Tolerância ativa: em busca da superação da violência

No contexto de tantas manifestações de violência, o Observatório da Evangelização compartilha a seguir a reflexão do professor Leandro Karnal. Ela oferece elementos para compreendermos as raízes da violência em sociedade, bem como pistas para comprometermos com a sua superação cotidiana.

O inferno são os outros?

“O que proponho de novo neste texto? É bárbaro todo aquele que propõe, na sua teoria, a exclusão do outro. É civilizado, seja um índio ianomâmi, ou um alemão, todo aquele que propõe a aceitação da existência do outro… A não aceitação das diferenças faz do mundo um lugar horrível”

Prof. Leandro Karnal

Nem todo preconceito gera uma discriminação. Mas toda discriminação parte de um preconceito. É necessário que estudemos os nossos preconceitos a fim de que eles não se transformem em discriminação. Pois, tudo o que o inferno significa está contido na palavra “discriminação” porque dela flui: a xenofobia, homofobia e todas as outras palavras usadas para conceituar o comportamento do indivíduo que não aceita as diferenças. Não aceita ao ponto de odiar aqueles a quem ele julga “diferentes”.

A discriminação quando não autocriticada pode desencadear fobias. Segundo o pesquisador Paul Errara, a palavra fobia é derivada da palavra grega para terror ou estrangulamento. Phobos era um deus grego que causava pânico e medo entre os inimigos daqueles que o adoravam.

Nos últimos dias assistimos a notícia de um massacre numa boate gay em Orlando. O atirador homofóbico matou 50 pessoas e 53 ficaram feridas. Se ainda não sabemos lidar com as diferenças integrais, como saberemos lidar a ‘polissexualidade’?

O professor Leandro Karnal faz uma relevante proposta de reflexão acerca deste assunto. Fizemos a transcrição de um trecho de sua palestra: Tolerância ativa

Existe uma proposta de um professor chamado Francis Wolff, num livro chamado Civilização e Barbárie, em que ele faz a seguinte pergunta: “Quem é o bárbaro atual?”. O livro organizado pelo professor Adauto Novaes, chama-se Civilização e Barbárie, e um dos primeiro artigos pergunta “Quem é o bárbaro?”. A tendência grega tradicional era dizer “Quem é bárbaro é quem não fala grego, quem está fora da minha cultura. O latino: É bárbaro quem está fora da cultura romana”. Para o chinês é bárbaro todo mundo que não seja chinês. Bem, o bárbaro era visto como não civilizado. A proposta deste texto é pensar que a barbárie pode florescer em qualquer lugar. Ela floresceu até mesmo no país mais culto da Europa a Alemanha. Não podemos esquecer a tragédia do Nazismo. O país de Kant, Bach e Beethoven. O país que produziu tanta cultura formal incendiou uma das crenças mais bárbaras do século XX e um modelo de barbárie. Não podemos esquecer a lição do Nazismo.

O que proponho de novo neste texto? É bárbaro todo aquele que propõe, na sua teoria, a exclusão do outro. É civilizado, seja um índio ianomâmi, ou um alemão, todo aquele que propõe a aceitação da existência do outro. Então ele foge ao termo Civilização e Barbárie tradicional, oferece uma saída para esse caminho e vai nos dizer exatamente isso. Acho que o fundamentalista que prega a eliminação do outro deve ser tratado como racista, ou seja, como alguém patológico. Alguém que deve ser ‘educado’ e, não sendo possível a educação, deve ser encarcerado. Por quê? Porque não é possível conviver com pessoas que quer lhe excluir da humanidade. Não é possível.

A não aceitação das diferenças é problema tanto patológico como baixa inteligência e falta de caráter. Ou uma combinação das três coisas. O fundamentalismo não precisa ser ‘falta de caráter’. Eu ainda acho que se pode educar para a Tolerância Ativa, princípio que eu defendi quando elaborei os cinco volumes para o ensino religioso em São Paulo, que é o ensino leigo, não baseado em religião. Nós propusemos nesses volumes o chamado ‘tolerância ativa’. O que é tolerância ativa? Não é que eu tolero que você seja presbiteriano  e eu, católico? Não é que eu tolero. Eu acho fundamental que exista essa diversidade. E não existiria mundo e o mundo seria um lugar terrível se você não fosse presbiteriano e eu católico. Isso é tolerância ativa. Não é que eu diga assim: “Até que eu tolero um gay, desde que não chegue perto”. É fundamental que existam gays. É fundamental pessoas de diversas etnias, é fundamental que existam diversas opiniões, inclusive contrárias à minha.

Essas divergências tornam o mundo um lugar horrível. Quem aceita isso é civilizado. Quem não aceita isso é bárbaro. Pode falar dez línguas, continuará sendo um bárbaro. Ou seja, eu compartilho dessa ideia de que o fundamentalista é violento, tal como o racista, tal como o pedófilo. Tenho que ser reeducado, talvez com uma educação formal, eletrochoque, prisão, alguma coisa que funcione e, não funcionando, ele ter de ser isolado da sociedade. Só os violentos. Ou talvez se pudesse escolher uma ilha para onde mandassem todos esses tipos de pessoas que querem excluir os outros.  Porque se não for a violência, se apenas disser: na minha concepção você vai para o inferno, isso não me afeta. Isso não me afeta… isso é apenas um problema de debate.

Na verdade, o limite da liberdade é o limite de eu poder me expressar e a questão da dignidade do corpo, em particular. Agora, se alguém acha que eu vou pro inferno por algum motivo, eu também reconheço o direto dessa pessoa também me mandar para o inferno. Como se atribui a Voltaire, mas também não é dele, curiosamente, “Eu não concordo com uma palavra do que me dizes, mas defenderei ate à morte o direito de dizeres”. Não é dele, mas é uma frase que ilustra bem o pensamento de Voltaire: tolerância. É fácil ser tolerante com a ideia parecida com a minha. O difícil é ser tolerante com a ideia oposta à minha. É o choque entre pólos que não conseguem entender que o outro possa estar correto. E aí as próprias religiões dão a solução: o primeiro princípio é uma regra áurea, comum a quase todas as religiões, não fazer ao outro o que não quer que seja feito a si. Essa regra áurea que para Norman Rockwell, que fez um pôster que está na ONU, é a norma básica: colocar-se no lugar do outro e, segundo os budistas e cristãos, é compaixão. O que significa isso? Compassione em latim: eu sinto junto. E sentindo junto eu penso o que perturba o outro. Esse é um exercício fascinante. A compaixão a todo o momento.

Porque como lembrou Sartre – e de alguma o Papa Paulo VI, que era uma pessoa hamletiana, melancólica – como lembrou Sartre: “o inferno são os outros” e, nós somos o inferno dos outros. Só quem vive feliz é Robinson Crusoé até que Sexta Feira chegue à sua ilha. Viver em sociedade é uma negociação permanente e essa negociação é dura. É árdua em vários sentidos”.

(os grifos são nossos)

Fonte:

Portal Raízes

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