Sobre as condições para evangelizar no contexto atual

A psicóloga e responsável pelo Departamento de Formação do Secretariado Nacional de Educação Cristã de Portugal, Cristina Sá Carvalho, analisa os desafios da transmissão da fé no contexto contemporâneo. Ela deixa claro a sua descrença em evangelização de massa e destaca o valor insubstituível do calor afetivo da proximidade pessoal, do aconchego familiar, da força do testemunho e da ternura feminina, condições indispensáveis para pensar a ação evangelizadora no contexto atual.

O Observatório da Evangelização reproduz aqui o provocante artigo, publicado pelo Observatório da Cultura de Portugal.  Vale a pena conferir:

HAVERÁ FUTURO PARA A TRANSMISSÃO DA FÉ?

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Por Cristina Sá Carvalho[1]

a evangelização deve assumir a atitude de proximidade e dedicação da «pesca à linha», legível a partir da posição de cada um, ponto de partida para uma proposta de fé aceitável.”

A evangelização, se pretende a transmissão da fé, tem de ser muito pessoal e muito transmissível.Num mundo global de incerteza, ambiguidade e imprevisibilidade, de ansiedade e distúrbio, de comunicação massiva e de hiperescala nas ofertas de solução, a maioria das pessoas vive entrincheirada em mecanismos de defesa, atraída por muitas verdades provisórias e sem capacidade para a leitura profunda das realidades. Neste contexto, a evangelização deve assumir a atitude de proximidade e dedicação da «pesca à linha», legível a partir da posição de cada um, ponto de partida para uma proposta de fé aceitável. E como as pessoas são continuamente sujeitas a grande número de «primeiro anúncio», a proposta cristã só se pode sedimentar com o testemunho coerente dessa coisa complexa, morosa e difícil que é ser um cristão.

Adverso às expectativas humanas dominantes dos prazeres imediatos e dos poderes mal distribuídos, o cristianismo, não desejando apoderar-se da linguagem da publicidade e do consumo religioso, progride nas consciências vacilantes pela convicção e pela alegria balsâmica derramada sobre os sofrimentos que resultam da perda endêmica do ideal e da esperança.

Essa capacidade de testemunho necessita de uma âncora forte, já que os cristãos partilham a carne dolorida de todos e os efeitos da ampla democratização da falibilidade das soluções modernas. Tal âncora é, inequivocamente, a família, cuja erosão é a mais ameaçadora derrota do cristianismo. Não é possível fazer uma iniciação cristã sem a família ou contra a família, e quando a família natural não é possível, é sempre necessário encontrar uma outra. A recuperação da família e a evangelização em família não terão um caminho fácil, já que uma Igreja excessivamente clericalizada perdeu – para o medo, a culpabilização e o romantismo – a noção exata do que a família é e de como esta deve ser tratada na sua unidade e multiplicidade de relações internas, pedra angular da classe média, apanágio da estabilidade e da transmissão de valores, agora em violenta transformação por obra da austeridade e das várias crises sociais. Mas, por alguma razão, Jesus entregou os apóstolos a Maria.

Nas famílias, há que contar com os desafios que são colocados à sua autoridade educativa, a mobilidade social que as mães estão a alcançar, a importância da felicidade destas e da normatividade vigilante que deve vir da figura do pai, quando os jovens casais não têm ninguém com quem aprender a ser educadores e de como preservar os indispensáveis laços de união. Mas as comunidades de fé podem ser a família alargada que as famílias, hoje, não têm: um espaço que acolhe, que aceita, que ensina, que acompanha, que facilita, que celebra. Um espaço onde a pessoa é relevante e, por isso, pode ser ajudada a responsabilizar-se pelo seu percurso, pelo dos outros, pelo crescimento de uma sociedade fundada na justiça e na fraternidade, aprendidas na experiência do viver em comum cristão, à maneira, atualizada, das primeiras comunidades.

Também há que considerar a educação formal e a produção do conhecimento: a Igreja tem um passado de excelência educativa e respondeu às crises históricas mais rebeldes com inteligência, com meios e com constância na procura da verdade. É indispensável que se entregue dedicadamente a este caminho de salvação da humanidade quando a pessoa parece condenada aos rudimentos da informação que a habilitam para o trabalho e numa época em que a investigação científica é manipulada pelos interesses comerciais e políticos mais espúrios.

Finalmente, a evangelização, para ter futuro, deve ser mais equilibradamente feminina: mais comunicativa, mais acessível, mais próxima, mais doméstica, mais interessada, mais realista, mais acolhedora, mais dedicada, mais paciente e mais persistente. É necessário abraçar a fé, comprazer-se com a sua beleza, alimentá-la colherada a colherada, vitaminá-la com sumo, curar-lhe as feridas, abrigá-la das ventanias, acreditar que tem potencial para crescer. Tal como fazem as mães: gratuitamente, arriscando, errando e aprendendo umas com as outras.


[1] Psicóloga, responsável pelo Departamento de Formação do Secretariado Nacional de Educação Cristã de Portugal

(Este artigo integra a edição n.º 21 do “Observatório da Cultura”)

http://www.snpcultura.org/havera_futuro_para_transmissao_fe.html