A casa e a Palavra na catequese, com a palavra Vanildo de Paiva

No complexo contexto desta longa pandemia de COVID-19, quando todos os âmbitos da vida foram profundamente afetados, Vanildo Paiva nos oferece pertinente e necessária reflexão sobre as estreitas relações mútuas entre fé cristã, família e catequese na vida da Igreja. O autor aprofunda sobre “o lugar que a Igreja sempre atribuiu às famílias, especialmente aos pais cristãos, na educação da fé das crianças, jovens e adultos“. Para ele, “se a Palavra e a liturgia encontram na ‘casa’, isto é, em cada lar, seu lugar privilegiado de vivência e expressão, também a catequese precisa ser redescoberta como um exercício eminentemente doméstico, em consórcio íntimo com outras formas de catequese comunitária e paroquial.” O autor entende a Igreja doméstica, “como modelo de organização e vivência de amor, comunhão, ajuda mútua e vida fraterna“. Para ele, “o embrião do cristão comprometido com um mundo melhor é gerado no útero familiar, e ali deve ser cuidado amorosamente“. Nesse sentido, afirma que “se a missão da catequese é educar a pessoa na fé, na esperança e no amor para que seja ‘sal da terra e luz do mundo'(cf. Mt 5, 13-14),  essa educação começa no santuário de vida que é a família, sempre auxiliada pela comunidade eclesial nessa missão“. Sendo assim, “a catequese que se espera dos pais é aquela do testemunho cristão, que aponta o sentido da vida a partir da experiência de Deus. Em outras palavras, o que as novas gerações precisam receber de seus pais e demais adultos da família (irmãos, avós, tios etc.) é a concretude de uma fé traduzida em gestos capazes de iluminar os eventos familiares, desde os mais simples do dia a dia“.

Confira a reflexão:

A CASA E A PALAVRA NA CATEQUESE

Vanildo de Paiva[1]

“Eu e minha família serviremos ao Senhor” (Js 24,15)

INTRODUÇÃO

01. A catequese em família tem sido preocupação da Igreja, de modo geral, e da catequese, especificamente, já há muito tempo. Basta um rápido sobrevoo aos manuais de catequética ou documentos da Igreja para comprovar isso. A declaração conciliar Gravissimum Educationis é clara ao afirmar: “Os pais devem ser para seus filhos os primeiros educadores da fé” (n. 2). A ressonância a essa proclamação se fez logo sentir nos Diretórios Catequéticos Gerais (Diretório Catequético Geral – 1971: nn. 78.80.81; Diretório Geral para a Catequese – 1997: nn. 226-227 e 255), na exortação apostólica Catechesi Tradendae de João Paulo II (n. 68), no documento Catequese Renovada, da CNBB (nn. 1221-123), no Diretório Nacional de Catequese (nn. 238-240), no documento conclusivo da Conferência de Aparecida (nn. 302-303) e, agora, no novo Diretório para a Catequese – 2020 (nn. 226-235), só para citar alguns desses textos oficiais.

02. Apesar de tanta tinta e saliva gastas, a impressão que se tem é de que, cada vez mais, a família tem se desobrigado dessa sua missão tão importante, ou por falta de consciência dela ou, em muitos casos, por descuido. Não é raro ouvirmos queixas de catequistas, carregadas de conformismo, no que se refere à omissão das famílias dos catequizandos em seus itinerários catequéticos. Chega-se mesmo ao abandono das tentativas de envolvê-las, numa postura que combina indignação e desânimo: “Fazer o quê? Os pais não têm nada a oferecer, porque também nada receberam!”. E, em parte, isso é verdade! Além de um certo fracasso da família cristã frente à sua tarefa intransferível de educadora da fé das novas gerações, essa fala conformista denuncia o fracasso da própria Igreja, mãe e mestra, que se descuidou da catequese com adultos, que atualmente tem sido olhada com mais atenção.

03. Só que ninguém contava com o surto pandêmico do coronavírus, para nós iniciado em março de 2020, que mudou drasticamente as nossas vidas e tem exigido o repensar de toda a ação pastoral da Igreja! De uma hora para outra, a catequese voltou a seu lugar de origem – ao menos teoricamente! -, isto é, ao núcleo familiar, pegando sobretudo os pais de surpresa. A família se viu sobrecarregada com tarefas que, na verdade, sempre foram dela, mas quase sempre terceirizadas: a educação inicial (escolar) e a transmissão da fé (catequese) a seus filhos.

04. A presente reflexão visa a recuperar, ainda que brevemente, o lugar que a Igreja sempre atribuiu às famílias, especialmente aos pais cristãos, na educação da fé das crianças, jovens e adultos. Se a Palavra e a liturgia encontram na “casa”, isto é, em cada lar, seu lugar privilegiado de vivência e expressão, também a catequese precisa ser redescoberta como um exercício eminentemente doméstico, em consórcio íntimo com outras formas de catequese comunitária e paroquial. Mais do que um grande problema, o recolhimento social a que fomos submetidos pela pandemia nos traz a oportunidade de assumir de vez essa questão tão importante. Um rápido percurso histórico será feito, desde a catequese judaica, berço da nossa fé, até as perspectivas e desafios para uma catequese em família hoje.

I. O JUDAÍSMO E A CATEQUESE EM FAMÍLIA

Família de judeus durante a refeição da Pessach, a Páscoa Judaica. (Foto: Reprodução)

05. O judaísmo é uma cultura e uma religião que têm na família a sua centralidade, e é dentro do lar e nos costumes inculcados pela família que todo judeu desenvolve sua fé e molda seus comportamentos. A base religiosa da vida dos filhos é de responsabilidade do pai e da mãe. As crianças aprendem pelo exemplo dos pais e, desde cedo, participam dos ritos tradicionais de seu povo. A iniciação catequética e litúrgica, portanto, acontece prioritariamente em casa e de modo integrado. Não há uma distinção entre o que se sabe sobre Deus e o que se reza a Deus. O conteúdo catequético é o mesmo conteúdo litúrgico.

06. A família é verdadeira escola de fé, pelo que é dito em casa, pela maneira como os mandamentos de Deus são vividos e pelo espírito orante que marca a vida doméstica. Ela é a guardiã dos preceitos e das tradições. Ensinamentos éticos e valores morais, sobretudo, são amadurecidos dentro do lar. Aí se aprendem a honra aos pais, o zelo pelos pobres, a acolhida e hospitalidade aos estrangeiros, a valorização dos mais velhos, a caridade para com os enfermos e as regrinhas básicas para um relacionamento saudável e equilibrado. É na família que a Aliança deve ser vivida de modo mais pleno, e a experiência da presença de Deus é feita de muitos modos, especialmente nos relacionamentos amorosos entre pais e filhos.

07. Essa formação catequética e litúrgica não se dá somente pelo ensino teórico. A dimensão simbólica é fundamental para a vivência religiosa e cultural do judaísmo. Vários objetos, que fazem parte do cotidiano, significam muito na construção desse aprendizado. No batente da porta das casas judias, há um mezuzá, pequeno pergaminho que contém o Shemá (“escuta, ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um…”), a ser rezado diariamente como expressão de fidelidade a Deus. Passar pela mezuzá, quando se entra ou se sai da casa, é entender que toda a conduta deve ter como inspiração as palavras sempre sábias do Eterno. Não se trata de um amuleto protetor, mas de uma afirmação de compromisso e identidade. Outros símbolos, objetos e ritos auxiliam na expressão da fé da família judaica e são fortemente catequéticos: velas que são acesas à chegada do Shabat (sábado, o dia santo judaico), comidas apropriadas para as festas, o lavar as mãos de forma ritual, os nomes dados aos filhos, as bênçãos e orações apropriadas para cada momento do dia, cerimônias altamente significativas por ocasião dos casamentos e funerais etc.

08. O jeito judaico de ensinar passa pela experiência, pela vivência, pela dimensão do simbólico, do orante e do ritual. As crianças crescem ouvindo os grandes feitos de Deus na história de seus antepassados e procurando discernir a passagem desse mesmo Deus pela sua história pessoal.  A vida judaica, no seu todo, é marcada pela oração. Há bênçãos para inúmeras circunstâncias cotidianas. Deus, ao abençoar, comunica a plenitude dos seus dons. O ser humano, ao bendizer Deus, reconhece nele a fonte da vida. As bênçãos permitem que os judeus não se esqueçam de que vivem à sombra do Todo-poderoso, sob “as asas do Altíssimo” e que, consequentemente, devem viver na fidelidade e na gratidão. As festas e ritos são fundamentais para a educação na fé. O estudo das Escrituras ocupa papel importante na vida do judeu.No centro da espiritualidade de Israel está a Palavra pela qual Deus se fez conhecer a si mesmo e que ajuda a interpretar a história. Por isso, fazer conhecer a história do povo é ao mesmo tempo iniciar no mistério de Deus que opera nesta história. Daí a tarefa específica de todo judeu de conhecer a Palavra e transmiti-la às novas gerações”.[2] Essa transmissão da fé acontece, em primeiro lugar, na família, tendo seu prolongamento na sinagoga.

II. A IGREJA: DA CASA PARA O MUNDO

Jesus e seus discípulos na ceia. (Foto: Reprodução)

09. Jesus, como bom judeu que era, foi educado em casa, primeiramente pelos seus pais, pessoas de oração e conhecimento da Palavra de Deus, que viviam de acordo com a Toráh (o livro da Lei e dos mandamentos de Deus). Aos treze anos, ele já era um bar mitzváh[3]. Como bom judeu, fiel às tradições de seu povo, Jesus frequentava assiduamente as sinagogas (cf. Mt 4, 23; 13, 54; Mc 1,21; Lc 4, 15; 4, 31; 6, 6) e tomava parte das preces e orações do templo (cf. Mc 14, 49; 11, 17; Lc 19,47; Jo 18,20), que ele mesmo chamou de “casa de oração” (Mt 21,13). Quando pequeno, Jesus foi levado, por seus pais, ao templo para o rito da apresentação e da purificação da sua mãe Maria, conforme ditava a Lei (cf. Lc 2, 22-40). As peregrinações ao templo de Jerusalém fizeram parte da história de Jesus (cf. Lc 2, 42s).

10. Ainda que fosse um pregador ambulante, liberdade que o anúncio do Reino lhe exigia, Jesus valorizava muito a casa das pessoas.A casa, enquanto espaço familiar, foi um dos lugares privilegiados para o encontro e o diálogo de Jesus e seus seguidores com diversas pessoas (Mc 1, 29; 2, 15; 3, 20; 5, 38; 7, 24). Nas casas ele curava e perdoava os pecados (Mc 2, 1-12), partilhava a mesa com publicanos e pecadores (Mc 2, 15ss; 14, 30), refletia sobre assuntos importantes, como o jejum (Mc 2,18-22), orientava sobre o comportamento na comunidade (Mc 9, 33ss; 10, 10) e a importância de se ouvir a Palavra de Deus (Mt 13, 17.43). […] Os encontros de Jesus, ao longo de seu caminhar, criam oportunidades para experiências que reforçam e alargam as relações fraternas e comunitárias nos ambientes domésticos por onde ele passa (Mt 8, 14; Lc 10, 38-42; Lc 19, 1-10). A casa é, assim, assumida como lugar para cultivo e a vivência dos valores do Reino.”[4]

11. É de grande significado para nós o fato de Jesus ter nos presenteado com a Eucaristia em contexto doméstico e fraterno, na companhia de seus discípulos e, provavelmente, de sua mãe e outros amigos: “E digam ao dono da casa onde ele entrar: ‘O Mestre manda dizer: Onde é a sala em que eu e os meus discípulos vamos comer a Páscoa?’ Então ele mostrará para vocês, no andar de cima, uma sala grande, arrumada com almofadas. Preparem aí tudo para nós”. (Mc 14, 14-15).  Do mesmo modo, tanto na linguagem lucana (cf. At 2, 1-3), quanto na joanina (cf. Jo 20, 19-22), o Espírito Santo foi derramado sobre os discípulos em um cenáculo, pequena sala onde eles se reuniam para as orações e para fazer a memória de tudo que o Senhor lhes havia dito.

12. Tanto o livro dos Atos dos Apóstolos como as cartas de Paulo nos atestam o costume das comunidades cristãs de se reunirem nas casas para oração, aprofundamento da Palavra, celebração da Eucaristia e experiências de partilha dos bens. Digna de menção é a casa de Priscila e Áquila (cf. 1Cor 16, 9), “modelo de família capaz de alargar os horizontes do seu lar para acolher os irmãos na fé, em uma casa aberta e ampliada que se torna Igreja”.[5]

13. As experiências da presença do Ressuscitado nos ambientes das casas confirmam a sua promessa: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei aí, no meio deles!” (Mt 18, 20). O conhecido relato do encontro de Jesus com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-35) é paradigmático nesse sentido. Se é no caminho que o divino Peregrino ouve as angústias dos seus amigos e aprofunda com eles a Palavra, é no aconchego da casa e da refeição fraterna que seus olhos se abrem e eles dão conta de reconhecer o Cristo, cuja Palavra lhes fazia arder os corações (cf. Lc 24, 32). E daí, saem correndo para anunciar aos demais, que estavam reunidos em outra casa, o evento central que sempre sustentou a fé das comunidades cristãs (cf. Lc 24, 34-35). Portanto, é da casa para o mundo que ecoa a Boa-Nova: o Senhor está vivo! Ele está no meio de nós! A casa permitiu que o cristianismo primitivo se organizasse em comunidades pequenas, com poucas pessoas, que se conheciam e compartilhavam a mesa da refeição cotidiana”.[6] Mesmo depois, com o crescimento do número de cristãos, a casa não perdeu o seu lugar simbólico do que se espera que a Igreja sempre seja: família, casa da acolhida fraterna, lugar da comunhão dos irmãos e irmãs!

III. CATEQUESE EM FAMÍLIA: CAMINHOS HISTÓRICOS

Família em oração (Foto: Reprodução)

14. A catequese da Igreja primitiva girava em torno do chamado kerigma, isto é, o anúncio da salvação trazida por Jesus Cristo, que se concentrava nas suas obras, morte, ressurreição e glorificação pelo poder de Deus, e visava ao despertar da fé, à conversão dos pagãos e sua consequente adesão ao discipulado. Pouco a pouco, a Igreja nascente viu a necessidade de uma instrução mais profunda daqueles que estavam em processo de conversão, oferecendo-lhes um anúncio mais sistemático. Há acenos dessa catequese narrativa em vários episódios descritos pelos Atos dos Apóstolos: o anúncio da Boa-Nova a Filipe (cf. At 8, 26-40); a vinda do Espírito sobre a família de Cornélio (cf. At 10); Barnabé e Paulo ensinando os irmãos em Antioquia, durante um ano (cf. At 11, 26); Paulo em Trôade (cf. At 20, 7-12) e em Éfeso (cf. At 20, 17-36). Já no início, Atos fala da assiduidade à escuta do anúncio dos apóstolos. Também a liturgia foi se firmando como o lugar privilegiado do anúncio pascal e do aprofundamento da Palavra, tanto nos ritos quanto nas homilias.[7]

15. A Didaqué[8] nos apresenta, sucintamente, como as comunidades cristãs do primeiro século viviam sua fé em comunidades pequenas, com a mínima estrutura, sem ministérios fixos, com liturgias muito simplificadas, resumidas a celebrações em ambiente doméstico. Os capítulos IX e X deixam claro que a celebração eucarística acontecia dentro de uma refeição comum, da qual participavam somente os batizados. No mais, o texto catequético se dedica a apontar o caminho àqueles que, pelo batismo, optaram pela vida cristã: amor, partilha, serviço, perseverança no bem e na justiça, hospitalidade, oração, enfim, vida comunitária.

16. Não tardou para que a mensagem cristã deixasse os ambientes judaicos e se estendesse além-fronteiras. A tendência judaizante do cristianismo foi vencida pela ideia da universalidade da salvação, bem refletida no que o evangelista Marcos nos relata quanto ao mandato missionário do Senhor: “Então Jesus disse-lhes: Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade’’ (16, 15). Não tardou também para que os choques culturais acontecessem, e a evangelho necessitasse de outras roupagens para se fazer entender em terras estranhas. Entre heresias e apologias[9], o cristianismo foi se firmando aos longos dos séculos. Também as perseguições aos cristãos foram se tornando mais sistemáticas e generalizadas, no final do século III, início do século IV. Vale lembrar, aqui, que aqueles que realmente estavam convictos da sua fé tiveram que vivê-la e transmiti-la às escondidas. Ainda no século II da nossa era, cristãos abastados de bens cediam suas casas, com lugares definidos para o clero e para os fiéis, favorecendo as celebrações litúrgicas. Ficaram conhecidas como Domus Ecclesiae[10].

17. A distância da primeira primavera da Igreja, isto é, Pentecostes, foi alargando para as novas gerações de cristãos, e o primeiro amor, transmitido e testemunhado pelos apóstolos e seus mais fiéis seguidores, foi se esfriando. O catecumenato, que começara possivelmente em meados do século II, no século seguinte, foi se estruturando como a resposta mais eficaz da Igreja à preparação e recepção daqueles que se convertiam ao cristianismo. Destinado exclusivamente aos adultos, o catecumenato consistia em um processo gradual e progressivo de conhecimento vivencial e adesão a Jesus Cristo e à sua proposta de vida. Conciliava: resposta de fé ao anúncio feito pela Igreja, aprofundamento da experiência de encontro com Jesus na oração e na escuta da Palavra, instrução quanto aos ensinamentos essenciais da fé cristã, recepção dos sacramentos da iniciação (batismo-confirmação-eucaristia) e, consequente, testemunho de vida. Há notícias de que, no Concílio de Elvira (306), exigia-se dois anos de caminhada, exigência essa que foi ampliada para uma média de três anos, posteriormente.[11] Infelizmente, no VI e VII séculos, o catecumenato foi declinando, bem como o espírito que o animava, até que desapareceu por completo. Desse período áureo do catecumenato temos lindas catequeses dos chamados Santos Padres, que hoje buscamos resgatá-las em vista a uma catequese mais mistagógica.

18. Para não perdermos o filão dessa reflexão, é importante ressaltar que a catequese ainda estava vinculada à casa e aos lares cristãos. Ainda que a conversão fosse um ato eminentemente do adulto, entende-se que o adulto convertido e tornado cristão se responsabilizava em educar na fé a sua família. Sabe-se, por exemplo, que, ainda que não fosse regra generalizada, crianças eram batizadas nesse período, o que configurava um desejo de que toda a família fosse cristã. Digna de nota é a “conversão” do imperador Constantino, e a liberdade concedida ao cristianismo – não sem interesses políticos! – no ano de 313, colocando a Igreja em uma nova condição: de perseguida a privilegiada. Entramos em uma nova fase que durará séculos, passando por toda a Idade Média, o chamado “tempo da cristandade”, em que ser cristão era estar imerso em uma sociedade cristã, ao menos em teoria. Tudo cheirava à sacristia da igreja e todos eram cristãos desde o nascimento, sem nenhum incômodo, desde que obedecessem às autoridades religiosas e políticas. A catequese continuava apostando na família, apesar da maioria já não ter mais o vigor do comprometimento com o Evangelho, mas não abria mão da fachada cristã. Havia algumas escolas paroquiais ou ligadas aos mosteiros e as pregações dominicais para manter a sociedade religiosa. “Havia pouca formação catequética nas famílias. Os concílios de Arles (813) e Aix-la-Chapelle (836) insistiram para que os pais e padrinhos ensinassem às crianças o Pai-Nosso e o Creio, mas na comunidade não se organizava nenhuma catequese para as crianças; só se mandava que os pais, voltando para casa, explicassem aos filhos o significado do sermão, e que os padrinhos fossem exemplos de vida cristã para os afilhados”.[12] Enfim, sobrevivia-se com o mínimo!

19. Mas o século XVI sopraria ventos com forças além das esperadas pela Igreja. E viriam de dentro dela mesmo! Martin Lutero, padre agostiniano, descontente com vários ensinamentos e práticas da Igreja, fez sua as vozes de outros também insatisfeitos e pediu reformas. Não havendo entendimentos nem da parte dos reformadores nem da parte da Igreja liderada pelo papa Leão X, ela se fragmentou como nunca havia acontecido com tal gravidade. Em 1517, Lutero publicou suas famosas 95 Teses, seguidas de muitos outros textos, como o Catecismo Alemão (Grande Catecismo) e o Pequeno Catecismo para o uso dos simples pastores e pregadores, como também colocou as Sagradas Escrituras traduzidas na mão do povo. Na contrapartida, a Igreja Católica começou a publicar seus catecismos, como os famosos de São Pedro Canísio e o de São Carlos Borromeu, este encomendado pelo Concílio de Trento (1545-1563). Como os novos tempos e a invenção da imprensa trouxeram consigo a escolarização das crianças, os protestantes logo criaram as escolas dominicais para instruir os filhos de seus seguidores. Obviamente, a Igreja Católica seguiria essa mesma trilha. Nasceu o catecismo paroquial, que foi assumindo proporções generalizadas, nas cidades e comunidades rurais, até os tempos recentes. Surgiu, então, a instrução doutrinal em momento de extrema necessidade, confiada a catequistas paroquiais, que entenderam sua missão como escolarização religiosa das crianças, em vista da recepção dos sacramentos da eucaristia e, em algumas épocas, da confirmação. As famílias, em grande parte despreparadas no conhecimento da teologia católica, foram ficando cada vez mais distante dessa obrigação da educação da fé de seus filhos, “terceirizando” às instâncias paroquiais esse compromisso.

20. Uma segunda primavera da Igreja seria antevista pelo papa João XXIII, ao anunciar, na festa da conversão de Paulo, em 25 de janeiro de 1959, a decisão de convocar o Concílio Vaticano II. De fato, o Espírito, como o vento, sopra onde quer e quando quer (cf. Jo 3, 8). O século XX foi, para a catequese, momento de amadurecimento e novos rumos: “Pastoralmente, é o século da catequese: rico de ideias, iniciativas, documentos do magistério e viragens decisivas. Caracteriza-se por um centro irradiador: o Concílio Vaticano II, acontecimento que inspirou e consolidou algumas linhas de orientação e de renovação do itinerário catequético atual”.[13] Na América Latina, especialmente no Brasil, as inspirações conciliares foram muito bem acolhidas no terreno da catequese. Congressos, Semanas de Catequese, formações, textos abundantes, grandes catequetas… tudo isso tem levado a catequese a rever não somente seus métodos, mas também seus conteúdos, ampliar seus interlocutores e principais agentes. Pouco a pouco, a família foi reaparecendo no horizonte da educação da fé: em alguns momentos como destinatária dos esforços catequéticos, em outros como protagonista.

IV. PANDEMIA 2020: O RETORNO AO LAR E O DESAFIO DA CATEQUESE EM CASA

Associação das mulheres indígenas Sateré Mawé produzem máscara na pandemia de Covid-19 (Foto: reprodução)

21. O ano de 2020 ficará marcado para sempre na história da humanidade como o ano da grande  epidemia da COVID-19, que vem ceifando vidas em todas as partes do mundo. De uma hora para outra, o mundo se viu de “pernas pro ar”. Governos, profissionais de saúde, cientistas, sociedade civil, Igrejas, todos tivemos que tomar medidas urgentes para tentar minimizar a contaminação pelo vírus mortal e os impactos da doença. Ainda é impossível quantificar a proporção dos impactos sociocultural, econômico, político, psicológico e religioso causado pelo vírus e o uso (e abuso!) que dele se faz, na tentativa de superação dessa ameaça de destruição da humanidade. Todos os setores estão tentando adequar sua vida ao novo contexto, com mais perguntas do que respostas a respeito do dia de amanhã. Na vida da Igreja não é diferente. As estruturas eclesiais também se mostraram despreparadas para lidar com a nova situação, e os templos e centros pastorais tiveram que fechar, provisoriamente, as suas portas, para colaborar na salvação das vidas, não somente para a eternidade, mas já, para o hoje da história de cada fiel católico. Alternativas foram buscadas de todos os lados; no entanto, para além das respostas ao atendimento espiritual do povo, um grande deslocamento se deu: a Igreja transferiu-se para dentro de cada lar. Melhor dizendo: a Igreja, que cada lar cristão é, precisou vir à tona e fazer-se valer, efetivamente.

22. Sem romantismos, mas buscando uma visão bem realista, para muita gente ficar dentro de casa não está sendo nada fácil! Forçosamente, tivemos que permanecer mais tempo dentro dos nossos lares, conviver com aqueles que, possivelmente, há tempos não convivíamos por conta da correria ou dos desafetos. Tivemos que nos apertar em casas estreitas, sentar à mesma mesa no horário das refeições, dividir as tarefas domésticas, batalhar pelo pão de cada dia, nos enquadrar em regras de boa convivência e olhar nos olhos daqueles que deveriam ser os mais importantes para nós, tomados pelo medo e pela angústia, a pedirem amor, solidariedade, cuidado. E como lhes temos respondido?

23. A intensificação do convívio familiar foi de grande importância para muitos de nós, no momento em que o núcleo familiar vinha sofrendo grandes abalos e fragmentações. Conviver mais intensamente com aqueles que deveriam ser os mais próximos a nós pode levar-nos a pensar na família como comunidade de amor e cuidado, imprescindíveis em nossas vidas.A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, já dizia o grande poeta Vinícius de Moraes. E cessando, ainda que por um tempo, o nosso corre-corre, pudemos nos encontrar (ou desencontrar!) com a realidade de alegrias e tristezas de nossos familiares, inclusive tendo a chance de superar os tais bloqueios e desafetos. Será que poderemos reaprender a diferença entre ter uma casa e ter um lar; que há valores preciosos bem mais perto de nós do que pensamos; e que relações mais saudáveis com os familiares farão de nossa família o lugar da acolhida, da ajuda mútua, do cultivo da vida feliz e da experiência da presença de Deus?

24. A catequese presencial nas paróquias também foi suspensa por tempo indeterminado. Já que todos foram obrigados ao recolhimento social, permanecendo em suas casas, também os catequistas e catequizandos tiveram que modificar sua rotina. Não obstante várias iniciativas de suplência tomadas pela Igreja, a esperança da continuidade do processo catequético foi depositada na figura dos pais e das famílias. Foi então, que constatamos, sem disfarces, o que há muito já sabíamos: ”o rei está nu!”.[14] Percebemos, com significativas exceções, que a maioria dos pais sequer compreende o que seja a catequese. Sentem-se totalmente despreparados para liderar o processo e oprimidos por uma missão que julgam não ser deles.

V. A CASA E A PALAVRA NA CATEQUESE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Celebração na ocupação Rosa Leão (Foto: reprodução)

25. Fala-se do retorno a um “novo normal”, no pós-pandemia. A mim a expressão não agrada, se por normal se entender a retomada das coisas “velhas” para mantê-las do mesmo modo. A “pastoral de manutenção”, tão combatida pela Igreja nos últimos tempos, é uma inimiga atraente que ronda nossas práticas, sempre tentando nos convencer a “deixar do jeito que está pra ver como é que fica”, na lei do menor esforço. Quanto a isso, o documento da Conferência de Aparecida é enfático: “Nenhuma comunidade deve isentar-se de entrar decididamente, com todas as forças, nos processos constantes de renovação missionária e de abandonar as ultrapassadas estruturas que já não favorecem a transmissão da fé”.[15] E há algo mais: a ideia de “novo normal” nos dá a impressão de que o tempo da pandemia funcionou mais ou menos como parênteses que foram abertos e, ao serem fechados, ficaremos autorizados a seguir como se nada tivesse, de fato, acontecido. Não! O novo já começou! O que estamos experimentando, agora, já faz parte de um novo ciclo iniciado na história da humanidade e, oxalá, o amanhã seja a consolidação dos bons aprendizados que tivemos até aqui. Por isso, mesmo mantendo nosso realismo quanto ao lado trágico dessa pandemia, não podemos deixar de olhar para tudo que estamos vivenciando como oportunidade de aprendizados, apelos de mudança e possíveis resgates.[16] E, dentre os resgates a serem feitos, especificamente pensando na catequese, não há dúvidas de que o protagonismo da família na educação da fé das novas gerações há de ser um dos mais importantes. Segundo o cardeal José Tolentino Mendonça[17], “antes de ser templo, a Igreja foi casa. Jesus saiu do templo e entrou na casa. E aí começou a experiência cristã.”  Mas, como já acenamos, a casa, pouco a pouco, foi perdendo a sua força de epicentro do kerigma. É agora a hora de acolhermos os sinais dos tempos e repensarmos o caminho que temos feito. É momento de tentarmos responder com mais seriedade a questões que se mostram fundamentais: que lugar nossas famílias têm dado à vida cristã? O que seria, de fato, a catequese com a família e em família? O que a Igreja espera dos pais em relação à educação da fé de seus filhos? Que tipo de interação poderia ser aprofundada entre as famílias dos catequizandos e a catequese dada nas nossas comunidades eclesiais? Essas e outras questões precisam, com urgência, ocupar as atuais pautas dos nossos debates, sob pena de retomarmos a rotina de nossa catequese paroquial, sem termos tirado boas lições desse momento crítico que vivemos em nossa caminhada pastoral.

26. Nesse momento de pensarmos alternativas ou soluções, podemos partir do pressuposto histórico de que descuidamos sobremaneira da catequese com os adultos. Na ânsia de suprir as deficiências cumulativas na educação da fé das crianças, acabamos por supor que seus pais estavam evangelizados o suficiente para darem conta de sua missão de primeiros catequistas. É certo que muitos pais, especialmente aqueles que participam das atividades pastorais e evangelizadoras de nossas comunidades, estão bem nutridos da Palavra e têm feito de seus lares verdadeiras Igrejas domésticas. Muito desse mérito deve-se aos esforços da Pastoral Familiar e outros movimentos de casais existentes em nossa Igreja. O novo Diretório para a Catequese traz uma palavra de gratidão a essas famílias cristãs, pela riqueza de seu testemunho: “com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha para as famílias que se mantêm fiéis aos ensinamentos do Evangelho agradecendo-as e encorajando-as pelo testemunho que oferecem. Graças a elas, de fato, se torna credível a beleza do matrimônio indissolúvel e fiel para sempre[18]. No entanto, nem mesmo esse Setor Família tem atingido, como se esperava, um número considerável das famílias de nossos catequizandos. Há paróquias com uma visão muito restrita do campo de ação da pastoral familiar, contentando-se com grupos de casais autocentrados, sem perspectiva missionária, com ações voltadas apenas para o atendimento daqueles já integrados na vida eclesial. Todo o impulso dado pela Iniciação à Vida Cristã, sobretudo no Brasil, tem sido sinal de esperança para que tenhamos adultos verdadeiramente discípulos de Jesus Cristo e capazes de viver com integralidade a sua fé e transmiti-la às novas gerações.

27. Mas, infelizmente, uma parte maior dessas famílias foi somente “vernizada” de Evangelho, se quisermos usar uma expressão do papa Paulo VI[19], contentando-se com uma catequese incipiente, não raras vezes focada apenas na doutrina cristã, mas sem mais exigências vivenciais da fé. Junte-se a isso o estilo de vida atual, que em nada favorece o cultivo de uma espiritualidade cristã, como lembra Cárdenas Glez: “ultimamente, a transmissão da fé nas famílias tem tido características e acentuações que não se viviam antes: a vida de trabalho dos pais com seus horários, o descanso dos finais de semana, os meios de comunicação e tantas outras novas situações, fazem com que a vivência de fé em família seja cada vez mais esporádica, marginal e até nula. Parece que não há lugar para Deus… No melhor dos casos, a fé vem ao final da lista de necessidades”.[20] Desse modo, a família não dá conta de se anunciar como Boa-Nova do Reino[21] e os pais não têm muito o que oferecer a seus filhos em termos de exemplos de vida cristã.  Essa realidade nos desafia e exige da Igreja iniciativas mais eficazes e orgânicas na evangelização e sustentação da vida de fé das famílias, em perspectivas mais missionárias e atentas a uma linguagem que realmente possa ecoar no coração de cada lar.

28. Mas, quando se fala do protagonismo da família, especialmente dos pais cristãos, na catequese das novas gerações, em que exatamente se pensa? Seria muni-los de instruções, cursos e manuais para que eles mesmos transmitam sistematicamente a seus filhos os conteúdos que fundamentam a fé cristã católica? Essa insegurança no conhecimento dos elementos essenciais da nossa fé tem vindo à tona nesse tempo de pandemia, em que catequizandos de todas as idades têm desafiado seus pais com muitas perguntas, deixando-os literalmente sem palavras. Cuidar da sua formação, para que saibam “dar as razões de sua esperança” (1Pd 3, 15) e construir suas vidas nessas bases seguras, sempre foi e continuará sendo tarefa da Igreja. Ser cristão em uma sociedade tão plural, na qual a Palavra de Deus precisa ser discernida, em meio a tantas palavras humanas infladas pelos sofisticadíssimos meios de comunicação e pelas mídias sociais, em tempos de pós-verdades e de tantas fake news, não é nada fácil! Admitir que a cristandade acabou há muito tempo e que não estamos mais em uma sociedade assumidamente cristã, e que pululam por toda parte propostas de vida as mais variadas, muitas até destoantes do Evangelho, é fundamental. Em contexto com nuances muito diferentes, mas com a mesma carga de gravidade dos primeiros tempos do cristianismo, o pluralismo atual exige que a vida cristã volte a ser opção segura, madura, esclarecida, alimentada pela espiritualidade, adesão a Jesus e a seu projeto de vida, e não apenas aderência a uma religião. É como profetizava o teólogo Karl Hahner, no século passado: “o cristão do futuro, ou será um místico ou não será nada”.[22]

29. A catequese que se espera dos pais é aquela do testemunho cristão, que aponta o sentido da vida a partir da experiência de Deus. Em outras palavras, o que as novas gerações precisam receber de seus pais e demais adultos da família (irmãos, avós, tios etc.) é a concretude de uma fé traduzida em gestos capazes de iluminar os eventos familiares, desde os mais simples do dia a dia. Valorizem-se a oração em família, a bênção dos alimentos à mesa, o “Deus te abençoe” e o “vá com Deus”. Sejam cultivados a educação para os valores éticos e humanos decorrentes de uma fé esclarecida, o exato lugar de Deus em meio aos acontecimentos felizes ou aos trágicos vividos pela família, o respeito às pessoas que são sacramentos de Deus em nossos lares e fora deles, as narrativas dos feitos maravilhosos de Deus na vida de cada um de seus membros: “o que ouvimos e aprendemos, o que nossos pais nos contaram, não os esconderemos dos nossos filhos; contaremos à próxima geração os louváveis feitos do Senhor, o seu poder e as maravilhas que fez”. (Sl 78, 3-4).  

30. Podemos falar de uma missão iniciática dos filhos à fé cristã, assumida pelos pais no lar, Igreja doméstica, em interação com outras possibilidades de catequese oferecidas pela Igreja em outros contextos. E como não pode haver eficaz iniciação de alguém sem o aspecto vivencial, pensar a casa e a Palavra na catequese é pensar a dinâmica do lar, imbuída do espírito evangélico muito mais do que sua repetição teórica: “trata-se de uma educação cristã mais testemunhada que ensinada, mais ocasional que sistemática, mais permanente e cotidiana do que estruturada em períodos[23]. Isso não exclui, obviamente, a possibilidade e necessidade dos pais cristãos aprofundarem a sua fé e conhecerem melhor a doutrina da sua Igreja. No entanto, o que se espera de uma catequese em família é que seus membros, juntos, possam escrever uma teografia[24] familiar que os faça perceber sempre os rastros do amor de Deus, na cotidianidade da vida. Uma catequese que os leve a testemunhar isso à sociedade, como no início do cristianismo, em que as casas dos cristãos irradiavam aos de fora o valor da fé e as relações nelas estabelecidas funcionavam como modelos para as relações na comunidade eclesial. Lar cristão e Igreja se referem mutuamente, em íntima reciprocidade, como reforça o Diretório para a Catequese: “Comunidade e família são, uma para a outra, uma constante e recíproca referência: enquanto a comunidade recebe da família uma compreensão da fé imediata e ligada naturalmente aos acontecimentos da vida, a família, por sua vez, recebe da comunidade uma chave explícita para reler, na fé, a própria experiência”.[25]

31. Nesse tempo de pandemia, dentre tantas iniciativas de aproximação da Igreja às famílias, desejosa de entrar em cada lar e em cada coração, viu-se emergir uma relação até então pouco explorada: a da Igreja com os meios de comunicação e as mídias sociais. De acordo com Sbardelotto, “o fenômeno digital escancarou as casas ao mundo, fazendo com que as pessoas fossem convocadas ao ‘céu aberto’ da comunicação, inclusive para viver uma nova eclesialidade (ekklesía, do grego, “chamar para fora”), ressignificada pelo fechamento dos templos e pela conectividade das redes. Essa conjuntura problematizou não só a compreensão da fé, mas também a sua própria experiência”.[26] De fato, esse “fenômeno digital” trouxe mudanças muito interessantes, sobretudo, em relação aos meios tradicionais de transmissão e celebração da fé e muitos questionamentos quanto ao seu uso na evangelização, na catequese e na liturgia. Fato é que não se poderá mais desconsiderar sua relevância daqui para frente, sobretudo quando se olha para o interior das casas, onde o uso desses meios, em proporções e condições diferenciadas, é uma realidade eminente. Boa parte das famílias está conectada muitas horas por dia, e essas conexões geram um novo tipo de interação e presença. Como reforça o autor citado, “é preciso, portanto, superar a dicotomia ‘virtual x real’, ‘offline x online’. Hoje, vivemos uma experiência ‘onlife’.”[27] Isso não é só um detalhe a mais, quando pensamos a relação catequese e família, mas um aspecto que merecerá muitas reflexões da nossa parte.

32. O novo Diretório para a Catequese, além de várias referências à família ao longo do texto, dedica vários números à consideração da sua importância no processo de educação da fé.[28] Traz como âmbitos da catequese familiar: a) a catequese na família (227-228); b) a catequese com a família (229-230); c) a catequese da família (231), além de apresentar preciosas indicações pastorais (232) e os novos cenários familiares (233-235). Nas indicações pastorais, ele chama a nossa atenção para o “arco da existência”, especialmente para momentos decisivos da vida familiar aos quais a comunidade cristã deverá direcionar sua solicitude: preparação dos jovens e adultos para o matrimônio, catequese mistagógica para os novos casais, catequeses dos pais que pedem o batismo para seus filhos ou estão em processo de iniciação à vida cristã, catequese intergeracional e nos grupos de casais. Isso confirma para nós o que há tempos a catequese vem apontando, não obstante a fragmentação pastoral existente em nossas paróquias: catequese não é só o conjunto de ações que visam à educação da fé das crianças e jovens, mas abre-se um leque de direções que exige uma pastoral orgânica e uma visão de catequese permanente, que vai do útero materno ao útero da terra, com a morte. Portanto, pensar a catequese, hoje, equivale a vencer a tentação dos partidarismos e somar esforços, dialogar, planejar em comunhão, “enxugar” projetos e buscar a unidade pastoral.

33. Ao tratar dos novos cenários familiares, o Diretório revela o lado materno da Igreja em relação a “novas relações, novos casais, novas uniões, e novos casamentos”[29], mostrando que, “com cuidado, respeito e solicitude pastoral, a Igreja quer acompanhar aqueles filhos marcados por um amor ferido, que se encontram em uma condição mais frágil, renovando-lhes a confiança e esperança[30]. De modo muito específico, ele atribui à catequese uma urgente missão: “Além do acompanhamento espiritual pessoal, os catequistas encontrem caminhos e modos para favorecer a participação destes irmãos também na catequese: em grupos específicos formados por pessoas que partilham da mesma experiência conjugal ou familiar; nos outros grupos de famílias ou de outros já existentes. Assim, é possível evitar formas de isolamento ou discriminação e despertar o desejo de acolher e responder ao amor de Deus”.[31]

CONCLUSÃO

34. Percorremos um caminho longo nessa reflexão, mas interessante para nos ajudar a pensar o lugar que a “casa” e a “Palavra” ocuparam, estão ocupando e vão ocupar em nossos processos catequéticos. Partindo da experiência da vida religiosa e catequética dos judeus em contexto doméstico, passamos pela história da Igreja e chegamos aos dias de hoje, marcados pelo impacto da pandemia, que nos obrigam a pensar essa relação tão necessária da catequese – e não podemos deixar de acrescentar aqui a liturgia! – com as famílias. Vimos que a Igreja nasceu no contexto da casa e do pequeno grupo fiel à prática de Jesus, Verbo que armou sua tenda (sua casa) no meio de nós (cf. Jo 1, 14). Entendemos a Igreja doméstica, na qual a educação e a celebração da fé deveriam lhe dar uma identidade, como modelo de organização e vivência de amor, comunhão, ajuda mútua e vida fraterna. O embrião do cristão comprometido com um mundo melhor é gerado no útero familiar, e ali deve ser cuidado amorosamente. Se a missão da catequese é educar a pessoa na fé, na esperança e no amor para que seja “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt 5, 13-14),  essa educação começa no santuário de vida que é a família, sempre auxiliada pela comunidade eclesial nessa missão: “os pais devem ser orientados não só para dar uma formação consciente e explicitamente cristã aos filhos, mas para eles mesmos crescerem em seu compromisso cristão e na capacidade de iluminar pela fé a realidade familiar e social, que são chamados a construir”. [32]

(Os grifos são nossos)

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

a) Documentos Pontifícios

Declaração sobre a Educação Cristã (Gravissimum Edicationis). Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1987.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. Diretório para a Catequese. São Paulo: Paulus, 2020.

JOÃO PAULO II. A Catequese em nosso tempo (Catechesi Tradendae). São Paulo: Salesiana, 1982.

PAULO VI. A Evangelização no mundo contemporâneo (Evangelii Nuntiandi). São Paulo: Paulinas, 1977.

b) Documento do Episcopado Latino-americano

Documento de Aparecida. São Paulo: CNBB, Paulus e Paulinas, 2007.

c) Documentos da CNBB

Catequese Renovada (doc. 26). São Paulo: Paulinas, 1983.

Diretório Nacional de Catequese (doc. 84). São Paulo: Paulinas, 2005.

Comunidade de comunidades: uma nova paróquia: a conversão pastoral da paróquia (doc. 100). São Paulo: Paulinas, 2014.

Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil 2015-2019 (doc. 102). São Paulo: paulinas, 2015.

Iniciação à Vida Cristã: itinerário para formar discípulos missionários (doc. 107). Brasília: CNBB, 2017.

Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora no Brasil 2019-2023 (doc. 109). Brasília: CNBB, 2019.

d) Outras obras

BOLLIN, A.; GASPARINI, F. A Catequese na vida da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1998.

GEEURICKX, J. A catequese na comunidade cristã. Pequena história da Igreja. Coleção Catequese Fundamental (vo. 9). Petrópolis: Vozes, 1991.

RAHNER, Karl. Escritos de Teologia VI. Madrid: Taurus Ediciones. 1967.

TEJO, Díaz Javier (org.). Después de la pandemia, ¿qué catequesis?  Ediciones Universidad Finis Terrae, 2020.

e) Sites

SBARDELOTTO, M. Virtualização da fé? Reflexões sobre a experiência religiosa em tempos de pandemia. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/601104-virtualizacao-da-fe-reflexoes-sobre-a-experiencia-religiosa-em-tempos-de-pandemia, acessado em 23.07.2020.

PAIVA, V. O Senhor foi grande conosco! Por isso estamos alegres! Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/600293-o-senhor-foi-grande-conosco-por-isso-estamos-alegres-artigo-de-vanildo-de-paiva?fbclid=IwAR11Od5WO_a77hueSO68vDjdiLmEnZaVp0VyFT-ClHsng3mA4blvi1Hr-Qc, acessado em 23.07.2020.


Notas:

[1] Contatos do autor: vanildopaiva@hotmail.com – WhatsApp (35) 99707-3889.

[2] GEEURICKX, J.  A Catequese na Comunidade Cristã, p.11.

[3] Palavra que significa “filho dos mandamentos”. Aos treze anos, o menino se tornava um bar mitzvah e a menina, aos doze, uma bat mitzvah (filha dos mandamentos, das obrigações). Por ocasião desse ritual, que se dava em parte na sinagoga, em parte na própria casa, os filhos adquiriam as obrigações legais e religiosas dos adultos.

[4] Diretrizes Gerais da ação Evangelizadora no Brasil 2019-2023, nn. 73-74.

[5] Idem, n. 78.

[6] Idem ibidem, n. 80.

[7] BOLLLIN, A.; GASPARINI, F. A catequese na vida da Igreja, p. 22-23.

[8] Didaqué significa “instrução, doutrina”. Trata-se de um escrito certamente do final do primeiro século, uma espécie de catecismo dos primeiros cristãos. Ela nos traz notícias de como viviam as primeiras comunidades, como celebravam a sua fé e, sobretudo, que tipo de ética era exigida aos novos cristãos, que viviam dentro de uma sociedade pagã.

[9] HERESIA, nesse caso, é todo ensinamento ou ideia que contraria a doutrina professada pela Igreja. APOLOGIA é a defesa apaixonada e bem argumentada da doutrina da Igreja, combatendo a heresia.

[10] Domus Ecclesiae significa, literalmente, “casa da igreja”.  “A Igreja de Dura Europo é a mais antiga casa de oração cristã cujo local se encontra identificado, e uma das primeiras igrejas cristãs de que há registro. Situa-se em Dura Europo, na atual Síria, e aparenta ter sido uma habitação comum que foi convertida em casa de oração, que funcionou entre os anos 233 e 256, até a cidade ser abandonada, depois da conquista dos Persas” (Wikipédia).

[11] GEEURICKX, J. A Catequese na Comunidade Cristã, p. 28-29.

[12] Idem, p. 47-48.

[13] BOLLIN, A.; GASPARINI, F. A Catequese na vida da Igreja, p. 207.

[14] Referência a um conto no qual um rei é iludido por costureiros malandros a lhes encomendar uma vestimenta solene inigualável, mas totalmente transparente. Para confeccionar tal vestimenta lhe cobraram uma fortuna. O rei e toda sua corte, embora não vissem tal roupa, não quiseram questionar os artesãos, com medo de serem chamados de ignorantes e incapazes de apreciar tal obra de arte. Isto, até o dia em que o rei “vestiu” tal indumentária e foi desfilar em procissão solene, sob aplausos de todos que, mesmo não vendo roupa alguma, prefeririam se calar. Mas, uma criança não deixou por menos. À passagem do rei, apontou a farsa, gritando em alto e bom som: “o rei está nu!”. 

[15] Documento de Aparecida, n. 365.

[16] Sobre esses aprendizados, escrevi um outro artigo nos quais tento olhar para eles de modo mais detalhado: http://www.ihu.unisinos.br/600293-o-senhor-foi-grande-conosco-por-isso-estamos-alegres-artigo-de-vanildo-de-paiva?fbclid=IwAR11Od5WO_a77hueSO68vDjdiLmEnZaVp0VyFT-ClHsng3mA4blvi1Hr-Qc.

[17] Live sobre espiritualidade cristã, e, 24.06.2020, disponível em http://radioamerica.arquidiocesebh.org.br/noticia/dialogos-on-line-de-teologia-pastoral-veja-a-live-com-o-cardeal-dom-jose-tolentino-mendonca/.

[18] Diretório para a Catequese (2020), n. 226.

[19] PAULO VI. Evangelii Nuntiandi, n. 50.

[20] GLEZ, H. C. Transmitir la fe desde la família en tiempo de pandemia. In Después de la pandemia, ¿qué catequesis?, p. 29 : “En el último tiempo, la transmisión de la fe en las famílias ha tenido características y acentuaciones que no se vivían antes: la vida de trabajo de los papás con sus horarios, el descanso de los fines de semana, los medios de comunicación y tantas nuevas situaciones, hacen que la vivencia de la fe en la familia sea cada vez más esporádica, marginal y hasta nula. Parece que no queda lugar para Dios (…) En el mejor de los casos, la fe viene al final de la lista de necessidades”.

[21] “A vida conjugal e familiar, vivida segundo o projeto de Deus é, por si mesma um evangelho, no qual se pode ler o amor gratuito e paciente de Deus pela humanidade” (Diretório Geral para a Catequese [2020], n. 228.

[22] RAHNER, Karl. Escritos de Teologia VI. Madrid: Taurus Ediciones. 1967.

[23] Diretório para a catequese (2020), n. 227.

[24] Teografia (teo= Deus + grafia: escrita, relato) diz respeito à percepção e narrativa da ação amorosa de Deus no dia a dia de cada pessoa, em sua biografia.

[25] Diretório para Catequese (2020), n. 229.

[26] SBARDELOTTO, M. Virtualização da fé? Reflexões sobre a experiência religiosa em tempos de pandemia. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/601104-virtualizacao-da-fe-reflexoes-sobre-a-experiencia-religiosa-em-tempos-de-pandemia.

[27] Idem.

[28] Diretório para a Catequese (2020), nn. 226-235.

[29] Idem, ibidem (2020), n. 233.

[30] Diretório para a Catequese (2020), n. 234.

[31] Idem, n. 235.

[32] Documento Catequese Renovada, n. 123.