podem ser tidas como os horizontes que foram vistos pelos “operadores das ciências” para a construção das novas realidades, a partir da interpretação dos fatos passados. O desenvolvimento da economia e da tecnologia assumirá a narrativa determinante neste novo mundo.

Neste contexto de tantos avanços e conquistas tecnológicas ao lado de tantas desigualdades e exclusões, tanto na perspectiva teológica quanto na antropológica, surge o grito dos pobres e da Casa comum. A inconsistência do que “está aí” no presente lança o laço para agarrar o que é sonhado do futuro. Quais as razões de nossa esperança?

No campo teológico, uma obra que delineia esta época é a Teologia da Esperança, de Jürgen Moltmann. Trata-se, a nosso ver, de uma abordagem que enseja fundamentar teologicamente a esperança. O mesmo intento, no campo da filosofia, foi desenvolvido de forma paradigmática por Ernest Bloch, em sua obra Princípio Esperança, que a aborda como um princípio que condiciona a razão. Tendo presente estas duas vigorosas reflexões, podemos afirmar que a humanidade, no complexo contexto desta longa pandemia, se apresenta sedenta de esperança. Uma reflexão teológica importante sobre a esperança cristã, está consignada na Encíclica Spe Salvi, do papa Emérito Bento XVI, escrita em 2007, ela sintetiza a relevância existencial da esperança para travessias como a destes tempos sombrios.

O papa Francisco, nesta mesma linha, está a chamar a humanidade a cultivar a virtude da esperança. Recordo-me bem que, em 2017, em audiência concedida pela o papa Francisco, ao membros do colégio Pio Brasileiro, o mesmo nos exortava “a ser para o povo brasileiro sinais de esperança”. Cada um de nós, em cada estado de vida, seja cristão ou não, nas diferenças às quais cada um é submetido, na cotidianidade entrelaçada de miséria com a misericórdia, torna-se benfeitor ou agraciado do dom da esperança.

Uma questão que precisa ser posta é: Como a fé e a esperança estão sendo reconhecidas, vividas e testemunhadas neste momento de crise? Estamos sendo interpelados diariamente a percebê-las. Uma provocação que temos que nos fazer é: Que lições estamos aprendendo da experiência desta longa pandemia? Não podemos tratar a esperança como mero sinônimo de utopia, sonho ou quimera. Ela é uma dimensão concreta presente na vida humana. Tem seu lugar próprio em nosso existir. Se somos movidos por desejos, é o amor, a fé e a esperança que nos sustentam nas diversas travessias.

  • Há quem, mesmo não tendo uma religião, nem mesmo tendo o dom da fé em Deus, encontram no imediato concreto do dinamismo da vida ricas fontes de esperança. Pelo discernimento da razão renovam suas forças, enfrentam os desafios e lutam por um mundo melhor. Cultivam a esperança por uma fé antropológica.
  • Muitos encontram e alimentam o princípio esperança sendo nutridos cotidianamente pela vivência de uma religião. Na religião, renovam suas forças, enfrentam os desafios e lutam por um mundo melhor. Cultivam uma fé religiosa.
  • Outros, no entanto, encontram e alimentam a esperança, na entrega confiante, no ato de fé em Deus. Este é experimentado fundamentalmente como fonte de esperança. Na fé renovam suas forças, enfrentam os desafios e lutam por um mundo melhor. Cultivam uma fé teologal.

Percebemos que a fé e a esperança constituem juntas uma dimensão intrínseca da condição humana. Todos são chamados a perceber, na esperança, a importância de ter “fé na vida, fé no homem, fé no que virá”. Sem esta dimensão, estaríamos entregues ao caos do desespero e ao tédio da desesperança. Na coincidência das diferentes crenças ou convicções, posso testemunhar que a esperança e a fé – antropológica, religiosa e teologal – são companheiras fiel. A elas recorremos nos momentos difíceis e desafiantes da vida.

Eu escrevo sobre a fé e a esperança tendo presente a minha experiência vivida recentemente quando fui espectador da morte por alguns dias, vitimado pelo Covid-19. Graças aos profissionais da saúde, a minha fé e a dos demais membros do povo de Deus, que tanto rezaram por mim, posso hoje pontuar estas linhas. Passados poucos dias de minha vitória sobre o Covid-19, mesmo tendo presente a dor do luto de tantas perdas que poderiam ter sido evitadas, posso dizer que fui salvo pela fé e pela esperança.

Inseridos neste turbilhão de incertezas, cada um de nós, somos evocados a celebrar e renovar a fé e a esperança, e de um modo todo especial, no Natal. Contemplando o presépio, tendo presente toda a vida de Jesus, seus ensinamentos e gestos proféticos, somos chamados a iluminar tudo o que somos pelo mistério do Amor que vem habitar no meio de nós. Neste Natal, como cristão, eu renovo e convido você a renovar as fontes de esperança teimosa e de fé no Deus Emanuel, sempre estradeiro conosco todos os dias de nossas vidas. Que todos possam encontrar, em seu cotidiano, na mediação da fé antropológica, religiosa ou teologal, fontes que alimentem o horizonte da esperança para que juntos enfrentemos os desafios e as lutas de 2021. Assim o seja!

Pe. Matias Soares

Pe. Matias Soares é pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório, em Mirassol, Natal, Rio Grande do Norte – RN e é colaborador do Observatório da Evangelização PUC Minas.