A Democracia, os Afetos e o Bem Comum: lições de Francisco aos nossos tempos

A Democracia, apesar de todos os seus desafios, permite a construção de um horizonte de sociedade mais plural, que atesta as singularidades, as vulnerabilidades e propõe um caminho de construção social em direção aos valores humanos mais fundamentais, pois são os mais coletivos e, portanto, humanistas: a liberdade e a igualdade.

Devido ao fato de as sociedades serem obrigadas a lidar com complexidades do mundo contemporâneo, a sensação de muitos é de que a democracia se mostra esgotada ou insuficiente. Nesses momentos, é urgente a tarefa de lembrarmos da História. O século XX se mostrou sangrento, com feridas éticas profundas, sobretudo propiciadas pelos seus maiores totalitarismos: o nazismo e o fascismo. A solução para os problemas sociais não está em uma atitude ideológica que se sustenta em um pensamento que propõe verdades absolutas. A História mostrou que verdades absolutas produzem sangue, mortes e exclusão. É por isso que em todo discurso totalitário existe a imputação de culpa pelas mazelas sociais em algum grupo, por exemplo, nos imigrantes (como acontece agora na Itália, lamentavelmente, pois mostra que parte daquele povo não realizou bem o exercício da memória). Comumente também o ódio gera homofobia, machismo, racismo, aporofobia (aversão aos pobres). Ou seja, o real sentido da Política (prática que significa, em sua concepção mais genuína, a busca pelo Bem Comum) fica esvaziado em qualquer postura totalitária e antidemocrática. Em um mundo cada vez mais complexo, seja devido aos desafios das novas tecnologias, seja pela urgência ecológica, é ingênuo (mas também perverso) imaginar que todos os problemas poderão ser solucionados seguindo um rito pré-estabelecido. Na Democracia, é possível encontrarmos caminhos de revisão, de novas narrativas e novos rumos, atestando os erros. Por isso mesmo, em um sistema totalitário não está muito presente a dimensão humana do perdão, mas do ódio e da vingança. Por isso, os afetos mais associados à democracia são a esperança e a reconciliação. Já aqueles associados aos totalitarismos são do medo e do ressentimento. O medo é o que leva as pessoas a aceitarem soluções (aparentemente) rápidas e fáceis, mesmo que represente exclusão daqueles que são diferentes de nosso horizonte de existência. Comum em nossa época, como num livro de autoajuda, mitologicamente. O afeto mais ressaltado é o individualismo, egoísmo e, assim, o bem comum não interessa mais, pois o narcisismo impera. Por isso tais tendências buscam tantos mitos, ídolos. Imaginam que todos os problemas estarão resolvidos, a violência diminuirá, os que incomodam estarão distantes e a paz reinará. Devemos manter as utopias e superar as ideologias, como diria o filósofo Paul Ricoeur. A utopia indica um horizonte de mundo, com direitos fundamentais em seu foco. Um horizonte pode reencontrar caminhos, imaginar novos e rever outros. Na ideologia, há a promessa de um fim da história, se seguirmos um trajeto definido, alcançaremos a paz. Dentro do ideal democrático, necessitamos de utopias e não de ideologias.

É comum também que esses discursos conservadores (de valores que mantem sua posição de privilégio) afirmem que o passado era melhor (pois algum grupo está contribuindo para a desconstrução daquela sociedade) ou se fundamentem em discursos de uma ordem metafísica ou natural. No primeiro, é comum dizerem, por exemplo, que décadas atrás eram melhores no Brasil, pois havia menos violência, mais respeito aos pais e a educação era melhor. Ora, a violência era comum nas famílias (pais que usavam a violência contra filhos, deixando diversos traumas), o “respeito” existia pelo medo e a educação era apenas para uma elite. Apenas a partir da nossa constituição democrática é alcançamos a universalidade educacional nesse país. Não há dúvida que em três décadas avançamos, para todos, mesmo que tenhamos ainda desafios diversos. O segundo discurso é de natureza mais perversa ainda, é aquele que afirma, por exemplo, que a mulher deve permanecer fiel à sua “missão” necessária de mãe, do lar, sem lutar pelos seus objetivos, pela sua vida, livre. Ambos os discursos são cínicos, ignorantes e perversos. Há consequência em suas afirmações. Assim, os discursos totalitários criam mundos paranoicos, irreais e que buscam manutenção de lugares privilegiados. Na Democracia, podemos buscar entender o real, encontrarmos soluções para o bem comum. Não é possível pensarmos democraticamente sem diversidade, pluralismo e buscando, incessantemente, o bem comum, não apenas o bem de seus negócios, de sua vida privada ou de sua família. A Democracia pressupõe uma racionalidade discursiva, inserida em diálogo, que gere entendimento mútuo real. Por isso, os discursos de tecnocratas apenas impedem o alcance e a efetivação de um horizonte democrático genuíno. As técnicas (como visões de mundo a partir de uma área do conhecimento) não podem ofuscar as alteridades em sua diversidade e realidade. A política deve ser o diálogo incessante em direção ao bem comum.

Como afirma a filósofa Hannah Arendt, sem a dimensão da vida compartilhada, um autêntico sensus communis, não seria possível ao homem saber-se real, ou seja, ele não poderia confiar em seus sentidos sensoriais. Não poderia distinguir se existe ou se não passa de um sonho, tal como relata Primo Levi ao falar sobre os reflexos que o regime de segregação criado pelas leis fascistas impôs a si por ser judeu, já que ele teria sido condenado a “viver num mundo só meu, um tanto apartado da realidade, povoado de racionais fantasmas cartesianos” (LEVI, 1988, p.11). Assim, podemos também afirmar que a ação política não é meio para atingir qualquer fim, sendo sinônimo necessário de liberdade. A liberdade constitui o humano. Aqui podemos ressaltar, a liberdade acrescida às atestações das vulnerabilidades expostas. A Democracia real pode estar próxima aos ideais sinceramente cristãos, pois entende que Deus está entre nós. Aqui podemos lembrar e escutar o Papa Francisco.

Francisco nos alertou, recentemente, sobre as “injustiças e discriminações contra os pobres” de todo o mundo em uma missa para encerrar o 27º Congresso Eucarístico Nacional da Itália. “As injustiças, as disparidades, os recursos da terra distribuídos de forma desigual, os abusos dos poderosos contra os fracos, a indiferença ao clamor dos pobres, o abismo que cavamos todos os dias, gerando marginalização, todas estas coisas não nos podem deixar indiferentes”. Segundo o Pontífice, uma Igreja “eucarística” é feita “de homens e mulheres que se partem como pão para todos aqueles que mastigam a solidão e a pobreza, para aqueles que têm fome de ternura e compaixão”. “Deus pede então uma conversão eficaz: da indiferença à compaixão, do desperdício à partilha, do egoísmo ao amor, do individualismo à fraternidade”, acrescentou.

Do individualismo à fraterno podemos encontrar um horizonte de perdão, lembrando Dom Vicente Ferreira (2020, p. 21): “Assumir a palavra perdão diante de um cenário de tragédia é também colher a possibilidade de outra linguagem que não aquela do reparo, da devolução, da reconstrução, somente. A paixão de Jesus desvela a violência de uma estrutura, de um sistema que promove os grandes e exclui os pequenos”.

Referências

  • LEVI, Primo. É isto um Homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
  • ARENDT, Hannah. The Promise of Politics. New York: Schocken Books, 2005.
  • ______   O Que é Política? Trad. Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
  • RICOEUR, Paul. L´Idéologie et L´Utopie. Paris: Seuil, 1984.
  • FERREIRA, Dom Vicente e DENTZ, René. Horizontes de Perdão. São Paulo: Ideias e Letras, 2020.
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Prof. René Dentz
É
 católico leigo, professor do departamento de Filosofia, curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, Doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista semanal da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 8 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020) e “Vulnerabilidade” (Ideias e Letras, 2022). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia” e “Diversidade afetivo-sexual e teologia”, ambos na FAJE e “Teologia e Contemporaneidade”, na PUC-Minas.