A crença é uma menina moça com a luz da esperança: A esperança na crença do poeta de santa luzia
A crença é uma menina moça com a luz da esperança: A esperança na crença do poeta de santa luzia
A palavra “Creio” inaugura a Profissão de Fé de nós católicos: “Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador do céu e da Terra …”. Como nos ensina a primeira seção do Catecismo da Igreja Católica, o verbo crer, manifesta uma ação humana – a ação de buscar a Deus – nascida de um desejo – o desejo de se relacionar com Ele, que vem ao encontro da humanidade por meio da Revelação Divina, isto é, tornar conhecido o seu mistério de amor e benevolência. Por fim, o ser humano responde a essa revelação por meio da fé.
A própria realidade da fé suscita no ser humano a necessidade de crer ou de não crer. A capacidade humana de crer e por conseguinte, a de se abrir ao mistério transcendente, está de tal forma entranhada com o fenômeno da fé, que, por exemplo, a perda da fé de tipo antropológica, como explica o cientista da religião Roberley Panasiewicz (2013, p. 601), pode acarretar na crise de sentido e na descrença na vida. O que não quer dizer que aqueles que não se abrem à experiência de fé, seja ela de tipo antropológico ou de tipo religioso, como as categoriza Panasiewicz (2013), estejam fadados à descrença na vida. Isso porque todo ser humano possui as capacidades de transcendência e de crença de caráter não religioso, mas ético. Este é o caso, por exemplo, do que o teólogo Leonardo Boff chama de ateísmo ético[1].
A poética do Crer em Tibúrcio de Oliveira
Quem assistir à Missa Solene da abertura do Jubileu de Santa Luzia, a chamada Missa de José Maria Lopes, celebrada às 00:00 horas de 13 de dezembro no Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, ouvirá em seu encerramento, o segundo Hino de Santa Luzia, que nos suscita reflexões sobre o ato de crer e a descrença, a luz e a não luz, na vida humana:
O virgem Santa Luzia, de Jesus esposa amada
Dai-nos vista noite e dia, nesta vida amargurada
O virgem e mártir, dai-nos a luz, dos vosso olhos a fé e reluz
Sois estrela lá no céu, nosso guia cá na terra
Luz nas trevas contra incréus, vosso peito assim encerra
O virgem e mártir, dai-nos a luz, dos vosso olhos a fé e reluz
Esse hino foi composto pelo festejado poeta luziense Francisco Tibúrcio de Oliveira (1882-1962) na primeira metade do século XX. Nela, o poeta invoca a sua musa inspiradora, a virgem e mártir Santa Luzia, suplicando-a por “vistas noite e dia”, isto é, por discernimento, frente às amarguras da vida. A primeira vista pode até parecer se tratar de um poeta pessimista que concebe a vida pura e simplesmente como um “vale de lágrimas”. Pelo contrário, é um poeta otimista que busca, intensamente, na luz da fé dos olhos de Santa Luzia, à luz do conhecimento do que o sociólogo francês Michel Maffesoli (1998)[2] chamada de razão sensível, isto é, a razão interna das pessoas, que perpassa a sociedade e que serve de forma operatória para explicar os múltiplos fenômenos sociais.
A questão chave dessa luz de razão sensível que possibilita ver “noite e dia” se manifesta na ideia de que Santa Luzia é “Luz nas trevas contra incréus”. E o que seriam incréus? Seriam ateus? Tibúrcio de Oliveira, um católico devoto de Santa Luzia estaria fazendo uma crítica ao ateísmo naquela primeira metade do século XX em que o mundo passava por significativos processos de modernização, de desencantamento e de privatização da fé? Não creio que esta seria a melhor linha de raciocínio a se seguir. Isso porque no livro Horas Vagas, publicado postumamente por seus filhos em 1972, o poeta aborda de forma interessante o tema da crença no poema titulado “Deus”:
Viver sem crença é não ter esperança
Da paz suprema e de tranquilidade.
É sufocar o anseio de bonança,
É morrer sem gozar da eternidade.
Para fluir a bem-aventurança,
Fonte perene de felicidade,
Busquemos Deus com toda segurança
Pois só Ele é o caminho da verdade.
Façamos um altar do coração,
Com fé o nosso culto aos céus alcancemos,
Por um Deus que redime e que perdoa.
E cheios da mais viva contrição…
De nossa alma, os pecados arranquemos
Porque Deus o pecado amaldiçoa.
O poema “Deus” oferece uma explicação do próprio Tibúrcio de Oliveira sobre a sua concepção de incréus, ou melhor, da ação passiva e pessimista da não crença frente ao mundo. O que nos ajuda a compreender a referida ideia de que Santa Luzia é “Luz nas trevas contra incréus”. A palavra “incréus”, aparece, no referido Hino, sem a especificação de qual tipo de crença ou não crença se trata, embora pelo contexto sócio-histórico da obra, se possa inferir inicialmente que seja a não crença no Deus da Igreja Católica. Mas no âmbito do texto em si, a palavra designa apenas pessoas que não creem. Também na primeira estrofe do poema “Deus”, o tema da não crença é tratado sem esfericidades. O poeta apenas tece uma associação da não crença com a impossibilidade da esperança: “Viver sem crença é não ter esperança”. Deste modo, podemos compreender que Santa Luzia é luz contra a treva da não crença, e não propriamente contra o ateísmo, porque os ateus também possuem a capacidade de crer, sendo esta, não relacionada à religiosidade.
Podemos inferir que para Tibúrcio de Oliveira, o ato de não crer é um ato desesperançado, que torna o ser humano prisioneiro do pessimismo “nesta vida amargurada” e contribui para “sufocar o anseio de bonança”, ou seja, suprime a necessidade de se fazer mudanças nas estruturas sociais e inviabiliza a realização da promessa escatológica de Jesus de que a vida há de ser plena e em abundância para todos (João: 10-10). O desfecho da ópera da “vida amargurada”, cujos atores são denunciados como incréus, é o “morrer sem gozar da eternidade”, porque o que será eternizada nestes atores, é uma postura de pessimismo e passividade frente a vida e aos problemas do mundo.
O tema-problema da não crença também é apresentado por Tibúrcio de Oliveira na última estrofe do poema “Deus”, como uma espécie de grande pecado da alma. Este é um pecado amaldiçoado por Deus, justamente porque inviabiliza “fluir a bem-aventurança, fonte perene de felicidade”. O que aponta a concepção amorosa de Deus pelo poeta. Sendo assim, Tibúrcio de Oliveira não tece a imagem triste, pessimista e conservadora de um Deus que julga e pune, mas sim a imagem feliz, otimista, misericordiosa e generosa de um Deus “que redime e que perdoa” a humanidade, do pecado da inviabilização do “fluir a bem-aventurança, fonte perene de felicidade”.
Em contraponto ao tema da não-crença, o tema de esperança é a menina moça dos olhos do poeta Tibúrcio de Oliveira. A menina moça Santa Luzia de Siracusa é “Luz nas trevas contra incréus”, ou luz de razão sensível que possibilita ver “noite e dia” e discernir em meio a “vida amargurada”. Isto porque, a sua fonte de luminescência é a palavra esperançada de Deus, é o verbo que se fez Carne, que habitou entre nós e que nos trouxe uma boa nova para a construção do reino escatológico de Deus a partir do aqui e do agora:
Os judeus, então, o rodearam e lhe disseram: “Até quando nos manterá em suspenso? Se és Cristo, dize-nos abertamente”. Jesus lhes respondeu: “Já vo-lo disse, mas não acreditais. As obras que faço em nome de meu Pai dão testemunho de mim; mas nós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem, eu lhes dou a vida eterna e elas jamais perecerão, e ninguém as arrebatará de minha mão. Meu pai que me deu tudo, é maior do que todos, e ninguém pode arrebatar da mão do Pai. Eu e o Pai somos um”. (João: 10, 24-30).
A referida passagem do Evangelho de João registra que nas vésperas de sua paixão e após apresentar vários sinais da boa nova, Jesus interpelou fortemente os seus irmãos de fé pela descrença desses na realização do projeto do Reino de Deus. A descrença do povo de Jesus, naquele contexto de forte opressão do Império Romano, os aprisionava no pessimismo da “vida amargurada” e contribuía, como diria Tibúrcio de Oliveira, para “sufocar o anseio de bonança”.
Por fim, a beleza ética e feliz da ação humana de crer é o centro da poesia de Tibúrcio de Oliveira. O poeta luziense busca no olhar da menina moça Santa Luzia uma razão sensível e esperançosa, uma luz natalina de estrela guia, que impulsione o leitor e o ouvinte dos seus versos, a terem uma postura otimista e ativa frente à vida e os problemas do mundo.
[1] In: https://www.youtube.com/watch?v=6_fS7HzaWZc Acesso em: 24/03/2021.
[2] MAFFESOLI, M . Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998.
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Glaucon Durães da Silva Santos
É católico leigo da paróquia Bom Jesus e Nossa Senhora Aparecida, Santa Luzia/MG, doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas, professor de Sociologia, membro da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais e colaborador jovem do Observatório da Evangelização da PUC Minas. Desenvolve pesquisa nas áreas da Sociologia da Religião e da Sociologia Política. Atualmente é representante da Mitra Arquidiocesana de Belo Horizonte (Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia) no Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de Santa Luzia.