Para iluminar a nossa intranscendência diária

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” Tenho uma filha que se chama Íris. E quando ela era mais pequenina, com 8 anos, naquela altura das perguntas, estávamos nós os dois a brincar e ela sem interromper a brincadeira e de uma forma natural mas profunda, perguntou-me: «Papá, o que é a eternidade?» E é assombroso, como é que as crianças tão cedo se interrogam sobre o porquê das coisas: Porque é que a avó está velhinha? E tu também vais ficar velhinho, e a mamã, e eu também? Porque é que as pessoas morrem? Porque é que há pobres? Porque que é que há guerras?” 

Papá, o que é a eternidade?

Júlio Martín da Fonseca
Ator, encenador, docente
Publicado em 26.02.2015

Tenho uma filha que se chama Íris. E quando ela era mais pequenina, com 8 anos, naquela altura das perguntas, estávamos nós os dois a brincar e ela sem interromper a brincadeira e de uma forma natural mas profunda, perguntou-me: «Papá, o que é a eternidade?» E é assombroso, como é que as crianças tão cedo se interrogam sobre o porquê das coisas: Porque é que a avó está velhinha? E tu também vais ficar velhinho, e a mamã, e eu também? Porque é que as pessoas morrem? Porque é que há pobres? Porque que é que há guerras?

Mas neste momento a pergunta entre os brinquedos era: «Papá, o que é a eternidade?» E eu entre o espanto e o pensamento, recuei até à minha infância, quando também estava a descobrir o poder da pergunta, e lembrei-me de qual era a minha experiência de eternidade, aquela que respondia a esta precisa inquietação. Naqueles dias de inverno, com muito frio, chuva e trovoada, ou quando tinha um pesadelo, ou quando eu tinha 8 anos e houve um terramoto, ou simplesmente quando apetecia, eu ficava na cama com os meus pais, os três juntinhos, eu no meio deles. Era como se fôssemos um só, sendo três. Assim, desta forma, o mundo podia acabar ou continuar para sempre, era indiferente. Não era preciso mais nada, bastava ficarmos assim. Juntinhos. Não havia passado nem futuro. Eu experimentava a plenitude, o eterno momento.

Os anos passaram e agora com a minha filha e a minha mulher, voltei a sentir a mesma experiência. Só que agora mudei de lugar, já não sou eu que estou no meio, é ela. Mas estarmos os três juntinhos, faz-me viver de novo esse momento. E sei que ela também o sente. Mas em mim, alguma coisa mudou. Apesar de viver nesse instante uma felicidade imensa, sinto a falta da presença dos meus pais, e também do resto da família, e dos amigos, e dos irmãos espirituais e de … Olho para o rosto da minha filha a dormir, e não consigo deixar de pensar que ela não é só minha filha, e vejo nela a minha mulher quando criança, a minha mãe, vejo nela Maria, vejo nela todas as crianças do mundo, todas aquelas que deveriam ter a possibilidade de ser amadas e estarem assim no meio dos seus pais, e saberem o que é esta, eternidade possível. E quando a beijo, é também como se beijasse todas as crianças que agora o são, ou alguma vez o foram, ou as que vierem a ser.

É a minha limitada forma de tentar amar todas numa só. Sinto a imensa fragilidade humana, o profundo mistério, e sinto verdadeiramente que esta pequena trindade que somos nós os três é apenas a imagem de uma Trindade Maior, onde nela sim habita a Real Eternidade, que é onde cabe tudo e todos, em Comunhão, em Unidade.

É isso que contemplamos na Eucaristia. O caminhar de uma humanidade, que para por momentos para celebrar com espanto «o céu na terra e a terra no céu; o homem em Deus e Deus no homem», e continuando com as palavras de São Pedro Crisólogo «veem encerrado num pequeníssimo corpo Aquele que não pode ser contido em todo o mundo». Mistério da Presença do Corpo Místico de Cristo, onde cabemos todos nós e todo o universo, num pequenino círculo branco, que seguramos com as mãos, e que pela nossa boca semeamos em nós, como algo de único e irrepetível, porque sempre novo, como uma obra de arte.

As perguntas da Arte são precisamente como as das crianças. As procuras e os encontros de como viver a vida e a morte, de como superar a dor e o sofrimento, de como comunicar com os outros e connosco próprios, de como fazer perdurar aquilo que nos foge das mãos, da memória, dos sonhos e dos lábios. Através da Arte, tomamos consciência do mundo e de quem somos, porque ela verbaliza, ilumina, faz-nos ver e ouvir algo de novo, ou aquilo que esteve sempre ao nosso lado mas que nós nunca tinhamos realmente visto antes, ou então um sentimento que nos habitava, mas que ninguém tinha ainda conseguido exprimir. Tornamo-nos mais humanos através da Arte, ela enriquece-nos como pessoas. A Arte é o irrepetível, é o pessoal que se torna universal, é o temporal que tenta alcançar a eternidade. Mas,«Papá, o que é a eternidade?»

A Eucaristia e a Arte respiram um outro tempo. É preciso parar exteriormente e interiormente, fazer silêncio, esvaziarmo-nos de nós, para assim poder ver, ouvir e celebrar em comunhão, connosco e com os outros, o mistério da criação e da vida.

A Eucaristia, a Comunhão, é fundamental para que a Arte não se esqueça da sua humanidade, para que não caia na tentação de se alimentar apenas de si própria, de uma forma desencarnada. E a Arte é essencial para que a celebração eucarística, de comunhão com Jesus, seja habitada pela beleza construída com o corpo e alma, das mulheres e dos homens de todos os tempos. Mas talvez seja preciso mais! É preciso dialogar com os artistas, e começar a construir para a cidade e para o mundo, um imaginário cultural onde esteja presente a arte e a comunhão. Para que as perguntas dos filhos dos nossos filhos, já venham a ser outras. Porque em relação a esta «Papá, o que é a eternidade?» possamos dizer, mesmo antes que nos perguntem: «Olha, olha como é bela a eternidade! É tudo num só momento, diante dos meus olhos, diante dos teus olhos, na palma das minhas mãos, na palma das tuas mãos, dentro de mim, dentro de ti, entre nós».

 

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