“No Brasil, a Economia de Francisco e Clara e a 6ª Semana Social Brasileira se encontram com um objetivo programático: captar, visibilizar e promover novas economias que surgem no chão da vida e da luta das pessoas por meio de mutirão. O papa Francisco abre as portas do século XXI com uma proposta de conversão integral: Uma ecologia integral e uma economia anticapitalista está na seiva de suas reflexões na encíclica Laudato Si’ e na Fratelli Tutti… O desafio de enfrentar a doutrina da competição, acumulação e consumismo está na recomposição de corpos territoriais que conscientizem uma ação revolucionária. O Mutirão pela Vida por Terra, Teto e Trabalho, proposto pela 6ª Semana Social Brasileira, traz forte elo com os grandes desafios econômicos. A solidariedade é construída pelas engrenagens da coletividade e da cultura do encontro que hoje se encontra no chamado global para realmarmos a economia a partir do mutirão pela vida… Trata-se de, nas palavras de Jurgen Schuldt, promover um crescente movimento de “dissociação seletiva e temporal do mercado mundial”, retomando a soberania alimentar, o controle da moeda pelos Bancos de Desenvolvimento Comunitário, as Cooperativas Solidárias retomando o trabalho”, escreve Eduardo Brasileiro, em artigo para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.
Confira, na íntegra, o artigo:
A ECONOMIA DE FRANCISCO E CLARA COMO MUTIRÃO PELA VIDA
Por Eduardo Brasileiro
No Brasil, a Economia de Francisco e Clara e a 6ª Semana Social Brasileira se encontram com um objetivo programático: captar, visibilizar e promover novas economias que surgem no chão da vida e da luta das pessoas por meio de mutirão.
O papa Francisco abre as portas do século XXI com uma proposta de conversão integral: Uma ecologia integral e uma economia anticapitalista está na seiva de suas reflexões na encíclica Laudato Si’ e na Fratelli Tutti. Ele, por mais que dialogue com grandes pensadores desse século, em busca de reflexões pertinentes diante de inúmeras crises que nos assolam, crê firmemente no que viu, ouviu e pensou diante dos imigrantes de Lampedusa – Itália (2013), dos movimentos populares em Santa Cruz de La Sierra-Bolívia (2015) e com os povos indígenas em Puerto Maldonado – Peru (2018). Esses eventos marcados pela cultura do encontro, são filhos do mutirão, porque gestam o povo dono de sua história. Tateiam o ensejo de povos do mundo inteiro numa “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda” (1).
Acertadamente, Francisco quer reunir povos de todo o planeta e com eles construir um projeto que abarque jovens ativistas de movimentos populares, cientistas e empreendedores. Com esses, numa pressão imediata de mudança de processos econômicos, sociais e políticos, também deseja ir criando condições concretas ao reivindicar o imaginário popular do que foi aclamado pelo Fórum Social Mundial de 2001, em Porto Alegre (Brasil): Um outro mundo é possível!
No Brasil, recebendo os ecos do chamado do papa Francisco, como Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara afirmamos: “Nossa proposta de uma economia baseada no feminino, no cíclico, na acolhida, no cuidado e no afeto, pressupõe uma transição radical nos modos e nas formas de produção linear, masculinizada, que impôs uma visão de progresso baseada na extração. Assumimos uma compreensão circular dos processos produtivos. Também expressa um profundo compromisso ético com as gerações que estão por vir” (2).
“Nossa proposta de uma economia baseada no feminino, no cíclico, na acolhida, no cuidado e no afeto, pressupõe uma transição radical nos modos e nas formas de produção linear, masculinizada, que impôs uma visão de progresso baseada na extração. Assumimos uma compreensão circular dos processos produtivos. Também expressa um profundo compromisso ético com as gerações que estão por vir” (2).
Trecho da Carta da delegação brasileira ao encontro de Assis convocado pelo papa Francisco
Clara de Assis entra no mutirão brasileiro de novas economias a partir de uma inflexão contestatória: uma proposta na qual feminino e masculino caminham necessariamente lado a lado, sem primazia. Rejeitando, portanto, a perspectiva patriarcal ligada à economia marcadamente materialista, produtivista e extrativista. Essa perspectiva marca a passagem da acumulação para a cooperação, da exploração à sustentabilidade, do egoísmo à generosidade.
A pandemia da Covid-19 e a política de austeridade neoliberal
A pandemia da covid-19 desnudou, mesmo para quem não queria ver, todas as agudas desigualdades sociais existentes no país. Muito embora ela afetou toda a população, sem distinção de classe, raça e gênero, é muito diferente a intensidade com que a doença chegou nas periferias em oposição aos bairros ricos. Fruto de efeitos maléficos de privatização, sucateamento das políticas públicas que há 30 anos tem sido imposta pelo capitalismo neoliberal.
A política de austeridade imposta pelo neoliberalismo erigiu uma grande doutrina: A partir do esvaziamento do Estado (nosso mediador), reduzir a política e a democracia ao mercado financeiro. Impor o domínio de uma narrativa tecnicista e meritocrática, não permitindo enfrentar os problemas estruturais do Brasil, tais como o racismo, o machismo, a desigualdade de renda e espacial…, e concretizando uma política sufocante de precarização da vida. Com isso, iniciou uma necropolítica por meio da redução dos investimentos públicos – portanto daquilo que nos é comum a todos – e aprofundou a distorção dos organismos de participação e consulta.
O desafio de “realmar” outra economia possível
O desafio de enfrentar a doutrina da competição, acumulação e consumismo está na recomposição de corpos territoriais que conscientizem uma ação revolucionária. O Mutirão pela Vida por Terra, Teto e Trabalho proposto pela 6ª Semana Social Brasileira forte elo aos grandes desafios econômicos. A solidariedade é construída pelas engrenagens da coletividade e da cultura do encontro que hoje se encontra no chamado global para realmarmos a economia a partir do mutirão pela vida.
Realmar a economia corresponde a centrar esforços para uma crescente autodependência comunitária. Isso porque a partir de um grau de desigualdade, não é possível mais governar. Portanto, cabe reconhecer uma nova arquitetura econômica trazida debaixo, dos mutirões onde se delimita as dimensões locais, os traços autônomos de economias regionalizadas, convergindo em bancos comunitários e em economia solidária. Trata-se de, nas palavras de Jurgen Schuldt, promover um crescente movimento de “dissociação seletiva e temporal do mercado mundial”, retomando a soberania alimentar, o controle da moeda pelos Bancos de Desenvolvimento Comunitário, as Cooperativas Solidárias retomando o trabalho.
Realmar a economia está em superar o modelo de desenvolvimento. Reconhecer que o problema não é da economia, e sim de organização da vida econômica. E, portanto, estabelecer a economia de suficiência, onde Francisco e Clara de Assis e os povos amazônicos e andinos têm muito a nos ensinar, freando a lógica de eficiência que se desdobra na acumulação global materialista. Nas palavras do equatoriano Alberto Acosta, presidente de Assembleia Constituinte que reconhece no Equador os direitos da mãe terra, é “[…]crer no autocentramento como desenvolvimento das força produtivas endógenas, incluindo recursos produtivos locais e os correspondentes controle da acumulação e centramento dos padrões de consumo. Tudo deve ser acompanhado de um processo político de participação plena, de tal maneira que se construam contrapoderes com crescente níveis de influência no âmbito local” (3). Para economistas ortodoxos é importante ressaltar, que não se trata de “substituições de importações”, mas, sim, de uma essência se destaca: Um mercado interno que capacita o viver com o nosso e para os nossos.
Realmar por uma economia da proximidade
Vandana Shiva, a indiana ecofeminista, fundadora do movimento Navdanya e uma das parceiras do papa Francisco nesse processo de novas economias, ensina que, ao longo de três décadas, as periferias do mundo provaram que os sistemas de produção de policultivos locais e ecológicos, a partir do multirão, são capazes de prover alimento à população sem empobrecer o solo, poluir a água e danificar a biodiversidade. Shiva realma a economia na percepção de que dialogar com a terra, compreendendo seus processos, está o fio condutor para superação da indústria do remédio e da doença, em busca da saúde integral.
Urge realmar a organização popular que, no aspecto sociopolítico, está por repensar profundamente um processo autodependente e participativo, criando fundamentos para uma ordem na qual se concilia economias solidárias e sociedades democráticas, no cotidiano de suas práticas sociais nos bairros, comunidades, entidades, amarrando um projeto coletivo de várias redes de solidariedade. Para isso, nasce no Brasil o projeto das Casas de Francisco e Clara, espaço de organização coletiva, de territorialização das práticas emancipadoras, e possui também essa necessidade da economia vivida na dimensão de uma espiritualidade integral. Afinal, a espiritualidade de Francisco e Clara não é etérea, abstrata, mas encarnada na vida e na história, possuindo uma capacidade de viver com o divino em toda criatura, exigindo uma economia a partir de todos.
Realmar a economia com o mutirão é entender que não há receita pronta, e somente com o encontro e participação de todos as pessoas que acreditam em outros mundos possíveis é possível tatear essas possibilidades. Há uma geografia submersa no Brasil de povos gestando a mudança. Esse fator denota a importância de levar a saber as inúmeras iniciativas globais de projetos alternativos, que nos ungem de esperança.
A solidariedade como nova economia toma destaque no cenário da pandemia que está nos assolando desde o início de 2020. Possuem, potencialmente, espaços para nova resistência e enfrentamento às ideias autoritárias ressurgidas com ímpeto nos últimos tempos. A solidariedade possui potências econômicas absurdamente poderosas ao exigir para todas as pessoas terra, teto e trabalho.
Gestos solidários introduzem valores na sociedade, processo que será acompanhado certamente, por uma nova forma de organizar a economia. A Economia de Francisco e Clara é filha do mutirão, das periferias urbanas e rurais desse país, corre nas veias dos povos, sacramenta-se na história quando dois ou três sonham, concretizam e partilham. Vida longa ao mutirão.
Notas
(1) FRANCISCO. Carta convite para o Encontro Mundial Economia de Francisco. Roma, maio de 2019.
(2) Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara. Carta da delegação brasileira ao encontro em Assis, Itália. Novembro de 2019.
(3) ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, 2016.
Eduardo Brasileiro, educador na Zona Leste de São Paulo, sociólogo (FESPSP) e consultor do Instituto Cultiva. Selecionado para o evento Economia de Francisco, ele é membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara e da Coordenação Executiva da 6ª Semana Social Brasileira.
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